18 dezembro, 2018

BOAS FESTAS!


Compras de Natal - São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes, os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável - apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.”

Cecília Meireles, jornalista, escritora e professora brasileira (1901-64)


Desejo a todos os amigos que o Rol de Leituras trouxe para a minha vida, Feliz Natal e um Novo Ano repleto de paz, saúde, amor, alegria e… boas leituras!
E deixo uma palavra de gratidão pelos abraços em palavras, pelas prendas de alegria, pelas mensagens carinhosas. Que triste seria a minha vida sem vós!

Um GRANDE abraço para todos e Boas Festas!
(Não esqueçam que o tempo é precioso. Vivam plenamente cada dia de 2019.)

Fotos da net.

14 dezembro, 2018

"Se eu pudesse trincar a terra toda" - Fernando Pessoa

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento…
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…

Poema de Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)

Sabia que (6):
1908 - Começa a trabalhar nos escritórios de várias firmas comerciais como correspondente estrangeiro.
Escreve os primeiros fragmentos do Fausto.
1910 - Escreve poesia e prosa em português, inglês e francês.
1911 - Aceita traduzir para português uma Antologia de Autores Universais dirigida por um editor americano e destinada a ser publicada no Brasil.
1912 – Estreia literária como crítico.
1913 – Intensa actividade criadora, crítica e de polemista: colabora no semanário «Teatro» de Boavida Portugal e m «A Águia»; escreve Epithalamium, Hora Absurda, O Marinheiro. É também um período intenso de discussão e de tertúlia com os jovens artistas da sua geração.”
("Fernando Pessoa, uma fotobiografia", de Maria José de Lancastre).

Não sabia? Eu também não!
O que importa é que agora sabemos.
Prometo partilhar mais informações sobre a vida do poeta do desassossego.
(Foto da net)

11 dezembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "pessoas"


“Há pessoas que conseguem, com uma espécie de força selvagem e primitiva, sugar tudo, cada vida, do mundo que as rodeia, como na floresta, lianas há que subtraem às árvores de grande porte a humidade e nutrientes do chão, ainda que a centenas de metros de distância. É esta a sua lei, a sua peculiaridade. Não se trata de serem más, são assim…”


Frase de Sándor Márai, escritor húngaro (1900-89), in “A mulher certa”, ed. Dom Quixote, 2009

Leia mais sobre este sublime romance aqui.
(Foto da net.)

07 dezembro, 2018

NATAL em Lisboa


HORA DE NATAL
É a hora em que os mármores
no silêncio das criptas
de repente se abraçam
e se tornam de argila

É a hora em que as máscaras
se desfazem no íntimo
de quem se acostumara
a trazê-las consigo
É a hora em que as pálpebras
já não mais necessitam
de manter-se crispadas
ante visões iníquas

É a hora em que as lágrimas
incendeiam os livros
que sem as suas asas
haviam sido escritos
É a hora em que as lápides
sucumbem ao delírio
de não lembrar massacres
nem celebrar suplícios

É a hora em que as pávidas
madrugadas se exilam
em que as noites e as tardes
são manhãs definidas
É a hora em que as pátrias
já não têm limites
É a hora em que as grades
de ser grades desistem

É a hora em que as almas
entre si comunicam
É a hora que falta
no relógio da vida

Poema de David Mourão-Ferreira, in "Obra poética 1948-1988", Ed. Presença, 1988
(Fotos da net.)

04 dezembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "histórias de amor"


"Todas as histórias de amor são potenciais histórias de dor. Se não no princípio, depois. Se não para um, para o outro. Às vezes para ambos. Então por que aspiramos continuamente a amar? Porque o amor é o ponto onde se encontram a verdade e a magia."


Frase de Julian Barnes, escritor inglês (1946-), in “Os níveis da vida”, Ed. Quetzal, 2013

Leia mais sobre este brilhante romance aqui.
(Foto da net.)

01 dezembro, 2018

8º aniversário do "rol de leituras"

Este ano decidi celebrar o aniversário do "Rol de Leituras" de modo diferente, com versos de uma amiga virtual, que recentemente tive o privilégio de conhecer pessoalmente: a Graça Pires, do blogue Ortografia do Olhar.
Nestes oito anos de actividade bloguista fiz muitas amiga(os), mas foi ela a primeira que abracei (e como foi bom o abracinho dela) e por isso decidi celebrar este dia com um poema seu.
Ao ouvido vos digo, para ela não ouvir: a Graça, a poeta fazedora de versos que despertam emoções, tem um sorriso cativante (os seus olhos sorriem) e é linda como os versos que compartilha no seu blogue. E mora pertíssimo de mim. E vamos encontrar-nos mais vezes.
Este ano o Rol deu-me um presentão!

UMA AMIGA
Não sabes se é possível recolher
as últimas estrelas da noite,
para amenizar o peso do silêncio.
Mas, do cume da manhã,
avistas sempre, tu o dizes,
um atalho para a felicidade,
porque as tuas mãos respiram
a irrecusável posse de uma alegria
capaz de multiplicar a voz,
para dizer que, em todos os rostos,
desagua um rio navegável
onde importa saber ser barco,
ou remo, ou, simplesmente,
o rumor da água corrente.
Ao acaso, repartes o gosto de viver
sem a lógica de coisa calculada
e sem nunca ficares de fé perdida,
como se usasses o optimismo
em legítima defesa.
(Poema publicado no livro "Ortografia do olhar" (1996)  e na colectânea "Poemas Escolhidos 1990-2011" (2012). 

Voltando ao Rol, foram 8 anos de muita aprendizagem e satisfação, mas também de algum desgaste e desânimo. Vencido o desânimo (com palavras que recebi e que iluminaram os dias mais tristes) agradeço a todos os amigos(as) bloguistas - os que apenas passam por aqui, os que ficam, os que leem mas não comentam, os que respondem aos meus comentários com silêncio (aprende-se muito ouvindo o silêncio) - os elogios, as críticas (construtivas), os incentivos, a simpatia, a paciência, a generosidade, o consolo e tranquilidade, a amizade, o carinho, os beijos e abraços que me acalentam (nunca saberão quanto) e dão ânimo para continuar partilhando leituras e outras coisas mais. 
Obrigada a todos, por tudo!

Agora é hora de festejar, porque «hoje, confesso, acordei com vontade de ser feliz» (palavras da Graça Pires, que faço minhas todos os dias).

Qual será o meu próximo presentão? Quando o receber, saberão!
Beijos.

(Fotos da net.)

30 novembro, 2018

"Tenho vontade de lágrimas" - Fernando Pessoa


“A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir fechar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma. (…)
Uma criança que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não “tenho vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é um estúpido, senão isto: “Tenho vontade de lágrimas”. E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura liquefeita. “Tenho vontade de lágrimas”! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.
Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades fictícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido.


Passam hoje 83 anos sobre a morte do grande poeta português FERNANDO PESSOA.
Assinalo o dia com este texto do “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014.
(Fotos da net.)

27 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "desespero"



"O desespero é o suicídio do coração."


Frase de Jean-Paul Sartre, escritor e filósofo francês (1905-80)
Foto da net.

23 novembro, 2018

Palavras de...Viktor E. Frankl

"Um clínico geral já idoso consultou-me certa vez por causa de uma depressão grave. Na conseguia superar a perda da mulher, que tinha amado mais que tudo e que falecera dois anos antes. Perante isso, como podia eu ajudá-lo? O que deveria dizer-lhe? Bom, evitei dizer fosse o que fosse e em vez disso confrontei-o com a questão: «O que teria acontecido, doutor, se tivesse sido o senhor a morrer primeiro e a sua mulher tivesse de sobreviver sem si?» «Oh», disse ele, «para ela isso teria sido terrível; como teria sofrido!» E nessa altura retorqui: «Está a ver, doutor, esse sofrimento foi-lhe poupado e foi o senhor quem lho poupou - a dizer a verdade, fê-lo ao elevado preço de ter agora de lhe sobreviver e de a chorar.» Não disse uma palavra mas apertou-me a mão e deixou calmamente o meu consultório. De certa forma, o sofrimento deixa de o ser no momento em que se lhe descobre um sentido, tal como o sentido de um sacrifício."

Palavras de Viktor E. Frankl, psiquiatra austríaco (1905-97), in "O homem em busca de um sentido", Ed. Lua de Papel, 2012.
Foto da net.
Aconselho vivamente a leitura deste livro, impressionante relato do período que o autor passou no campo de concentração de Auschwitz.
Escrevi sobre ele aqui.

20 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "milionários"



“O tamanho da tua conta bancária e o tamanho da tua casa não têm nada a ver com viver cheio de alegria e maravilha. O mundo está cheio de milionários infelizes.”


Frase de Robin S. Sharma, escritor e orador motivacional canadiano (1965-), in “O monge que vendeu o seu Ferrari”, Ed. Pergaminho, 2004
Foto da net.

16 novembro, 2018

"A Preferida", conto (sem censura) de Rubem Fonseca

A PREFERIDA
"Minha mulher Raquel é ciumenta. Ela costumava me seguir, disfarçadamente, ou então contratava alguém para fazer isso.
Tenho que tomar muito cuidado quando abraço a minha Preferida. Sinto uma espécie de eflúvio, que vem da terra, que vem do ar, um perfume embriagador.
Minha mulher me perguntou:
«Você não gosta mais de fazer amor comigo, Pedro?»
«Gosto… gosto…»
«Então por que não faz?»
Abraço minha mulher, penso na minha Preferida e consigo cumprir minha obrigação de marido. Confesso que antes de encontrar a minha Preferida eu era um sujeito promíscuo. Não sei quantas abracei, às escondidas, algumas vezes à noite, sempre tendo o cuidado de não ser visto por ninguém.
Mas tornei-me outra pessoa depois que encontrei a minha Preferida. Quando eu a abraçava, ficava excitado, encostava o meu pénis nela e ejaculava, Isso me criava um problema, ou melhor, dois problemas. Eu tinha que entrar em casa, correr para o banheiro e lavar aquela cueca. Depois, na cama, era um problema com Raquel. Por uma dessas coincidências - quando penso em coincidência vem-me à mente a frase de Einstein «Coincidência é a maneira que Deus encontrou para permanecer no anonimato», cujo significado nunca entendi direito, mas também nunca compreendi sua fórmula de equivalência massa-energia, E=m2, a equação mais famosa do mundo. Alguém entende? Uma vez pedi ao meu professor de física, na universidade, que me explicasse aquilo e ele não conseguiu -, mas, como eu ia dizendo, por uma dessas coincidências, em um dos dias que encontrei a minha Preferida, Raquel quis fazer amor comigo.
«Novamente, Pedro? O que está havendo? Você tem outra mulher? Anda, diz a verdade, seu farsante, você anda com outra mulher?»
«Não, Raquel, estou apenas cansado.»
«Cansado de ficar sentado no escritório? Você pensa que eu sou alguma idiota?»
Raquel me agarrou pelo pescoço com tanta força que quase desmaiei.
«Se eu pegar você com outra mulher eu… mato os dois, os dois», ameaçou Raquel.
Certa ocasião eu li, não lembro onde, uma frase que dizia que existe um tempo para ousadia e um tempo para cautela, e o homem sábio conhece o momento de cada um deles. Eu me considerava um homem sábio, mas infelizmente estava cada vez mais ousado e menos cauteloso.
Um dia eu estava fazendo sexo com a minha Preferida quando fui surpreendido pelo flash de uma máquina fotográfica. Alguém me agarrou, senti uma pancada na cabeça e desmaiei.
Acordei numa cama de hospital, com os pulsos presos no gradil da cama.
Um sujeito de avental branco entrou no quarto.
«Está na hora da sua injeção», ele disse.
«Injeção? Por que estou preso aqui nesta cama?»
«O senhor sofre de uma doença muito grave. Dendrolatria patológica de terceiro grau.»
«Não sofro de doença nenhuma, quero ir embora, solte os meus pulsos, quero ir embora.»
«Temos fotos que comprovam o seu comportamento psicopatológico.»
«Fotos? Que fotos?»
«O senhor quer ver?»
«Quero, muito.»
Ele tirou do bolso uma foto e me mostrou. Eu estava fazendo amor com a minha Preferida, vestido, mas com o pénis de fora, enfiado nela.
«Desde quando a cópula é um comportamento psicopatológico?»
«Desde que ocorra com uma árvore. O exame de DNA vai provar que os inúmeros vestígios de esperma no caule são da sua autoria.»
A foto continuava na minha mão. A minha Preferida era mesmo uma árvore de caule grosso. Então ocorreu uma revelação arrebatadora: eu sempre fizera sexo com árvores, eu copulava com as árvores.
Antes que eu pudesse raciocinar sobre isso, o médico me aplicou uma injeção e perdi os sentidos."
 Leia e divirta-se!
BOM FIM DE SEMANA!

13 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "lágrimas"


Ninguém merece as tuas lágrimas e quem quer que as mereça não te vai fazer chorar.”



Frase de Gabriel García Márquez, escritor colombiano (1928-)
Prémio Nobel de Literatura, 1982

(Foto de ANTÓNIO GOMES, do blogue "Existe Sempre um Lugar". Obrigada, amigo!)

09 novembro, 2018

"Emprestadar" livros... e ingratidão!

Aos 10 anos mudei-me com pais e irmã para o "Prédio Valente", na Av. Pinheiro Chagas, em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique.
Aos 12 vi chegar ao prédio a Nina, uma menina nascida em Quelimanefilha de pais goeses, que logo se tornou a minha melhor amiga. Éramos da mesma idade. Frequentávamos a mesma escola. Vivíamos no mesmo prédio e no mesmo piso. Eu sentia-me bem em casa dela (a mãe era docinha como mel), ela, introvertida, evitava a minha. Os nosso pais eram bons amigos. Nós, amigas inseparáveis!
A Nina tinha uma irmã, a Iolanda,  dez anos mais velha que nós. Naquele tempo, dez anos de diferença de idade era uma grande diferença. Ela pintava as unhas de vermelho, nós ruíamos as unhas. Ela trabalhava, nós estudávamos. Ela namorava, nós gastávamos tempo a jogar às cartas, ao ringue ou à macaca, a trocar cromos, a ver filmes, a ouvir na rádio canções meladas.  Ela lia "livros sérios", nós líamos foto-novelas. E por aí fora...
Aos 18 anos, já eu namorava o pai dos meus filhos, a Iolanda era mãe-solteira de um lindo menino loiro e vivia com ele num apartamento arrendado, na mesma rua. Éramos amigas! Eu admirava-a pela força e coragem e ouvia embevecida os seus sábios conselhos.
Sentia-me bem em casa dela. Uma casa pequena, acolhedora, confortável, que… tinha dentro muitos livros.
Na altura já eu tinha largado as foto-novelas (fui obrigada!) e lia fogosamente tudo o que me aparecia à frente. Como nas livrarias eram poucas as novidades, eu encomendava livros a livrarias da Metrópole e chegavam-me pelo correio. Era uma alegria abrir aqueles pacotes - previamente vistoriados pela polícia política - tirar de dentro os livros com cuidado, cheirá-los, desfolhá-los, assiná-los e devorá-los, literalmente, mas com alguma calma porque a próxima remessa tardaria a chegar, ou mesmo não chegar se os meus gostos literários não agradassem ao agente da PIDE que visionasse  o pacote dos meus livros. Isso acontecia mesmo! A Isabel, minha colega e amiga, foi duas vezes chamada e interrogada sobre livros que recebia de Portugal. «Meros romances», dizia ela, que nunca recuperou. Era assim, naquele tempo líamos apenas o que os esbirros do fascismo permitiam.
Voltando à Iolanda, recordo o dia em que sentada no sofá da sua sala, olhando, remirando e por vezes mexendo nos seus livros, lhe pedi emprestado "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós, e ela respondeu sem qualquer hesitação.
- Não! Podes ler aqui esse livro e todos os outros, levares é que não.
Emudeci estupefacta, poisei o livro e saí. Tristíssima!
Demorei a voltar a casa dela. Um livro não nos separou,  mas criou silêncios incómodos.

Muitos anos depois, já em Portugal, os livros tornaram-se os meus amigos silenciosos e disponíveis, e eu compreendi a atitude da Iolanda quando passei a assiná-los, a anotar o mês e o ano da leitura, a sublinhar frases, a fazer anotações nas margens, enfim, deixaram de ser do autor e passaram a ser meus.
O “não” da Iolanda doeu, mas nada aprendi com ele. Ainda hoje não sei dizer NÃO quando me pedem um livro emprestado e isso deixa-me furiosa.
Furiosa, porque são bastantes os livros que emprestei e não me foram devolvidos.
Sei o nome de todos eles, e são bastantes. Sei com quem estão. Sei também que nunca os conseguirei pedir de volta. Falta-me a determinação da Iolanda.
Há uns anos atrás a minha filha emprestou, sem eu saber, um livro meu a um amigo dela. Quando dei pela falta d’ “O Perfume”, de Patrick Süskind, fiz uma cena danada e exigi que ela pedisse o livro ao amigo. Passaram-se meses, passaram-se anos e ela não aparecia com o livro. «Perdi-o para sempre», pensava eu.
Ela, como eu, lamentavelmente, não conseguia pedir o livro ao amigo e, para me calar, comprou-me um livro novo. 
Calei-me, mas sempre que olho para “O Perfume” não o reconheço como meu. Falta-lhe tudo lá dentro. E deprime-me pensar que ele está em outra casa que não a minha, a ser manuseado por outras mãos que não as minhas, a ser lido segundo o fio condutor das minhas anotações.
Dói muito, “emprestadar” livros!

Regressei a Portugal em 1975. Encontrei a Iolanda  cerca de 10 anos depois. Eu vivia num apartamento confortável e quase cheio de livros, ela numa tenda, no Jamor, cheia de "retornados" alojados pelo IARN. Estarrecida, logo lhe ofereci ajuda e  ela começou a passar comigo os sábados, para lavar roupa na máquina, tomar um duche quente e decente, comer comida caseira, "botar" conversa. Nunca falávamos de livros, nunca me pediu emprestado um que fosse.
Muitos meses passaram até ao sábado em que ela não apareceu. Estranhei! Ela tinha o número do meu telefone fixo (não havia móveis, na altura). Aguardei!
Vários anos depois cruzámo-nos nas escadas rolantes de um Centro Comercial. Consegui ouvi-la dizer, enquanto eu subia e ela descia, que vivia em Sintra, em casa própria. Emudeci estupefacta (de novo com a Iolanda) e nem mais uma palavra ouvi, e nem uma só emiti. Na escada rolante, logo ali decidi que não seria um livro mas uma palavra a separar-nos: INGRADITÃO!

Av. Pinheiro Chagas, a mais larga  avenida de Lourenço Marques, anos 70.

"Prémio Valente - 5 pisos, 13 apartamentos por piso", no cruzamento da Av. Pinheiro Chagas com a Av. General Machado (o mesmo cruzamento da foto anterior).  Foto tirada após a independência. 

(Fotos da net.)

06 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "guerra"









“A guerra é o maior negócio do mundo, 
vale milhares de milhões, e é o mais opaco, 
o mais cruel, o que faz mais vítimas.”


Frase de Clara Ferreira Alves, jornalista e escritora portuguesa (1956-).
Foto da net.

02 novembro, 2018

"Esta velha angústia" - Fernando Pessoa

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano? Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer –
Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
(Um dos meus poemas preferidos.)

Sabia que (5):
1905 – Em Agosto (Fernando Pessoa) parte sozinho e definitivamente para Lisboa (…)
Continua a escrever poesia em inglês.
1906 – Matricula-se no Curso Superior de Letras.
1907 – Desiste do Curso Superior de Letras.
Lê os filósofos gregos e alemães; os decadentes franceses (…)
Em Agosto morre a Avó Dionísia deixando-lhe uma pequena fortuna. Com o dinheiro recebido, vai a Portalegre a fim de comprar material para montar um tipografia em Lisboa.
Instala, na Rua a Conceição da Glória, 38 e 40, a «Empresa Ibis – Tipografia e Editora», que mal chega a funcionar.
Recusa a oferta de bons lugares por os mesmos incluírem obrigações de horário que lhe seriam de obstáculo à realização da sua obra literária.”
("Fernando Pessoa, uma fotobiografia", de Maria José de Lancastre).

Não sabia? Eu também não!
O que importa é que agora sabemos.
Prometo partilhar mais informações sobre a vida do poeta do desassossego.
(Foto da net)

30 outubro, 2018

À terça - imagens e palavras: "instantes"

“Somos felizes durante os breves instantes em que fechamos os olhos.”


Frase de José Eduardo Agualusa, escritor angolano (1960), in “O vendedor de passados”, Ed. Quetzal, 2017
Foto de net.

26 outubro, 2018

"Um cavalo entra num bar" - David Grossman

Vocês fazem ideia do que é hoje manter uma alma? É um luxo, porra. Façam a conta e verão que sai mais caro do que rodas em magnésio. E estou a falar da alma mais simples, não de Shakespeare, Tchekhov ou Kafka, que aliás é material bastante bom, pelo menos é o que me dizem, eu pessoalmente não li nenhum.
"Quero que venhas ao meu espetáculo…
Mas para quê? Para que precisas de mim lá?
Quero que me observes… Que me observes bem e depois me digas.
Dizer o quê?
O que viste."
Avishi Lazar, juiz reformado (narrador-personagem deste estranho/genial romance/história de vida) e Dov Grinstein, comediante em fim de carreira, dois amigos na adolescência que a vida separou, vão reencontrar-se quarenta e três anos depois num longo espectáculo de stand-up comedy em Natania, uma pequena cidade israelita.
Sozinho no palco do bar decadente, o frágil Dov (ou Dovaleh), o cómico, o palhaço, o malabarista de palavras, o homem de meia-idade de rosto cadavérico de expressão ora doce, ora crispada, inicia o espetáculo com piadas no limite do politicamente correcto e do bom gosto, muitos palavrões, muitas anedotas, saltos desmesurados e corridas desenfreadas no palco …meus irmãos, minhas jóias, esta noite vamos festejar, vamos desbundar… 
Os espectadores aplaudem ruidosamente. Estão ali para se divertir com Dovalech que, lembram-se alguns, na infância andava sobre as mãos, de pernas para o ar, para confundir os adolescentes violentos que no bairro se riam dele.
No decorrer da performance, já com o público nas mãos, o humor irreverente, exagerado, torna-se humor triste com o comediante a desvendar dramas profundos da sua triste história de vida…vão ter de armar-se de paciência, meus irmãos, porque é uma história que, juro por Deus, ainda nunca contei num espetáculo, em nenhum e a ninguém em particular, e esta noite vai acontecer... e abordar assuntos sérios como o holocausto, a questão israelita, o conflito israelo-árabe.
A tensão aumenta. Não se ouvem risos. Incomodados, alguns espectadores abandonam a sala. Outros assobiam.
Sentado longe do palco, na penumbra, Lazar ouve o comediante tudo revelar sobre o tempo que passaram juntos num campo militar para jovens; sobre o que os uniu e o que os separou; sobre o  inferno da infância e da adolescência; sobre a estranha relação com o pai austero e com a mãe, uma sobrevivente do Holocausto.
Constrangido, percebe que o que Dov faz no palco... a transformação da matéria de vida em anedota... é um relato, também, da sua história de vida e da de muitos dos espectadores.

Um cavalo entra num bar” (prémio Man Booker International de 2017) não é um livro de leitura fácil mas não se consegue abandonar. A história de vida de Dov incomoda mas a excelência da escrita de Grossman prende-nos até ao epílogo.
Gosta de anedotas? Sim, então, aqui vai uma:
Um cavalo entra num bar e pede ao barman uma Goldstar à pressão. O cavalo emborca-a e pede um copo de whisky. Bebe-o e pede uma taça de arak. Bebe. Pede mais um shot de vodka e uma cerveja…  Como termina? Não sei!
Não sei pois é a única inconclusa de entre as muitas espalhadas na narrativa.
O que eu sei é que na penúltima página está lá, em destaque, uma frase de Fernando Pessoa. Para saber qual é leia/assista a este divertido/doloroso espectáculo de stand up.
Será que uma piada é só uma palavra?
Assim vai a vida, o homem põe e Deus lixa-o…

(Se não leu "Até ao fim da terra", extraordinário romance de David Grossman, corra a fazê-lo. Não se assuste com as primeiras 60 páginas, continue porque o deslumbramento está todo lá. Espreite AQUI o que escrevi sobre este romance, em 2012.)

Um cavalo entra num bar, de David Grossman
Tradução de Lúcia Liba Mucznik
Ed. D. Quixote, 2018
229 págs.

23 outubro, 2018

À terça - imagens e palavras: "vazio"


“Sentir solidão não é estar só, é estar vazio.”


Frase de Séneca, filósofo, escritor, mestre da retórica e estadista da Roma Antiga (-4/65)
Foto da net.

19 outubro, 2018

Viajando e aprendendo: Chile, Argentina, Patagónia

“Os olhos têm de viajar.”
Diana Veeland, francesa, ícone da moda internacional (1903-89)

Em 2004 o destino de férias foi na América Latina: Chile (Santiago do Chile, Valparaíso e Vina del Mar); Argentina (Buenos Aires) e Patagónia (El Calafate - Glaciar Perito Moreno.)
Chile, com cerca de 757.000 km2 de superfície e 15 milhões de habitantes, ocupa uma longa e estreita faixa costeira encaixada entre a cordilheira dos Andes e o oceano Pacífico. Faz fronteira a norte com o Peru, a nordeste com a Bolívia, a leste com a Argentina e a Passagem de Drake, a ponta mais meridional do país. O oceano Pacífico forma toda a fronteira oeste do país, com um litoral que se estende por 6.435 quilómetros.
Do seu território faz ainda parte a Ilha de Páscoa e a Ilha Sala y Gómez, as ilhas do leste da Polinésia, que incorporou ao seu território em 1888, e a Ilha Robinson Crusoe, a mais de 600 quilómetros do continente, no Arquipélago Juan Fernández.
O clima é variado, seco  no deserto o Atacama, no norte do país, mediterrânico no centro, e alpino propenso a neve no sul, com geleiras, fiordes e lagos.
Santiago do Chile, a capital e maior cidade chilena, tem pouco mais de 5 milhões de habitantes. Foi fundada pelo conquistador espanhol Pedro de Valdivia, em 1541, num vale designado “vale central”.
Sempre debaixo de uma irritante chuva miudinha caminhámos pelo centro histórico, conhecemos o Palácio La Moneda (sede do governo), a Plaza das Armas, a imponente Catedral Metropolitana de Santiago, o Museu Histórico Nacional.
Fomos a Valparaíso, a cidade portuária conhecida pelas casas coloridas nas colinas íngremes e claro, andámos de funicular.
Numa das colinas visitámos a casa-museu de Pablo Neruda, donde se avista o Pacífico. Lamentavelmente, ou talvez não, era proibido fotografar o interior da peculiar casa.
A Argentina é o segundo maior país da América do Sul, constituída por uma federação de 23 províncias e uma cidade autónoma, Buenos Aires. É o oitavo maior país do mundo em área territorial, o maior entre as nações de língua espanhola e o quarto maior da América (depois de Canadá, Estados Unidos e Brasil).
A área continental da Argentina situa-se entre a Cordilheira dos Andes a oeste e o Oceano Atlântico, a leste. Faz fronteira com Paraguai e Bolívia ao norte, Brasil e Uruguai a nordeste e com o Chile a oeste e sul. A sua superfície total legal é de 3 745 247 km², dos quais 2 780 400 km² correspondem ao continente americano e 964 847 km² ao continente antárctico.
O seu território divide-se em três partes distintas: as planícies férteis das Pampas no norte do país, que são o centro da riqueza agrícola da Argentina, o planalto da Patagónia ao sul até à Terra do Fogo, e a escarpada cordilheira dos Andes ao longo da fronteira ocidental com o Chile, cujo ponto mais elevado é o monte Aconcágua, com 6 960 m de altura.
Buenos Aires é a capital e maior cidade da Argentina (200 km2), com cerca de 13 milhões de habitantes. 
Uma cidade lindíssima localizada na costa ocidental do estuário do Rio da Prata, grande, plana, que convida a longas caminhadas. Foi o que fizemos, tranquilamente, depois de visitarmos, com um guia local, as zonas mais turísticas: a Plaza de Mayo (lugar de manifestações populares) e seus arredores, a Avenidade de Mayo; a Plaza del Congresso; a Casa do Gobierno, também chamada Casa Rosada, sede da presidência do governo (um imponente edifício do século XIX), o Congresso Nacional, a Catedral Metropolitana (o templo católico mais importante da cidade).
Destaco a emocionante visita guiada, com a duração de uma hora, ao majestoso Teatro Colón, cuja acústica é considerada a melhor do mundo. Vimos TUDO, desde a grande e bela sala principal à cave, onde estão localizadas as oficinas dos cenários, adereços, vestuário,  sapataria, cabeleiras, etc., etc.
Nas ruas, aqui e ali, de dia e de noite, exímios bailarinos de tango encantam os transeuntes.
Saí de lá com uma vontade enorme de aprender aquela dança sensual. Nunca o fiz!
No centro da cidade há uma enorme oferta de restaurantes, churrascarias e tascas para todos os gostos e bolsos. Comemos o tradicional assado crioulo e comprovo: a carne argentina é fabulosa!
Festejámos o meu aniversário num sítio lindo, lindo,  onde jantámos e assistimos a um belíssimo espectáculo de Tango.
Asseguro: Buenos Aires é a capital do tango e da boa carne!
Sobre compras, por todo o lado se veem lojas com uma grande variedade de produtos de couro, prata, artesanato e muito mais, com TUDO a preços acessíveis. Uma tentação! Fazer compras em Buenos Aires foi (é, certamente!) bom demais.
Sobre diversão a oferta é grande: exposições, feiras (ao fim-de-semana), teatros, museus, espectáculos de tango, intensa vida nocturna.
Acontece que a viagem tinha de continuar. A Patagónia chamava-nos e lá voámos nós para El Calafate, na Patagónia.
A Patagónia é uma região situada no extremo sul do continente americano, conhecida como Região de Magalhães e que compreende o sul da Argentina e o sul do Chile.
A região mais meridional do continente é conhecida como Terra do Fogo (Tierra del Fuego). Nessa região está localizada a cidade mais austral do planeta, Ushuaia, conhecida como "a terra do fim do mundo".
El Calafate é uma pequena cidade localizada na província de Santa Cruz, Argentina, próximo da fronteira com o Chile, com aproximadamente 5.500 habitantes, um aeroporto moderno e hotéis de qualidade e enorme conforto.
O clima é frio, com média anual de sete graus, temperaturas máximas de treze graus e mínimas de dez abaixo de zero.
Ali, o frio é "frio", mas suportável. Convida aos afectos e afagos da alma.
El Calafate é a cidade mais próxima do Parque Nacional dos Glaciares, a cerca de 80 quilómetros, onde se localiza a maior geleira em extensão horizontal do mundo: Glaciar Perito Moreno, com 5 km de largura e 60 m de altura acima da superfície da água do lago.
Devido ao seu tamanho e acessibilidade, Perito Moreno é uma das principais atracções turísticas da Patagónia argentina. Um colosso!
Três dias depois de vários e agradáveis passeios (recusei caminhar sobre o glaciar e sobrevoá-lo de avioneta) e de uma emocionante visita a uma herdade onde vi pela primeira vez ovelhas a serem tosquiadas e comi o melhor dos melhores churrascos de carne,  voltámos a Buenos Aires, e ao mesmo hotel, desta vez lotado de turistas brasileiros que "tinham fugido" de um fim-de-semana prolongado no Brasil.
Numa das longas caminhadas pela cidade fomos dar ao mítico Estádio do Boca Juniors (La Bombonera).  Desilusão! O estádio nesse dia estava encerrado.
O Carlos ficou triste mas eu... diverti-me entrando e saindo das muitas lojas de lembrancinhas foleiras,  fotografando e deixando-me fotografar no extravagante Bairro La Boca.
Esta foi mais uma viagem fantástica e inesquecível.
Gostei muito de Buenos Aires, uma cidade incrivelmente cativante.
Apesar das marcas, ainda bem visíveis em 2004 , da crise económica e política de 2001, mostrava orgulhosa toda a sua beleza e alegria.
Recomendo!

Mais fotos aqui.
(As fotos, de pouca qualidade, são digitalizações de fotos em papel. Eram outros tempos...)

16 outubro, 2018

À terça - imagens e palavras: "amanhã"


"Amanhã fico triste, Amanhã. Hoje não. Hoje fico alegre. E todos os dias, por mais amargos que sejam, Eu digo: Amanhã fico triste, Hoje não. Para hoje e todos os outros dias!"


Texto encontrado na parede de um dormitório de crianças, no campo de extermínio nazi de Auschwitz.
Foto da net.

12 outubro, 2018

Versos de José Tolentino Mendonça


MURMÚRIOS DO MAR
«Paga-me um café e conto-te
a minha vida»

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu não, tu nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

«pago-te um café se me contares
o teu amor»

A FALA DO ROSTO
És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra

Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos

Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas

Por ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos

É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas a Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento
José Tolentino Mendonça, arcebispo da Igreja Católica, escritor e poeta português, é desde 1 de Setembro de 2018 Arquivista do Arquivo Secreto do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, cargos na Cúria Romana.
É professor e foi vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, até à sua nomeação episcopal em 26 de Junho de 2018. Foi também director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.
Nasceu a 15 de Dezembro de 1965, no Machico, Madeira-Portugal.
(Fotos da net.)

09 outubro, 2018

À terça - imagens e palavras: "livro"

“Um livro é um enigma como as pirâmides do Egito. É um laboratório em combustão. Uma saída de emergência. Um clube de socorro a náufragos. Um intercomunicador entre silêncios. Um lança-chamas. Um abrigo de floresta. Um trilho mais adiante.”


Frase de José Tolentino Mendonça, teólogo e poeta português (1965-)
Foto da net.

05 outubro, 2018

"Barroco tropical" - José Eduardo Agualusa

Luanda corre a toda a velocidade em direcção ao Grande Desastre. Oito milhões de pessoas aos uivos, aos choros e às gargalhadas. Uma festa. Uma tragédia. Tudo o que pode acontecer acontece aqui. O que não pode acontecer, acontece igualmente. (...) Somos incrivelmente ricos. Produzimos metade dos diamantes vendidos no mundo. Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindos do futuro, uns, e outros de um passado sem nome.
Em “Barroco tropical” (2009) José Eduardo Agualusa tece um retrato sarcástico da sociedade angolana, de Luanda em particular, no ano 2020.
A história/testemunho começa com uma mulher nua, negra, de braços abertos a cair do céu de Luanda, durante uma tempestade tropical. As únicas testemunhas do insólito facto são Bartolomeu Falcato (escritor e cineasta), e a sua amante Kianda (cantora com uma carreira internacional de sucesso), os narradores-protagonistas de uma sinuosa trama.
Bartolomeu aproxima-se do corpo enterrado na lama e reconhece Núbia, a modelo, jornalista, ex-Miss Angola, amiga da mulher do Presidente, acompanhante de políticos influentes e empresários endinheirados, com quem viajou de Lisboa para Luanda, cinco dias antes. Assustado, abandona o local com a amante, sem chamar a polícia. Não podiam ser vistos juntos.
À noite, em casa, no quadragésimo sétimo andar da Termiteira -  edifício construído na época da euforia do petróleo, destinado em particular à burguesia emergente e onde agora ricos e pobres partilham o mesmo espaço, como acontece lá fora, nas ruas da cidade, com a diferença de que aqui vivemos literalmente uns por cima dos outros - quanto mais ricos mas acima - Bartolomeu assiste na televisão à descoberta do cadáver e logo depois um homem sussurra-lhe ao telefone: - Fuja, se está em casa saia agora. Vão matá-lo. 
Assustado, recorda afirmações que Núbia fizera e que a serem verdadeiras justificaria que a tivessem atirado de um avião ou de um helicóptero. Ela sabia demais e foi certamente isso que a matou. Decide investigar e cruza-se com singulares e contraditórias testemunhas/personagens: Sangue Frio; Humberto Chiteculo; Benigno dos Santos (sogro de Bartolomeu); Bárbara Dulce (psicóloga, ex-mulher de Bartolomeu); Mouche Shaba (artista plástica); Rato Mickey (ex-António Taborda, sapador de rosto desfigurado); Mãe Mocinha (brasileira que procurou em Luanda um marido bonito e muito preto); Tata Ambroise (curandeiro), etc., etc., e com o Medo, a testemunha principal. Escrevo Medo assim, com maiúsculas, porque não estou a falar dos assuntos minúsculos com que as pessoas comuns convivem no dia-a-dia (...) estou a referir-me, em concreto, ao sentimento de permanente angústia e desamparo que aflige as pessoas com opiniões diferentes em países sujeitos a regimes totalitários.
O que descobre Bartolomeu? Sobrevive? Se tudo conta, mesmo com medo, é porque não morreu!
E o que é feito de Kianda a cantora de sucesso? Voa de palco em palco até ao voo final. Trágico!

Dos romances que já li de José Eduardo Agualusa este é o mais estranho e complexo. Não me desiludiu, mas lê-lo não foi tarefa fácil, devido aos saltos espaciais (África, Europa, América), aos muitos avanços e recuos temporais, à alternância de dois narradores, às dezenas de personagens de pequenas histórias, nem todas fundamentais para a narrativa principal.
Cheguei ao fim dos 25 capítulos aturdida mas, há que dizê-lo, fascinada pela beleza da escrita de JEA e mais conhecedora das forças e fraquezas dos seres humanos.
Um dia alguém pintou uma frase na parede do Aeroporto Internacional de Luanda: «Bem-vindo à Lua. Entre e deixe a razão lá fora.»

"Barroco tropical", de José Eduardo Agualusa
Ed. Quetzal, 2018
372 págs.

03 outubro, 2018

Para uma amiga especial...

O POEMA
O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.

E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.


FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA AMIGA!
Porque amas poesia escolhi para ti versos da poetisa portuguesa Natália Correia.
E porque também amas flores, colhi estas para ti no jardim de um outro amigo, o António Gomes.
Beijo.

02 outubro, 2018

À terça - imagens e palavras: "mentira"



“O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira, todos os dias.”


Frase de José Saramago, escritor português (1922-2010)
Prémio Nobel de Literatura, 1998
Foto da net.

28 setembro, 2018

Caixa de memórias: livros de autógrafos

Um dia destes, ao mexer numa caixa de memórias que guardo na arrecadação, encontrei dois livros de autógrafos dos meus 11, 12 e 13 anos. (Sim, eu sou do tempo em que os(as) adolescentes coleccionavam autógrafos de colegas, de professores, de familiares, de amigos e de ídolos.)
Fiquei contentíssima!
Desfolhei folha por folha, com todo o cuidado.
Li e reli, todas as frases e versos.
Mirei e admirei os desenhos, alguns simples e outros muito rebuscados.
Tentei associar os nomes a rostos, mas não consegui.
Voltei a invejar (inveja boa) a letra linda da Anabela, a chefe da minha turma no 1º ano do Ciclo Preparatória da Escola Técnica Elementar Governador Joaquim de Araújo, em Lourenço Marques (actual Maputo).
Descobri alguns conselhos de professores e professoras. Segui-os? Hum, nem todos.
E a dada altura... descobri um autógrafo do rei Eusébio?
Do Eusébio? Eu, que mal nasci ouvi o meu pai dizer que eu teria de ser sportinguista como ele... e sou!
Sempre que equipas de futebol portuguesas (da Metrópole) iam jogar a Lourenço Marques, rapazes e raparigas esperavam os craques à porta do hotel onde estavam alojados para conseguir um simplesinho autógrafo. E eu, por estranho que agora me pareça, também para lá ia...
No dia em que entrei em casa eufórica com o livro aberto no autógrafo do rei, o meu pai quase teve uma síncope. Não gostou da brincadeira e ficou  "verde de raiva". Verde da cor da camisola do Sporting, e só acalmou quando o convenci que eu continuava a preferir o verde ao vermelho, o leão à águia.
(A ida de um equipa de futebol da Metrópole a Lourenço Marques provocada uma onda de loucura total na cidade.)
Mais adiante descobri um autógrafo dos elementos do Conjunto Académico João Paulo, cujas baladas românticas me despedaçavam o coração. Assisti a um concerto deles no Teatro Gil Vicente e cantei e dancei e chorei de encantamento. Garotinha!!!!
A minha canção preferida era "Eu tão só".  Porquê não sei, pois na altura namoriscava com o baterista de um conjunto local e não faltava a um espectáculo  nem tarde dançante onde actuasse. Não dançava, limitava-me a olhar embevecida para os gestos tresloucados dele a martelar nos pratos, bombos, ferrinhos e pandeiros. 
Os meus pais (uma ida ao baile sem os pais era impossível naquela idade) estranhavam o meu comportamento sem suspeitarem, grande sorte, que o meu coração dançava ao compasso daquela bateria. 
Foram muitas as horas da minha adolescência gastas a olhar para o baterista. Muitas horas mesmo porque ele vivia no prédio à frente do meu e de varanda para varanda também nos olhávamos à exaustão.
Um dia fartei-me de tanto barulho da bateria e de tanto olhar para a mesma varanda e terminei o namorico. Melhor, mandei-lhe um recado por uma amiga comum: acabou! Eu, novinha, imberbe, não consegui fazê-lo. Envergonhada, fugi da varanda e deixei de ir a tardes dançantes onde ele actuasse. Nunca me perdoei e através de amigos soube que também ele nunca me perdoou. Já em Portugal, mais madura, procurei-o para lhe olhar nos olhos e pedir desculpa. Nunca o encontrei!
Aos quinze anos conheci aquele que viria a ser o pai dos meus filhos e com ele casei aos dezanove. Tinha mais seis anos do que eu, não tocava qualquer instrumento, nem gostava de dançar, mas lia, lia muito. Depois do barulho o silêncio, tanto melhor!

Kanimambo Moçambique, por tantas boas memórias da minha infância e adolescência.
Voltarei à minha caixa de memórias... e saudades!
(Lourenço Marques nos anos 60. Foto da net.)
(Baixa de Lourenço Marques pouco antes da independência. Foto da net.)