Debaixo do chuveiro eu deixava suas mãos escorregarem pelo meu corpo, e suas mãos eram inesgotáveis, e corriam perscrutadoras com muita espuma, e elas iam e vinham incansavelmente, e nossos corpos molhados vez e outra se colavam …
“Um copo de cólera”, escrito em 1970 e publicado em 1978 (em plena ditadura militar brasileira, momento de privação de liberdade de expressão e política), o segundo dos três livros do escritor de «obra curta» reconhecido pela crítica brasileira e internacional, é uma coreografia erótica e feroz, um combate verbal e carnal, um fogo violento e dulcíssimo, uma tremenda novela protagonizada - entre arranhões e lambidinhas - por um casal de amantes que se resguarda no anonimato: um homem de meia-idade, uma jovem jornalista.
Amam-se e odeiam-se, em igual medida; une-os a inteligência e a fúria; separa-os fortes convicções políticas e sociológicas. As diferenças etárias e sociais são o excitante da relação.
(Ora vamos lá desvendar o mínimo dos mínimos duma história de amor que não é para ser contada mas antes devorada... sofregamente!)
... eu já estava bem enxaguado quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela minha pele d'água..
Numa manhã depois de uma noite deleitosa, um pretexto insignificante – um «rombo» na cerca da fazenda onde o homem vivia isolado - lança os amantes numa discussão violenta e cruel, uma desordem cheia de sexo, política e filosofia, um duelo verbal com insultos vitriólicos, um copo de cólera em ebulição, um jogo de poder em que o objectivo derradeiro parece ser a aniquilação do outro. Ele chama-lhe «pilantra, naninca, trepadeirinha, femeazinha emancipada, jornalistinha de merda, filha-do-cacete, titica de tico-tico…»; Ela chama-lhe «fascistão, biscateiro graduado, reacionário, arrogante, monstro, sacana…»
TUDO é relatado pelos amantes em sete capítulos curtos, que enchem pouco mais de uma centena de páginas de prosa arrebatadora, quase sem pontos finais.
A chegada (“E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando no gramado, veio me abrir o portão (…) subimos juntos a escada pro terraço…”;
Na cama
O levantar
O banho
O café da manhã
O esporro (o bate-boca, a tempestade de insultos que leva à agressão, ocupa dois terços da novela);
A Chegada ("E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto (…) a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera…”)
Ele é o narrador dos primeiros seis capítulos. Ela do sétimo, ao voltar (sim, porque ela volta!) no dia seguinte, bem cedo, tomada por uma «virulenta, súbita e insuspeitada vertigem de ternura».
Personagens secundárias: o casal de caseiros (dona Mariana e seu Antônio) e Bingo (o irado vira-latas).
... eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos para que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo.
Diz ele: «vá pôr a boca lá na tua imprensa, vá lá pregar tuas lições, denunciar a repressão, ensinar o que é justo e o que é injusto, vá lá derramar a tua gota na enxurrada de palavras, desperdice o papel do teu jornal, mas não meta a fuça nas folhas do meu ligustro»
Diz ela: «compreende-se, senhor, sou bem capaz de avaliar os teus temores… tanto recato, tanta segurança reclamada (…) ergue logo um muro, constrói uma fortaleza (…) isso me leva a pensar que dogmatismo, caricatura e deboche são coisas que muitas vezes andam juntas, e que os privilegiados como você, fantasiados de povo, me parecem em geral como travesti de carnaval»
No início estranhei (o que é isto?!), depois devorei (numa avidez inusitada) uma história irónica, erótica e feroz (repito-me, eu sei), vivida numa sociedade «rasgada» - muitíssimo bem contada… escrita... imaginada... sentida... Eu sei lá!
Leia também!
Um como de cólera, de Raduan Nassar
Companhia das Letras, 2016
116 págs.