28 outubro, 2014

O Céu piscou-te o olho, não foi?... em "A rainha da neve", de Michael Cunningham

"O Céu piscou-te o olho, não foi? Talvez. Talvez o tenha feito. Ou talvez fosse apenas um avião ou uma nuvem. Mas, se o Céu pisca o olho a qualquer pessoa, é provavelmente aos menos evidentes, aos que procuram entre trapos e farrapos do lixo, àqueles que optam pela vereda em vez da avenida, o buraco na sebe em vez dos portões triunfais. Talvez por isso não existam provas verificáveis, não é? O universo só pisca o olho àqueles em que ninguém irá acreditar.”

24 outubro, 2014

"Inês da minha alma" - Isabel Allende

O meu nome é INÊS SUÁREZ, habitante da leal cidade de Santiago de Nova Extremadura, no Reino do Chile, neste ano de Nosso Senhor de 1580. Não tenho certeza da data exacta do meu nascimento, mas a minha mãe assegura que nasci depois da grande fome e do tremendo surto de peste que assolou a Espanha logo após a morte de Filipe, o Belo.
Começa assim a história - misto de realidade e ficção - de Inês Suárez, a costureira espanhola que rumou ao Novo Mundo em busca do amor, aventura e liberdade, participou na conquista e fundação do Reino do Chile e se tornou rica e influente.
Inês nasce na Estremadura espanhola, em 1507. Aos dezanove anos conhece Juan de Málaga, que virá a ser o seu primeiro marido. Ele é bonito, alegre, tem porte de guerreiro. Mas também é vaidoso, preguiçoso e gastador. Inês trabalha e ele gasta. Logo ela percebe que aquele casamento foi um erro e, por isso, quando Juan parte à aventura para o Novo Mundo, no outro lado do Atlântico, a paixão que ambos partilhavam já há muito se transformara num desgosto.
Quando Inês deixa de receber notícias do marido, decide ir procurá-lo e segui-lo na sua aventura, custasse o que custasse, não por amor, porque já não o sentia, nem por lealdade, que ele não merecia, mas porque sonhava ser livre.
Sem dizer nada a ninguém, trata dos preparativos da viagem e quando obtém a licença real ruma ao Novo Mundo. Com ela leva Asunción, a sobrinha de quinze anos. É a primeira vez que o navio do Mestre Manuel Martín transporta mulheres e ele aconselha prudência a Inês.
Em Agosto de 1537, o navio chega a Cartagena das Índias. Para as duas mulheres começam as aventuras: Asunción casa no dia seguinte, com um passageiro da embarcação; Inês mata o marinheiro que entra no seu quarto sem ser convidado. O Mestre Martín desfaz-se do corpo e aconselha-a a sair de Cartagena, quanto antes. Inês parte sozinha para a cidade do Panamá e dali embarca para o Peru.
No Peru, Inês sabe da morte do marido. Decide não regressar a Espanha.
Diz ela: Juan de Málaga estava morto e eu estava livre. Posso afirmar com toda a certeza que foi nesse dia que a minha vida começou.
E começou mesmo, quando encontrou Pedro, o grande amor da sua vida. Com Pedro de Valdivia vivi um amor digno de uma lenda, e com ele conquistei um reino… a minha vida só vale a pena ser contada porque participei na conquista do Chile, junto de Pedro de Valdivia.
Pedro era mestre de campo, herói de muitas guerras, homem ambicioso, rico e poderoso. Quando conhece Inês já tinha decidido abandonar o Peru, onde havia tesouros incalculáveis, mas não chegavam para tantos pedinchões, e partir à conquista de outro território para deixar fama e memória de si. Sendo amantes inseparáveis, Pedro desafia Inês a acompanhá-lo:
Vamos para o Chile, Inês da minha alma…

Bem, decidi não desvendar mais sobre a vida desta singular senhora.Tendo ela vivido setenta e três anos - bem vividos - você não pode imaginar o quanto ficou por revelar.
Acredite que vale a pena ler (ou reler, como foi o meu caso) tudo o que ela contou à filha Isabel.
A propósito, Isabel nasceu do casamento de Inês com Rodrigo de Quiroga.
Confuso? Não, empolgante!

Inês da minha vida, de Isabel Allende
Tradução de Ana Mendes Lopes
Ed. Difel, 2006
342 págs.

21 outubro, 2014

"A vida de Gandhi" - Edmond Privat

"A religião de Gandhi consistia principalmente na maneira de viver. Ao deixar a Índia, já considerava a verdade como base de toda a conduta. Não se tratava apenas de dizer a verdade e ser honesto, mas de vivê-la e ser bom. Colocar-se na posição do vizinho parecia-lhe ciência e lei. Uma estrofe de Shamal Bhatt em guzerate, sua língua materna, inspirou muitas das suas experiências na arte de pagar com juros o Mal com o Bem.

Por uma pequena cuia de água, dá um copioso repasto;
A uma saudação amável, inclina-te mais ainda.
Por uma moeda de cobre, oferece outra de ouro,
E se te salvam a vida, oferece a vida outra vez.
Observa assim os atos e as palavras dos sábios.
Vê como pagam dez vezes o favor mais modesto.
Um coração nobre percebe que os homens não são senão um
E alegremente paga o Mal com o Bem.

A vida de Gandhi é a história de um hindu que pouco a pouco se foi firmando na certeza de que a coragem tranquila e o sacrifício voluntário têm um grande poder de convicção sobre os nossos semelhantes."

Há que ler... para aprender.

(Foto tirada da net.)

17 outubro, 2014

"As velas ardem até ao fim" - Sándor Márai

Uma pessoa prepara-se para alguma coisa durante a vida inteira. Primeiro, sente-se ofendido. Depois quer vingança. A seguir, fica à espera.
Decidi reler este extraordinário romance, ou melhor, este “tratado sobre a amizade, a paixão e a honra”, precisamente dez anos depois da primeira leitura, e voltei a deslumbrar-me com a excelência da escrita de Sándor Márai e a emocionar-me com a amizade que une Henry e Konrád. Só uma profunda amizade é capaz de sobreviver à passagem do tempo, à distância, à mentira, à traição.
Henry (filho de um oficial da guarda) e Konrád (filho de um funcionário público) conhecem-se num colégio interno localizado próximo de Viena. Têm ambos dez anos e, a partir desse dia, viverão como gémeos idênticos no útero da mãe: juntos no colégio militar, juntos nas férias e no Natal, juntos quando prestam juramento, juntos no apartamento arrendado junto da corte, nos primeiros anos de serviço.
Unia-os uma amizade séria e silenciosa, e ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza.
Konrád era sereno e reservado. Gostava de música. Tocava piano com a mãe de Henry. Lia livros sobre história, sobre o desenvolvimento social. Nunca há-de ser um verdadeiro soldado, dizia o oficial da guarda ao filho.
Henry não tinha ouvido para a música e achava-a perigosa. Apenas lia livros sobre cavalos e viagens. Seguiu a carreira militar. Chegou a general.
Havia algo no relacionamento dos dois, ternura, seriedade, dedicação, algo fatal…
Fatal foi Konrád ter apresentado Krisztina, sua amiga de infância, a Henry.
Logo depois, Henry casa com Krisztina, o seu único grande amor.
A relação dois dois amigos começa a mudar e, inesperadamente, sem dar conhecimento nem se despedir dos amigos, Konrád desaparece da cidade.
Mas regressa, quarenta e um anos e quarenta e três dias depois, e logo faz chegar uma carta ao general.
No castelo, que encerra segredos, silêncios e memórias, o velho general lê e relê a carta do amigo que lhe pede para o receber no castelo. Henry fala com Nini, a velha ama que o viu nascer e amamentou, a confidente – sabiam tudo um do outro – e pede-lhe para organizar um jantar como antigamente, sem esquecer as velas azuis na mesa.
- Que é que queres deste homem? – pergunta a ama.
- A verdade – disse o general.
- Conheces bem a verdade.
- Não conheço… É mesmo a verdade que não conheço.
- Mas conheces a realidade – disse a ama numa voz aguda, ofensiva.
- A realidade não é a verdade – retorquiu o general. – A realidade é apenas um pormenor.
Na hora do encontro, os dois amigos, agora com setenta e três anos de idade, examinam-se um ou outro. Konrád sabia que outra vez tinha de voltar ali e o general sabia que um dia chegaria esse momento. Viviam por essa razão.
Na sala de jantar, onde durante vinte anos não entrou um só convidado, os dois amigos estão sentados nos dois extremos da mesa, onde se alinham candelabros de porcelana com velas azuis. A meio da mesa está uma cadeira vazia. Aquele era o lugar de Krisztina, a mulher do general, que morreu aos vinte e oito anos de idade, oito anos após a fuga de Konrád.
Depois do jantar, ainda as velas ardiam no candelabro, o general faz ao amigo as duas perguntas que o atormentaram nas últimas décadas.
Pois é, mas... as velas arderam até ao fim e eu, às escuras, não posso revelar mais sobre o enredo deste excelente romance. Posso, sim, aconselhar vivamente a sua leitura. Será inesquecível.

As velas adem até ao fim, de Sándor Márai
Tradução de Mária Magdolna Demeter
Ed. Dom Quixote, 2001
153págs.

14 outubro, 2014

Temos de suportar... em "As velas ardem até ao fim", de Sándor Márai


"Temos de suportar o nosso carácter, o nosso temperamento, já que os seus defeitos, egoísmo e avidez, não os mudam nem a experiência, nem a compreensão. Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem, ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é mais difícil entre todas as tarefas humanas, tempos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa."

10 outubro, 2014

"Os factos" - Philip Roth

“E enquanto ele falava eu pensava: em que histórias as pessoas transformam a vida, em que vidas as pessoas transformam as histórias."
(Nathan Zuckerman, em The Counterlife)

O livro "Os Factos - Autobiografia de um Romancista” abre com uma carta de Philip Roth para Nathan Zuckerman. (Conhecem, não?! Ele é o protagonista-narrador de nove romances de Philip Roth)).
Nessa carta, Roth explica o porquê do livro, escrito absolutamente ao contrário, pegando naquilo que já imaginei e, por assim dizer, dissecando-o, para assim devolver a minha experiência à sua factualidade original e pré-ficcionada. Para provar que existe um fosso importante entre o escritor autobiográfico que as pessoas pensam que eu sou e o escritor autobiográfico que sou.
O livro vale alguma coisa? Sê franco.
De seguida, escreve sobre cinco episódios da sua vida:
- a infância urbana e protegida, nos anos trinta e quarenta
- a preparação para a vida americana numa universidade conservadora, nos anos cinquenta
Eu acabei o liceu em janeiro de 1950 … tinha querido desesperadamente ir para uma universidade longe de casa… não tinha conseguido bolsa de estudos… acabei por ficar em Newark e continuar a viver em casa dos meus pais.
Em Março de 1951, os meus pais e eu fizemos a viagem de sete horas de carro até Lewisburg… ia ser admitido em Bucknell.
- o envolvimento tumultuoso, quando era jovem e ambicioso, com a pessoa mais colérica que conheceu em toda a sua vida («a rapariga dos meus sonhos», como Roth lhe chama)
Josie (nome verdadeiro Margaret Martinson, a mulher com quem viveu mais anos) trabalhava como secretária na Divisão de Ciências Sociais… Conhecemo-nos (1956) e tornámo-nos amantes… Não vou descrever o que foi a nossa vida… exceto para dizer que me espanta tanto hoje como me espantou na altura que não tivéssemos acabado – um de nós ou ambos – mutilados ou mortos… Não há dúvida de que ela foi o meu pior inimigo de sempre mas, tenho de reconhecer, foi também o mais espantoso de todos os meus professores de escrita criativa, especialista por excelência em estética da ficção extremista.
Casei com ela.
- o choque com um influente grupo de judeus indignados com o seu Goodbye, Columbus
A humilhação que sofri perante os beligerantes da Yeshivá – ou antes, a raivosa oposição judaica que despertei praticamente desde o início – foi a melhor coisa que podia ter-me acontecido. Marcou-me a fogo.
- e a descoberta, nos excessos dos anos sessenta, de um lado inexplorado do seu talento
O que encontrei então em Nova Iorque, quando me separei da minha mulher (1962) e me mudei de Princeton… foram os ingredientes que inspiraram O Complexo de Portnoy, cuja publicação em 1969 determinou todas as opções importantes que fiz na década seguinte.
O livro termina com a carta-resposta de Nathan Zuckerman.
Li o manuscrito duas vezes. Aqui está a franqueza que me pedes:
- Não publiques - sais-te muito melhor a escrever sobre mim do que a relatar “fielmente” a tua vida… O meu palpite é que já escreveste tantas metamorfoses de ti mesmo que não fazes mais ideia do que és ou alguma vez foste. Agora não passas de um texto ambulante.
Ainda bem que ele publicou, pela “festa” que é “escutar” um dos maiores romancista americanos do século XX falar de si.
Será tudo verdade?
Isso não interessa. O que interessa é que Philip Roth é genial.
As recordações do passado não são recordações de factos mas recordações da nossa imaginação dos factos.

Os factos, de Philip Roth
Tradução de Francisco Agarez
Ed. D. Quixote, 2014
228 págs.

07 outubro, 2014

2º - Está num livro de José Saramago. Sabe qual é?

“Tenho de abrir consultório, vestir a bata, ouvir doentes, ainda que seja só para deixá-los morrer, ao menos estarão a fazer-me companhia enquanto viverem, será a última boa acção de cada um deles, serem o doente médico de um médico doente, não diremos que estes pensamentos sejam de todos os médicos, deste sim, pelas suas particulares razões por enquanto mal entrevistas, e também, Que clínica farei, onde, e para quem, julga-se que tais perguntas não requerem mais do que respostas, puro engano, é com actos que respondemos sempre, e também com os actos que perguntamos.”

Se não identifica o livro, depois eu direi qual é.
Se já leu, é fácil chegar lá. Vire as páginas. Releia. Deslumbre-se.
Se acertar, ganhará... um enorme aplauso!

O título do livro nº 1 é:
Memorial do convento”, publicado pela Editorial Caminho, em 1982

05 outubro, 2014

Há que divulgar...



A sessão de lançamento do livro de Rui Bernardino e de Cláudia Cambraia será no dia 18 de Outubro, sábado, às 17h30, no ISCAC – Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra.

Eis a sinopse:
"A doença que tem acompanhado o Rui Bernardino, a ataxia de Friedreich, limitou-lhe os movimentos e prendeu-o a uma cadeira de rodas, quando este tinha apenas vinte anos de idade. Porém, nunca conseguiu limitar-lhe a capacidade de sonhar. Hoje, com 36 anos de idade, o Rui continua a acreditar que “é possível”. O livro de que hoje se fala é a prova disso mesmo.
Como revela a editora, "É possível" é um livro de 108 páginas, que relata episódios verídicos, mais ou menos caricatos, de um percurso de vida, desde o nascimento até aos dias de hoje. O livro partilha a alegria e a tristeza.
A personagem principal é Rui Bernardino. Dotado de uma personalidade fortíssima, embora por vezes ingénuo, Rui revela a forma muito própria como vem lidando com uma vida condicionada pela cadeira de rodas. O livro destaca os pilares principais deste percurso: o tio Tó, também portador de ataxia de Frierdeich e a principal referência do Rui, Miguel Abrantes, o melhor e fiel amigo até aos dias de hoje, e a esposa Michelly Abreu. "Como os últimos são os primeiros", ela é sem dúvida a sua maior força.
Este livro é inspirador. Ele mostra que ser feliz só depende da nossa atitude, além de motivar todos os leitores a encontrarem o que de melhor têm para dar aos outros.
Todo o caminho do Rui é cheio de "coisas" diferentes. Hoje com um grau de incapacidade de 95%, sente as suas forças renovadas pela filha e pelos "ares" da cidade. O melhor ainda está, certamente, por vir!”

Força, Rui Bernardino!

03 outubro, 2014

Vale a pena ler...


P: Continua a ler os clássicos portugueses?
R: Continuo. Já estou numa fase de releitura, a começar pelo meu “amigo” Padre António Vieira.
Quando comecei a querer escrever, perguntei ao meu pai o que devia fazer. E ele disse: “Leia o Padre Vieira.” Depois perguntei: “E o segundo?” “Leia o Padre Vieira.” “E o terceiro?” “Leia o Padre Vieira.” 
Foi uma profecia. Passei a vida lendo o Padre Vieira…”

Excerto da entrevista concedida por José Sarney (31º Presidente do Brasil) a Manuel Carvalho, publicada no jornal Público de 28 Setembro 2014.
Vale a pena ler na íntegra.