31 julho, 2017

Carrego gostosamente com o lastro do passado...


Carrego gostosamente com o lastro do passado, albergo-o e permito que me acompanhe para todo o lado. A mim o que me incomoda amiúde é o presente, aquela sua lixada mania de se intrometer em tudo. O passado manda-se para a floresta do esquecimento e ali permanece, mesmo à custa de se converter em alimária. O presente, em contrapartida, espera-nos ao pé da floresta, a meio do caminho, e tem um machado na mão.”


Enrique de Hériz , escritor espanhol (n. 1964), in “Mentira”, Ed. D. Quixote, 2006
Foto da net.

28 julho, 2017

Sempre que vejo sangue, desmaio...


Sempre que vejo sangue, desmaio. Sou fraca a esse ponto, não suporto nem um beliscão. Incomoda-me essa debilidade, mas não consigo ultrapassá-la por mais que me esforce. Quando me têm de tirar sangue para uma análise, experimento todo o tipo de truques: olhar para outro lado, fechar os olhos, contar até cem; inclusivamente uma vez tentei o contrário, olhá-lo fixamente, concentrar-me no sangue e pensar que era água, torná-lo transparente com a força do meu olhar.

Aguento apenas uns segundos antes de sentir aquela frouxidão que nasce nos pés e se instala na boca do estômago, depois os ombros descaem, o pescoço cede, as maçãs do rosto fraquejam-me como cera derretida e, quando o frio chega ao cérebro, já não estou. Falta de luz. Não é desagradável. Pelo contrário, tem qualquer coisa de abençoado, esse abandono, essa interrupção total da consciência. Tomara eu dormir sempre assim, flutuar à deriva nessa paz com todas as amarras cortadas. O desmaio, como o sono, está fora do tempo, numa dimensão própria que parece eterna mesmo que dure apenas uns segundos.”


Enrique de Hériz , escritor espanhol (n. 1964), in “Mentira”, Ed. D. Quixote, 2006
Foto da net.

21 julho, 2017

"Os sentimentos que mais doem..." - Fernando Pessoa



Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas importantes, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juntos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas. (…)
Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. (…)

Nestas horas de mágoa subtil, torna-se impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. E tudo um caos de coisas nenhumas.”


Fernando Pessoa, poeta português (1888-1935), in “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014
Painel de azulejos de Almada Negreiros, pintor  português (1893-1970).

14 julho, 2017

"Obra poética" - José Carlos Ary dos Santos


O POEMA ORIGINAL

Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

José Carlos Ary dos Santos, poeta e declamador português  (1936-84)
(Foto da net)



11 julho, 2017

Quando não consigo dormir...


Quando não consigo dormir, costumo deitar-me de barriga para cima, com os olhos fechados e os braços esticados paralelos ao tronco. Todo o corpo liso e direito, excepto os pés, que apontam para o céu. Então, começando pelo dedo mínimo do pé direito, vou-os mexendo um a um, devagar, muito devagar, e conto-os. Mexo um dedo e conto-o, um; mexo o seguinte, dois, três, quatro. Ao chegar a dez, estou no dedo mínimo do segundo pé. É importante mexê-los todos, um a um, não saltar nenhum dedo, não interromper a contagem. Quando se termina, volta-se a começar em sentido contrário: onze dedos, doze, treze…
Não costuma falhar. Houve alturas em que cheguei a contar mais de cento e cinquenta dedos, mas com firmeza e método, se os contarmos realmente um a um e mexermos de cada vez aquele que é devido, acaba por se conseguir. Vai-nos dando o sopor.

Nunca tomei um comprimido para dormir. Nunca, nem sequer uma valeriana. (…) Nunca um comprimido. Sempre os dedos um a um!”

Enrique de Hériz , escritor espanhol (n. 1964), in “Mentira”, Ed. D. Quixote, 2006
Foto da net.


(Experimentei "contar dedos dos pés" na passada semana, quando a minha netinha adormecia e eu teimava em ficar de olhos abertos. Perdida de sono, mas de olhos abertos.

Foi uma semana em grande, aqui em casa com a Madalena. Os papás foram de férias, levaram a Carolina, de seis anos, e deixaram comigo a pequenina de dez meses. Linda, linda, linda!
Foi maravilhoso!
E cansativo? Sim, um pouco; biberons, papas, fraldas e chupetas... não é mole, não! Mas voltaria a fazer tudo, mesmo tudo!
Vivem longe e não são muitas as vezes que estamos juntas. Pena minha!

Acreditem, abraços e beijos babados de netinhas provocam numa avó um turbilhão de emoções.
Mesmo se para dormir tem de contar os dedos dos pés.)

07 julho, 2017

"A liberdade é a possibilidade do isolamento..." - Fernando Pessoa


A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente.
Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que o faz ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela."

Fernando Pessoa, poeta português (1888-1935), in “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014
Foto da net.

04 julho, 2017

A arte pertence a toda a gente e a ninguém...


"A arte pertence a toda a gente e a ninguém. A arte pertence a todo o tempo e a nenhum tempo. A arte pertence àqueles que a criam e àqueles que a usufruem. (...) A arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo. A arte não existe pela arte: existe pelas pessoas. Mas que pessoas, e quem as define?

Escrevia  música para toda a gente e para ninguém. Escrevia música para os que melhor apreciavam a música que ele escrevia, sem olhar à condição social. Escrevia música para os ouvidos que eram capazes de ouvir. E sabia, por isso, que todas as verdadeiras definições de arte são circulares e que todas as definições não verdadeiras de arte lhe atribuem uma função específica.

Havia muito a dizer sobre o silêncio, esse lugar onde as palavras se esgotam e a música começa; e também, onde a música se esgota."


Julian Barnes, escritor inglês (n.1946), in "O ruído do tempo", Ed. Quetzal, 2016
Foto da net.