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27 julho, 2018

"O Ministério da Felicidade Suprema" - Arundhati Roy

Como contar uma história destroçada?
Tornando-me lentamente todos.
Não.
Tornando-me lentamente tudo.
Finalmente acabei de ler "O Ministério da Felicidade Suprema", segundo romance de Arundhati Roy, publicado vinte anos após o enorme sucesso de “O Deus das Pequenas Coisas”, Booker Prize, 1997.
É um romance intenso, denso, duro, "pesado". Uma viagem íntima pelo subcontinente indiano, desde os bairro superlotados da Velha Deli e os centro comerciais reluzentes da nova metrópole às montanhas e os vales de Caxemira.
Na trama narrativa, salpicada de detalhes autobiográficos, encaixam 12 histórias de amor e provocação, contadas num sussurro, num grito, com lágrimas e gargalhadas. Histórias mágicas marcadas por personagens inesquecíveis apanhadas pela maré da História, que carregam consigo uma forte carga de sofrimento e buscam um porto seguro. Como Anjum, uma transexual que vive num cemitério e dorme no tapete persa puído que desenrola entre duas campas; ou o doutor Azad Bhartiya, "tão magro que quase se podia dizer que era bidimensional", em greve de fome contra "o Império Capitalista, e contra o Capitalismo dos EUA, Terrorismo Estatal Indiano e Americano/Todo o tipo de Armas Nucleares e Crime..."; ou Tilo, uma mulher sozinha, uma lutadora pela independência de Caxemira que quer ter "a liberdade de morrer de forma irresponsável, sem aviso e sem razão", ou... ou...
Da terceira história "A Natividade" retirei o  excerto que compartilho para entusiasmar quem por aqui passar para a leitura de um romance avassalador, que a autora dedica a «Os Desconsolados».

“Ela apareceu de repente, pouco depois da meia-noite. Não houve anjos a cantar, nem sábios nem oferendas. Mas um milhão de estrelas nasceu a leste para anunciar a sua chegada. Num momento não estava lá e no momento seguinte… ali estava ela, no pavimento de betão, num berço feito de lixo; pratas de maços de tabaco, alguns sacos de plástico e pacotes vazios de Uncle Chipps. Estava deitada numa poça de luz, sob uma coluna de mosquitos esvoaçantes iluminados pelos neons, nua. A sua pele era negro-azulado, reluzente como a de uma foca bebé. Estava acordada, mas perfeitamente imóvel, coisa invulgar em alguém tão pequenino. Talvez, naqueles primeiros curtos meses de vida, já tivesse aprendido que as lágrimas, pelo menos as lágrimas dela, eram inúteis. (…)
À sua volta, a cidade estendia-se por quilómetros. (…) Os corpos adormecidos dos sem-abrigo cobriam os passeios altos e estreitos, cabeça com pés, cabeça com pés, até desaparecerem à distância. Havia velhos segredos escondidos nas dobras da pele solta e fina da cidade. Cada ruga era uma rua, cada rua uma feira de diversões. Cada articulação artrítica era um anfiteatro em ruínas, onde se representavam há séculos histórias de amor e loucura, de estupidez, de prazer e crueldade indizíveis. Esta, porém, seria a alvorada da sua ressurreição. (…)
Foi aí, ao lado das Mães dos Desaparecidos, que a nossa bebé silenciosa apareceu. As Mães demoraram algum tempo a dar por ela, porque era da cor da noite (…) As Mães dos Desaparecidos não sabiam o que fazer com um bebé que tinha aparecido.
Especialmente um bebé preto.
Kruhun kaal
Especialmente uma menina preta.
Kruhun kaal hish
Especialmente uma menina preta enrolada em lixo.
Shikas ladh
De quem é esta criança?
Silêncio.
O que fazer com a bebé?
Talvez consciente de que se tornara o centro das atenções, ou por estar assustada, a bebé silenciosa começou finalmente a chorar. (…)"

Onde é que os pássaros velhos vão morrer?
Sabe a resposta?

Sensacional!
E mais não digo. Leia, por favor!

O Ministério da Felicidade Suprema, de Arundhati Roy
Tradução de Elsa T. S. Vieira,
ASA Ed., 2017
463 págs.

26 janeiro, 2018

"O Deus das pequenas coisas" - Arundhati Roy

… o segredo das Grandes Histórias é elas não terem segredo nenhum. As Grandes Histórias são aquelas que já ouvimos e queremos voltar a ouvir. Aquelas onde podemos entrar e morar confortavelmente. Que não nos enganam com calafrios e finais acrobáticos. Que não nos surpreendem com o imprevisto. Que são tão familiares como a casa onde moramos. Ou o cheiro da pele de um amante. Sabemos como acabam, porém ouvimo-las como senão soubéssemos. Tal como, embora sabendo que um dia havemos de morrer, vivemos como se não o soubéssemos. Nas Grandes Histórias sabemos quem vive, quem morre, quem encontra o amor e quem não encontra. E, contudo, queremos saber de novo.
Por tudo isto, e muito mais que não é para aqui chamado, decidi reler “O Deus das Pequenas Coisas”(1997) - o primeiro romance de Arundhaty Roy, vencedor do Booker Prize - antes de ler “O Ministério da Felicidade Suprema”, publicado em 2017.
Vinte anos separam os dois romances. O que terá mudado na prosa mística e luminosa da indiana que cursou arquitectura e abandonou a ficção para se dedicar ao ensaio e à intervenção política?
Estou curiosíssima!
“O Deus das Pequenas Coisas” conta a história de três gerações de uma família do sul da Índia, que se dispersa por todo o mundo e se reencontra na terra natal. Uma história apaixonante, moralmente intensa, feita de pequenas histórias vividas por personagens inesquecíveis - os gémeos Rahel e Estha, a mãe Ammu, a avó Mammachi, o avô Pappachi, o tio Chacko, o misterioso Velutha... - numa época conturbada onde “só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas permanecem por dizer”, onde tudo pode acontecer a todos, onde tudo pode mudar num dia.

Se ainda não leu este arrebatador romance... LEIA!

O Deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy
Tradução de Teresa Casal
Ed. ASA, 1998
301 págs.