02 novembro, 2018

"Esta velha angústia" - Fernando Pessoa

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano? Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer –
Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
(Um dos meus poemas preferidos.)

Sabia que (5):
1905 – Em Agosto (Fernando Pessoa) parte sozinho e definitivamente para Lisboa (…)
Continua a escrever poesia em inglês.
1906 – Matricula-se no Curso Superior de Letras.
1907 – Desiste do Curso Superior de Letras.
Lê os filósofos gregos e alemães; os decadentes franceses (…)
Em Agosto morre a Avó Dionísia deixando-lhe uma pequena fortuna. Com o dinheiro recebido, vai a Portalegre a fim de comprar material para montar um tipografia em Lisboa.
Instala, na Rua a Conceição da Glória, 38 e 40, a «Empresa Ibis – Tipografia e Editora», que mal chega a funcionar.
Recusa a oferta de bons lugares por os mesmos incluírem obrigações de horário que lhe seriam de obstáculo à realização da sua obra literária.”
("Fernando Pessoa, uma fotobiografia", de Maria José de Lancastre).

Não sabia? Eu também não!
O que importa é que agora sabemos.
Prometo partilhar mais informações sobre a vida do poeta do desassossego.
(Foto da net)

13 comentários:

  1. Gostei da poesia e desse desassossegado poeta sempre vale mais saber! beijos, lindo feriadão! chica

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  2. Estou numa fase da vida em que me sinto um pouco como nesse poema.

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  3. Excelente elección de poema, y muy interesante esa pequeña biografía que haces del autor.
    Muy bonita entrada.
    Un abrazo.

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  4. Seja qual for o heterónimo de Pessoa que escreva, o desassossego está sempre lá, palpitante!

    Não Teresa, não sabia dessas curiosidades acerca do poeta, mas seja em que tempo for, é tempo de aprender.

    De repente senti bater uma saudade de poesia. Ultimamente não tenho lido nem publicado poemas, talvez o faça proximamente.

    Grata por este bom naco poético, deixo um forte abraço.

    Janita

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  5. Não sabia e não me lembrava do poema!!! Bj

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  6. Algumas sabia (a tipografia, por ex.). Com datas é que me entendo mal. :)

    Por vezes também sinto um "mal-estar a fazer-me pregas na alma".

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  7. "Se ao menos endoidecesse deveras!
    Mas não: é este estar entre,
    Este quase,
    Este poder ser que…
    Isto."
    Só o nosso desassossegado poeta podia escrever assim…
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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  8. Magnifica escolha, lindo poema de Fernando Pessoa.
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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  9. Não conhecia este poema e achei ótimo. Quantas vezes na vida nos sentimos assim, meio loucas, sem chão.
    beijinhos muitos...
    Léah

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  10. FPessoa psicólogo e filósofo no seu melhor...
    Uma semana aconchegante e simpática.
    Abraço grande.
    ~~~

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  11. O homem era mesmo uma alma torturada, perturbada.
    Beijos, boa semana

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  12. Mais um Grande da Literatura e Cultura Portuguesa. Poesia difícil dos seus 4 heterónimos e dele próprio. Um Génio !!!
    Também conhecia a história da tipografia. Obrigado Teresa !

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