26 outubro, 2018

"Um cavalo entra num bar" - David Grossman

Vocês fazem ideia do que é hoje manter uma alma? É um luxo, porra. Façam a conta e verão que sai mais caro do que rodas em magnésio. E estou a falar da alma mais simples, não de Shakespeare, Tchekhov ou Kafka, que aliás é material bastante bom, pelo menos é o que me dizem, eu pessoalmente não li nenhum.
"Quero que venhas ao meu espetáculo…
Mas para quê? Para que precisas de mim lá?
Quero que me observes… Que me observes bem e depois me digas.
Dizer o quê?
O que viste."
Avishi Lazar, juiz reformado (narrador-personagem deste estranho/genial romance/história de vida) e Dov Grinstein, comediante em fim de carreira, dois amigos na adolescência que a vida separou, vão reencontrar-se quarenta e três anos depois num longo espectáculo de stand-up comedy em Natania, uma pequena cidade israelita.
Sozinho no palco do bar decadente, o frágil Dov (ou Dovaleh), o cómico, o palhaço, o malabarista de palavras, o homem de meia-idade de rosto cadavérico de expressão ora doce, ora crispada, inicia o espetáculo com piadas no limite do politicamente correcto e do bom gosto, muitos palavrões, muitas anedotas, saltos desmesurados e corridas desenfreadas no palco …meus irmãos, minhas jóias, esta noite vamos festejar, vamos desbundar… 
Os espectadores aplaudem ruidosamente. Estão ali para se divertir com Dovalech que, lembram-se alguns, na infância andava sobre as mãos, de pernas para o ar, para confundir os adolescentes violentos que no bairro se riam dele.
No decorrer da performance, já com o público nas mãos, o humor irreverente, exagerado, torna-se humor triste com o comediante a desvendar dramas profundos da sua triste história de vida…vão ter de armar-se de paciência, meus irmãos, porque é uma história que, juro por Deus, ainda nunca contei num espetáculo, em nenhum e a ninguém em particular, e esta noite vai acontecer... e abordar assuntos sérios como o holocausto, a questão israelita, o conflito israelo-árabe.
A tensão aumenta. Não se ouvem risos. Incomodados, alguns espectadores abandonam a sala. Outros assobiam.
Sentado longe do palco, na penumbra, Lazar ouve o comediante tudo revelar sobre o tempo que passaram juntos num campo militar para jovens; sobre o que os uniu e o que os separou; sobre o  inferno da infância e da adolescência; sobre a estranha relação com o pai austero e com a mãe, uma sobrevivente do Holocausto.
Constrangido, percebe que o que Dov faz no palco... a transformação da matéria de vida em anedota... é um relato, também, da sua história de vida e da de muitos dos espectadores.

Um cavalo entra num bar” (prémio Man Booker International de 2017) não é um livro de leitura fácil mas não se consegue abandonar. A história de vida de Dov incomoda mas a excelência da escrita de Grossman prende-nos até ao epílogo.
Gosta de anedotas? Sim, então, aqui vai uma:
Um cavalo entra num bar e pede ao barman uma Goldstar à pressão. O cavalo emborca-a e pede um copo de whisky. Bebe-o e pede uma taça de arak. Bebe. Pede mais um shot de vodka e uma cerveja…  Como termina? Não sei!
Não sei pois é a única inconclusa de entre as muitas espalhadas na narrativa.
O que eu sei é que na penúltima página está lá, em destaque, uma frase de Fernando Pessoa. Para saber qual é leia/assista a este divertido/doloroso espectáculo de stand up.
Será que uma piada é só uma palavra?
Assim vai a vida, o homem põe e Deus lixa-o…

(Se não leu "Até ao fim da terra", extraordinário romance de David Grossman, corra a fazê-lo. Não se assuste com as primeiras 60 páginas, continue porque o deslumbramento está todo lá. Espreite AQUI o que escrevi sobre este romance, em 2012.)

Um cavalo entra num bar, de David Grossman
Tradução de Lúcia Liba Mucznik
Ed. D. Quixote, 2018
229 págs.

10 comentários:

  1. Fiquei interessado em ler este livro. Gosto dos que me surpreendem...
    Obrigado pela sugestão.
    Teresa, um bom fim de semana.
    Beijo.

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  2. Não há dúvida, gosta mesmo deste livro:).

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  3. Nunca li,nas vou tomar nota.

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  4. Não conhecia, mas parece um livro e tanto!

    Daniela

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  5. Teresa,
    A forma como você descreve
    o livro me da vontade de
    ler imediatamente.
    Essa é a melhor forma
    de descrever um livro:
    deixando a pessoa intrigada.
    Eu acabei de ler e de ver o filme
    O Changô de Back Street, do autor
    e comediante Jô Soares, conhece?
    Bjins
    CatiahoAlc. do Blog Espelhando

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    Respostas
    1. Olá, Catiaho!
      O humorista (inteligente) Jô Soares, conheço bem. Vi muitos programas dele no Canal da Globo. Fabulosos!
      O livro não li, não!
      Beijo e boa semana.

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  6. Despertou a minha curiosidade.
    Bjs, boa semana

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  7. Já tinha lido uma excelente análise a este livro que agora complementei ao lê-la. Vou ver se o compro. Obrigada.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  8. Olá... Gostei da referência que faz aqui, não conheço. Deve ser um livro que nos eva a pensar divertidamente.
    Um abraço e feliz Novembro...

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  9. Bom dia, Anete!
    Tal e qual - é um livro divertidamente sério!
    Como sei que gosta de ler, aconselho vivamente o anterior romance de David Grossman (escrevi sobre ele aqui no Rol) "Até ao fim da terra".
    Tem por protagonista ORA, uma mulher que nunca, jamais, se esquece. Acredite!
    Beijo e boa quinta-feira.

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