29 setembro, 2017

" A violação do amor" - Manuel de Sousa Falcão


A violação do amor” (Editora Propagare, 2016), da autoria de Manuel de Sousa Falcão, reúne mais de 100 poemas - “textos confessionais”, diz o poeta - escritos entre 2009 e 2016.
São poemas para ler devagar, pensar, reflectir e compartilhar com aqueles que amamos, ou gostamos.
Reproduzo dois dos meus favoritos.

Fico a aguardar o próximo livro, senhor professor, poeta, pintor.
Sucesso!

SORRI
Sorri
Mesmo que não te apeteça
Conversa sem que te meça
Fala da pele e nunca mais do que isso
Diz de ti apenas a superfície
Diz de texturas e não
De ligaduras de nervuras de vidas duras
De doenças sem curas.
Esconde-te cobre-te recolhe-te
É que cansei-me de ti
Algum dia o passado irrompeu
E és o que eras
Não te salvei não te mudei
Como o Paraíso por perdido
Deu lugar ao Vale de Lágrimas
E tarda a redenção
Ou não vem
Eu não quero morar aqui
Por tudo o que vi o que vivi o que senti

A NOITE
Uma noite
Faço o mesmo percurso
Do mesmo modo
A ouvir os passos
Escutar (esses) ruídos
Da hora tardia
E entrando em mim, 
Compreendendo-me.
Não me desculpo
Talvez chore
(Alguma memória
Chamará um
Sorriso breve
Uma saudade breve)
O mesmo percurso
O cansaço extremo,
Impede-me de pensar o
Regresso.

26 setembro, 2017

Vale a pena ler... José Tolentino Mendonça


Há um provérbio norte-americano que diz «Ser velho não é divertido». É uma verdade. Ser velho é ter de começar do zero a qualquer momento, e fazê-lo muitas vezes, constrangido a reaprender coisas básicas que inclusive se ensinaram aos outros a vida toda. Coisas simples (e inacreditavelmente complexas como andar, organizar o seu espaço, cuidar da alimentação, sair de casa, comunicar. Um dia acorda-se e nada disse é óbvio como antes era. Ser velho é fazer o que se fazia, mas muito mais devagar, segmentando por etapas, doseando o esforço desmesurado que atividades mínimas agora obrigam. Ser velho é desistir muitas vezes, tombando de uma angústia que as palavras já não exprimem; é as lágrimas correrem dos olhos, não por pieguice, mas porque nenhuma esperança as sustém; e, ao mesmo tempo, ter a teimosia inexplicável de recomeçar quando já não parece possível. Ser velho é, no extremo da fragilidade, mostrar que se tem sete vidas. Ser velho é aceitar o presente, sentindo rondar a imprevisibilidade muito perto, e sabiamente rir-se disso. Ser velho é fazer mais com menos: saber que só se pode contar com a força de uma das mãos ou com o apoio de um dos lados, e mesmo assim insistir e continuar. Ser velho é compreender o valor das migalhas, que foram sempre o nosso grande alimento sem que nos déssemos conta. Ser velho é lutar para estabelecer uma conversa com um quinto do vocabulário, ainda assim entrecortada por hesitações e esquecimentos, mas com os olhos a falarem cinquenta vezes mais, para quem os souber ouvir. Ser velho é sentir-se transferido para o interior de uma casa alheia e grande, desejando unicamente não se perder. Ser velho é não contar com ninguém a certas horas – horas longas que parecem não ter fim – procurando manter vivo, dentro dessa total incerteza, o inapagável fio do amor.

Sim, o provérbio tem razão. Mas há uma coisa que ele não diz: que ser velho é também um milagre. Na verdade, torna-se urgente vulgarizar um verbo que os dicionários não trazem e que os velhos conjugam continuamente, o verbo milagrar. (…) Os velhos milagram. Eles são responsáveis pelo incessante prodígio que é a vida.


Excerto da crónica “O verbo milagrar”, de José Tolentino Mendonça (presbítero e poeta português, n. 1965), publicada na “E”, revista do jornal Expresso de 26 Agosto 2017
Vale a pena ler na íntegra.

(Foto da net)

22 setembro, 2017

"Hoje estarás comigo no paraíso" - Bruno Vieira Amaral


Cada homem está pendurado por um fio, o abismo pode abrir-se debaixo dele a qualquer momento.
No romance de estreia “As primeiras coisas” (2013) Bruno Vieira Amaral desvenda de forma magnífica como se vivia no início dos anos 80 no Bairro Amélia, concelho da Moita, distrito de Setúbal, o problemático bairro onde o escritor cresceu.
O romance, distinguido com diversos prémios, espantou todos pelo perfeito dosear de real com ficção, e pela escrita poderosa.
Agora, neste segundo romance, o escritor pega no homicídio nunca esclarecido do seu primo João Jorge (o Joãozinho Treme, personagem de “As Primeiras Coisas”) e desenha uma investigação do assassínio e usa essa investigação como estratégia de recuperação e construção da sua própria memória: a infância, a família, o bairro e as suas personagens, Angola antes da Independência e os anos que se lhe seguiram, e a figura – ausente - do pai.
João Jorge, solteiro, pintor da construção civil, cidadão português nascido em Novo Redondo, Angola, gozão respeitador, um vadio amigo da família, acabou os seus dias num curral de porcos, brutalmente degolado por um cabo-verdiano. João Jorge veio de Angola aos treze anos e morreu na Baixa da Banheira, Portugal, aos vinte e um.
Trinta anos depois , Bruno Vieira Amaral movido pela curiosidade decide investigar tão brutal crime.
Não são os mortos que clamam por justiça ou vingança. Somos nós que imploramos por sentido, para que os nossos mortos não tenham morrido em vão, para que as nossas vidas não nos pareçam tão absurdas, esclarece o escritor/narrador.
Sem memórias vivas do primo, para reconstituição da sua personalidade, do seu percurso de vida e da derradeira noite, Bruno Vieira Amaral (sete anos aquando do crime) pesquisou arquivos da imprensa da época, consultou arquivos judiciais, explorou o passado da família em Angola, ouviu jornalistas, familiares, vizinhos e amigos. Depois, “agitou” tudo e escreveu uma comovente e nostálgica história, bem urdida e bem contada, feita com dados da investigação, segredos familiares, esquecimentos convenientes, equívocos propositados, verdades escondidas, silêncios, recordações do quotidiano no bairro, revelações drásticas sobre um Portugal com fome, desemprego, salários em atraso.
Numa mistura perfeita de ficção e realidade, de passado e presente, aqui e ali o escritor/narrador desvenda o seu quotidiano e as dificuldades e esmorecimentos que sentiu  durante  a escrita da história.
Por vezes a dificuldade de escrever é apenas isso, uma tarefa, uma actividade profana, repetitiva, banal, afastada das zonas tenebrosas da existência, das humilhações, dos desejos proibidos, das vinganças imaginadas. Então, prefiro afastar-me da escrita e montar prateleiras, furar paredes, introduzir buchas, apertar parafusos…
Interessante é ver também citados romances  de Gabriel Garcia Márquez, Cormac McCarthy, W.G. Sebald,, Mario Vargas Llosa, Javier Cerca, Julian Barnes, entre outros, que o inspiraram e motivaram.
Tudo perfeito!
Na noite em que João Jorge foi assassinado não choveu. Nem na manhã seguinte. Era terça-feira de Carnaval, céu limpo e frio…
Fico por aqui.
Leia para saber quem foi, como viveu e porque foi o João Jorge morto como um porco, com a faca para os abrir... 
Hoje estarás comigo no paraíso (Evangelho segundo Lucas, 23:39-43) é interessante mas... demasiado longo. Bruno Amaral Vieira, senhor de uma escrita cristalina, viciante e inteligente (tanto deve ter lido já este "senhor escritor" que herdou do avô o amor pelos livros e pela História), podia ter dito tudo sem se perder em excessivas minúcias.
Eu aconselho a leitura dos seus dois romances. O primeiro é o meu favorito, mas com este quase gastei um lápis... A sublinhar, claro!

ONDE É QUE A HISTÓRIA DA NOSSA FAMÍLIA contamina a nossa história individual?
Pense nisto!

Hoje estarás comigo no paraíso, de Bruno Vieira Amaral
Ed. Quetzal, 2017
363 págs.

15 setembro, 2017

"Irrita-me a felicidade de todos estes homens ..." - Fernando Pessoa


Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem rico com dor de dentes de vez em quando, mas muita aspirina também – a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) aos incidentes que chamam alegria e dor.

Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!”


Fernando Pessoa, poeta português (1888-1935), in “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014
Pintura de Giuseppe Arcimboldo, pintor italiano (1537-93)

08 setembro, 2017

"A vegetariana" - Han Kang

- Porque é que não comes carne? Ela pousou os pauzinhos e olhou para ele. – Não tens de me dizer, se for difícil para ti.
- Não – responde ela com serenidade. – Não me é difícil. O problema é que acho que não vais compreender. – Tornou a pegar nos pauzinhos e mastigou lentamente alguns rebentos de soja. – É por causa de um sonho que tive.
- Um sonho?
- Tive um sonho… e é por isso que não como carne.
É estranha e comovente a história de Yeong-hye, mulher normal, nem feia nem bonita, de poucas palavras, filha e esposa submissa, que depois de um sonho terrível decide mudar radicalmente a sua vida, impor a sua vontade e enfrentar a conservadora sociedade sul-coreana, o marido que a despreza, os pais e a irmã que a ignoram. Como? Tornando-se vegetariana.
Essa inesperada, incompreensível e assustadora mudança de comportamento tem consequências negativas sobre toda a família e brutais sobre ela própria.
Dividida em três partes, a história começa no presente mas engenhosa e subtilmente recua ao passado dando voz a familiares – marido, cunhado e irmã – que desvendam de forma crua e dura factos da infância e adolescência da protagonista. Preocupa-os a estranha decisão dela? Não! Preocupa-os o que dessa decisão pode “respingar” sobre eles.
Na primeira parte a voz é do abjecto marido:
… sempre pensei nela como alguém que não tinha rigorosamente nada de especial. Para dizer a verdade, quando nos conhecemos, nem sequer me senti atraído por ela. No então, embora não tivesse nada de muito atraente, nada tinha também de repulsivo e, por isso, não havia motivo para que não nos casássemos… raramente me pedia alguma coisa e nunca discutia comigo.. .servia-me na perfeição… era a mulher mais trivial do mundo… uma esposa absolutamente comum…
Até um certo dia de fevereiro…
… em que ela, provocadora, deita fora carne, ovos e leite, recusa sair do quarto, deixa de limpar, de cozinhar, de tratar da roupa e recusa o sexo com o marido por o corpo dele lhe cheirar a carne.
Os dias passam, ela definha. Incapaz de a demover o marido fala com a sogra e logo marcam uma reunião de família. Tal não preocupa a "nova" Yeong-hye revoltada, vingativa, fantasista e decidida a tomar o controlo da sua vida. Nem o marido desprezível, nem o pai, um herói da Guerra do Vietname autoritário e agressivo, conseguirão que volte a comer carne. Antes morrer. É assim tão mau morrer?
O que se segue é provocador e desconcertante, mas eu não desvendo para que a sensação de absurdo seja sentida também por si.
(Nota: O hospital confirmará que esta mulher revoltada que começou por querer ser vegetariana, depois um vegetal e por fim uma árvore, não sofre de qualquer doença mental.)

Este romance, feito de histórias bem imaginadas que se encaixam umas nas outras como peças de um puzzle, não é fácil de entender, não!
É tão estranho, tão estranho, que, não sei como, se entranha em nós e a vegetariana Yeong -hye não nos sai da cabeça.
Porquê? Bem... é segredo.

(Ufa! Este foi difícil de digerir! Mas não deixei de comer carne...)

A vegetariana, de Han Kang - Man Booker International Prize 2016
Tradução de Maria do Carmo Figueira
Ed. D. Quixote, 2016
190 págs.

01 setembro, 2017

Voltei... com um poema!


NONA SINFONIA

É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar tudo move
a força de viver enraivecida.

Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.

Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.

Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.

José Carlos Ary dos Santos, poeta e declamador português ((1936-1918)
Foto da net.