A alma da gente é uma cousa suja e o que vale é que a alma não tem cheiro.
(Conto: "Maridos")
Este livro reúne dez contos escritos em diferentes épocas da vida de Fernando Pessoa, e são marcados por "longos argumentos filosóficos-metafísicos sobre o Universo, sobre o Desconhecido, sobre as diferentes dimensões da realidade e sobre a percepção que dela recebemos através das mensagens dos sentidos, sobre as experiências da despersonalização provocadas por alterações do estado de consciência». (Calma, não se assuste, a escrita magistral do poeta fingidor agarra e encanta da primeira à última página.)
São eles:
- A very original dinner /Um jantar muito original (versão bilingue)
- A estrada do esquecimento
- O peregrino
- A hora do diabo
- O banqueiro anarquista
- Um grande português
- Maridos
- O adiador
- A carta da corcunda para o serralheiro
- A caçada
Destaco (por razão nenhuma) três contos:
"A estrada do esquecimento" - um pequenino conto datado de 1914, altura do início da Grande Guerra. Descreve a cavalgada de um grupo de homens numa escuridão terrível.
«A noite estava ilegível. Não se via céu nem terra - só escuridão. Nem mesmo podia haver pelos sentidos a convicção de que havia céu e terra, a escuridão tirava-lhes os lugares. Só havia escuridão, sem forma, lugar ou fundo. (...) O meu terror crescia ... toda esta cavalgada de muitos era uma solidão humana. Lembrei-me de repente que tudo isto era eu querer recordar o meu passado. Mas o meu passado não era senão uma escuridão imensa.
Tremia de terror (...) Pensei em cantar, mas tremia (...) Pensei em gritar, mas lembrei-me, que o meu grito podia, em vez de sair para fora, para a escuridão, soar para dentro, para o meu pensamento, e matá-lo de terror. Quis rezar (...)
"O peregrino" - datado de 1917, um conto de carácter esotérico, a iniciação de um percurso iniciático.
«Do quanto passei e vi nada posso ensinar-te senão dizer-te o que vi e o que passei. E do que me disseram, o quanto que posso ensinar-te é o pouco que posso dizer-te, que foi o que me disseram: Não fites a Estrada: segue-a até ao fim.
"A hora do diabo" - um conto de carácter metafísico-esotérico, um diálogo entre uma mulher e o Diabo.
«Sou o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de todos os silêncios. Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo.
«... As minhas melhores criações - o luar e a ironia.»
«Não são coisas muito parecidas...»
«Não, porque eu não sou parecido comigo mesmo. É por isso que sou o Diabo. Esse vício é a minha virtude.»
Fui sempre mais ou menos lúcido. Sentia-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me anarquista consciente e convicto - o anarquista consciente e convicto que hoje sou.
(Conto: "O banqueiro anarquista") - Quem não conhece?!
Comprei este livro na Feira do Livro de Lisboa, em 2017.
Como gosto de pequenas histórias, coloquei de lado o romance que estava a ler na altura e logo iniciei a leitura destes "Contos escolhidos". Terminada a leitura, o livro foi para a pilha dos livros lidos que aguardam a entrada no Rol. E lá ficou... e ficou... e ficou... A pilha foi crescendo, e eu acabei por «perder o Fernando Pessoa de vista». Achei-o agora. Ao livro, claro!
Ache-o também, numa livraria, e leia!
Contos escolhidos, de Fernando Pessoa
Edição de Ana Maria Freitas e Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim (Porto Editora), 2016
229 págs.