30 junho, 2020

"A mestra de lavores" - Fernanda de Castro


A mestra de lavores
leva, na mala de mão
estrelas, pássaros, flores.

Envelheceu a bordar
a prender em bastidores,
tudo quanto viu passar:
-- Estrelas, pássaros, flores.

Já tem os olhos cansados,
os dedos magros e picados
e sofre do coração,
mas é mestra de lavores
e tem, na mala de mão,
Estrelas, pássaros, flores.

A vida passou-lhe à porta,
passou mas não quis entrar.
Sem alegrias, sem penas,
sem a flor duma ilusão,
foi longa a vida a passar.
Mas agora que lhe importa,
Se em vez de sonhos e amores,
tem, na malinha de mão,
Estrelas, pássaros, flores?
(in "Cartas para Além do Tempo", 1990)


Fernanda de Castro (Maria Fernanda Teles de Castro de Quadros Ferro), romancista, poetisa e tradutora portuguesa (1900-1994)
Com vasta obra publicada, foi galardoada com o Prémio Nacional da Poesia, em 1969.
Nas comemorações dos cinquenta anos de actividade literária disse sobre ela o escritor David Mourão-Ferreira: "Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema...".
Mais sobre a vida e obra de Fernanda de Castro, aqui.

(fotos da net, malinhas Pinterest)



26 junho, 2020

"Aprender a falar com as plantas" - Marta Orriols


A vida é assim: um dia, um céu sarapintado de tonalidades rosa; noutro, escuro como breu.
“Aprender a falar com as plantas”, primeiro romance da catalã Marta Orriols (publicou apenas um livro de contos), é um tratado sobre amor, amizade, relações familiares, traição, morte, perda. A história,  que nos leva em segundos da dor à ternura, do sorriso à emoção mais dramática, é narrada pela protagonista, Paula Cid, 42 anos, neonatologista.
A trama é bem urdida e a linguagem delicada e cativante. A mim agarrou-me logo nas primeiras páginas, como uma plantinha se agarra a um solo fértil.
«O Mauro deixou-me e depois, como se isso não bastasse, morreu.»
Mauro e Paula almoçam num restaurante da praia. A dada altura ele revela-lhe que existe outra pessoa na sua vida e que tenciona sair de casa. Despedem-se zangados. Ela vai para casa. Ele é atropelado e morre duas horas depois, no hospital.
"(…) fomos durante muitos anos um casal. Depois, no lapso de apenas umas horas, deixámos de o ser (…). 
Durante os quatro dias que se seguiram (…) eu só ingeria chá de tília; com um bocadinho de sorte, permitia que o meu pai lhe acrescentasse mel. Eram dias apáticos, irreais, o choque dominava tudo, não havia espaço para a fome (…)
Todos partiam do princípio de que o meu olhar atónito, o ar descuidado e as persianas descidas nas semanas após o acidente se deviam à tristeza em que tinha mergulhado pela desgraça de perder a pessoa com a qual partilhara a vida durante tantos anos; porém, ninguém imaginava que aferroada à dor da morte, havia uma outra dor (…) tão repugnante que eu só conseguia escondê-la, pois também me sentia morta de uma vergonha nova, mais nova que a própria morte.”
Quem herda um morto com o acréscimo duma infidelidade sabe coisas que os outros ignorarão…
Eu sei tudo, mas nada conto. Até porque não se deve contar o que nos contam.
Leiam. Vão gostar de conhecer uma doutora Cid forte e contraditória.
Eu, dela recordarei o assumir da perda e o despertar para para uma nova vida; a relação com o pai (marcada pela ausência da mãe), com Lídia, a amiga de sempre, com o amigo Nacho, com o vizinho Thomas, com os colegas do serviço de neonatologia, onde bebés prematuros lutam pela vida, com Quim «um homem desejado, mas não amado»; e, claro, o encontro com «a outra», Carla «um mundo escondido»
Sobre o título, oiçamos Paula: «As plantas foram morrendo. Como conseguias, Mauro? Regá-las parece não ser suficiente. Dizias que falar com as plantas era um ato íntimo e transformador… Levanto-me, respiro fundo e anoto «Aprender a falar com as plantas.»
Cada um esconde as misérias da vida onde pode.

Não comprei este livro pela fantástica capa (título incluído). Podia ter sido, mas não foi.
Comprei-o depois de ler na entrevista concedida pela escritora à jornalista Isabel Coutinho, publicada na revista «Ípsilon» de 13 de Março 2020, que Marta Orriols começou a escrever "Aprender a falar com as plantas" após uma tragédia pessoal: a perda do companheiro em 2015, no acidente aéreo do voo Germanwings 9525, deliberadamente provocado pelo co-piloto que se fechou  no  cockpit e fez com que o avião se despenhasse contra uma montanha dos Alpes Franceses.
Diz ela "Paula tem muitas coisas minhas... procurei que a minha história não se colasse à dela, deixei só passar o meu estado de ânimo...".
E eu digo que conseguiu, pois este não é um livro de autoficção.

(Decidi, está decidido: vou aprender a falar com as plantas. Por mais que mime as minhas com boa terra, água fresca, sol, fertilizante... elas morrem!)

Aprender a falar com as plantas, de Marta Orriols
Tradução de Maria João Teixeira Moreno
Ed. D. Quixote, 2020
237 págs.

23 junho, 2020

Em tempos de pandemia..."o abraço é aceitar tocar não tocando"


“A beleza do abraço é que não pretende ser uma rede para capturar o outro. O abraço é humilde. Pressente que apenas nos podemos aproximar, sem intentar apoderarmo-nos ou sequer acedermos à plenitude do outro. O abraço é aceitar tocar não tocando.”

“O abraço é o momento do encontro em que o contacto se realiza, mas é também, o momento seguinte, quando a separação vem assumida como forma profunda de comunhão.”

“O abraço é uma das mais verdadeiras expressões humanas de reciprocidade.”





Palavras de José Tolentino Mendonça, sublinhadas na  crónica "O Abraço", publicada na revista "E" do jornal Expresso, de 4 Janeiro 2020.

(fotos do Cristo Rei do Rio de Janeiro e do Cristo Rei de Lisboa, da net)

FIQUEM BEM
ACEITEM UM CARINHOSO ABRAÇO VIRTUAL

19 junho, 2020

Rol de Afectos e sabores: frango perfumado com alecrim e ...





“Bem comido, a minha alma de nada quer saber. E nem os maiores desgostos a conseguem comover.”
(Molière)

Hoje é frango acompanhado com gratinado de batata e courgette a minha proposta para o seu almoço de domingo. 
E para sobremesa... a minha aromática tarte de limão. Acompanhe com um Porto, pois então!

FRANGO PERFUMADO COM ALECRIM E GRATINADO DE BATATA E COURGETTE
Ingredientes: frango, chouriço, cebola, alho, louro, alecrim, cravinho, pimentão-doce, vinho branco, whisky, caldo de carne, sal, azeite.
Preparação: Comece por cortar o frango em pedaços e uma hora antes de iniciar a preparação tempere-o com sal, louro, vinho branco, whisky, um raminho de alecrim e deixe repousar nesta marinada aromática.
Depois, num tabuleiro de forno espalhe azeite, cebolas às rodelas, alhos picados e os restantes temperos. Coloque por cima o frango e leve ao forno, previamente aquecido, durante cerca de 45 minutos. Vá virando o frango.
Agora há que preparar o acompanhamento.
Ingredientes: batatas, courgettes, natas, mostarda, queijo parmesão ralado, sal.
Preparação: Descasque e corte as batatas em rodelas finas. Lave as courgettes e corte-as também em rodelas finas.
Leve as batatas ao lume em água com sal. Quando levantar fervura junte as courgettes e coza por 5 minutos. Retire do lume e escorra bem.
Num pirex untado com azeite espalhe uma camada de batatas e por cima uma de courgettes. Repita.
Numa taça misture as natas com a mostarda e deite sobre o preparado. Cubra com o queijo ralado e leve ao forno para gratinar.

E agora a sobremesa!


A MINHA AROMÁTICA TARTE DE LIMÃO
Ingredientes: 1 embalagem de massa quebrada, 2 limões, 200g açúcar, 4 ovos + 2 gemas, 200g manteiga, 2 colh. (sopa) de farinha Maizena.
Preparação: Unte uma forma de tarte com manteiga e forre-a com a massa quebrada. Pique o fundo com um garfo e reserve. Aqueça o forno a 180º.
Corte os limões aos cubinhos (mantenha a casca mas retire os caroços) e deite-os na misturadora.
Junte metade do açúcar e triture durante 2-3 minutos. Adicione o restante açúcar e triture mais uns minutos. Adicione agora os ovos inteiros e as gemas, a manteiga e a Maizena. Misture ligeiramente e deite na forma. (Não triture demasiado o recheio.)
Leve a tarte ao forno e coza durante 20 minutos. Reduza depois para 160º e deixe cozer durante mais 30 minutos ou até sentir o recheio firme mas flexível.
Sirva à temperatura ambiente polvilhada com açúcar em pó.

Está pronto o almoço!
Experimente! É económico, fácil, rápido e delicioso!
Logo, logo, trarei outras sugestões da minha "cozinhadeafectos".
(… e mais uma vez, troquei os livros pelos tachos...)
FELIZ FIM-DE-SEMANA!

16 junho, 2020

Gosto de chapéus-de-chuva!

(Chapéu comprado em Florença, Itália. Uma obra de arte!)

“Chove-me na alma quando e se tenho alegrias do coração.
Chuva é exercício de melancolia da Natureza, mas nunca será uma tristeza.”
(BEA, http://erva-principe.blogspot.com/)


Gosto de chapéus-de-chuva.
Gosto deles pequenos, médios, grandes, de uma só cor, ou de várias cores, lisos, com bolinhas, com florinhas, com desenhos abstractos, com cabo em madeira, com cabo em metal, enfim, quanto a chapéus-de-chuva não sou esquisita. Gosto de todos. Escolhidos por mim, claro!
Nunca perdi um chapéu-de-chuva.
Mas o vento já me partiu alguns. E de todas as vezes fiquei um nadinha triste.
Triste, triste, fico quando não me devolvem os chapéus que empresto. Sem coragem para os pedir, juro não voltar a emprestar. Mas empresto sempre.
Agora que a chuva passou, eles estão arrumados, sequinhos e juntinhos. Mas olham-me todos os dias (ou olho eu para eles?) ansiosos pelo próximo passeio.
Ficarão arrumados por longos meses (assim espero), mas no próximo inverno voltaremos a andar de mãos dadas por entre os pingos de chuva, saltando sobre poças de água e recordando Gene Kelly cantando «I'm singing in the rain», no filme "Serenta à chuva". 
Gosto de chapéus-de-chuva. E tenho muitos.
Há quem diga que são demais. (hum, adivinham quem é que diz?)
Eu não ligo, e compro outro… aqui, ali, acolá!
(Teresa Dias)


Chapéu-de-chuva, guarda-chuva, sombrinha...
"Os mais antigos que se conhecem foram da Mesopotâmia, há 3400 anos.
Na mesopotâmia, região do atual Iraque, há 3400 anos já existiam artefatos destinados a proteger a cabeça dos reis — contra o sol, não contra a chuva, uma raridade naquele lugar. Assim como os abanos, eram feitos de folhas de palmeiras, plumas e papiro. No Egito, adquiriram significado religioso e na Grécia e em Roma eram tidos como artigo exclusivamente feminino. Só no século XVIII a obstinação do comerciante inglês Jonas Hanway, um apaixonado por guarda-chuvas (versão inglesa do guarda-sol tropical), conseguiria torná-los dignos também de cavalheiros. Embora ridicularizado em vida, após a sua morte, em 1786, os ingleses aceitaram sair à rua munido do acessório nos sempre frequentes dias de chuvas do país." (Wikipedia)



(Hoje, aqui chove. Eu não pedi chuva, juro!)

12 junho, 2020

Curiosidades "Rol de Leituras": frases e romances de José Saramago

De José Saramago li praticamente todos os romances. Alguns, cheguei a reler para poder resumir e publicar no Rol.
Em todos sublinhei muitas, muitas frases, que também fui compartilhando.
Estas são as frases e os romances de Saramago, mais visualizados no Rol de Leituras:

Frases sublinhadas no romance "Levantado do Chão":
"O que há mais na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda.

Não faltam cores a esta paisagem. Porém, nem só de cores. Há dias tão duros como o frio deles, outros em que se não sabe de ar para tanto calor: o mundo nunca está contente, se o estará alguma vez, tão certa tem a morte.

Tanta paisagem. Um homem pode andar por cá uma vida toda e nunca se achar, se nasceu perdido."

(Ler mais...)

Os três romances mais «espreitados»:
"História do Cerco de Lisboa"
Os primeiros capítulos deste livro de José Saramago são difíceis de compreender. Que raio de enredo é este que entrelaça o passado com o presente?
Sem resposta, apetece largar o livro e esquecer de vez o revisor Raimundo Silva.
Não faça isso. Continue a ler e rapidamente vai entender que num só livro estão contadas duas histórias. É isso possível? Sim, com Saramago tudo é possível.
A história começa com Raimundo Silva, solteiro, com mais de cinquenta anos, revisor de profissão, a rever um tratado de história, com quatrocentas e trinta e sete páginas, intitulado “História do Cerco de Lisboa” – corria o ano de 1147 quando os portugueses, ajudados por cruzados, tomaram a cidade aos mouros.
No final da revisão, lê vezes sem conta a linha que afirma que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa e eis que, pela primeira vez em tantos anos de profissão, infringe o código deontológico dos revisores, ao introduzir deliberadamente no texto um NÃO que altera toda a verdade histórica. (Ler mais...)

"Ensaio sobre a Lucidez"
Disse José Saramago: Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.
Ora bem, eu não sofri tanto assim. Até sorri, diversas vezes, com a crítica mordaz que ele faz ao poder político. Uma crítica cáustica, como só ele sabe fazer. A primeira parte do livro é, verdadeiramente risível. A segunda parte, bem, é muito mais séria.
A trama é interessante: Num país qualquer é dia de eleições municipais. Na capital chove torrencialmente e durante a manhã poucos eleitores comparecem para votar. Numa determinada mesa eleitoral o presidente e os delegados dos partidos representados temem uma alta abstenção. (Ler mais...)

 "O ano da morte de Ricardo Reis"
Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheias nas lezírias.
Assim começa esta narrativa sobre os últimos nove meses de vida do médico Ricardo Reis, o heterónimo mais conhecido de Fernando Pessoa.
Na sua biografia consta que nasceu no Porto, em 1887 e nada é dito sobre o ano da sua morte. Saramago decide, então, criar a sua versão da história, entrelaçando factos oficiais com factos imaginados, e pôr um ponto final na vida do médico monárquico. Ricardo Reis morrerá em 1936, ano do início do longo tormento português.
Sou o ano de mil novecentos e trinta e seis, venham ser felizes comigo. (Ler mais...)


Se não leu nenhum dos romances de José Saramago, não sabe o que perdeu. 
A sua escrita inteligente e única, estranha-se primeiro mas depois... «devora-se» compulsivamente!
Confira, lendo-o!
(Conselho meu: não escolha "Memorial do Convento" para começar a ler Saramago. Escolha outro romance. Outro qualquer. Indico três: "A Caverna", "Caim", "As Intermitências da Morte".) 

(fotos da net)

09 junho, 2020

Um poema de... Agostinho da Silva


Gostava que os Portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor

sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal

todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler

teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura

e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale

até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião

que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira

alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto

se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia

deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.
(In "Uns poemas de Agostinho", póstumo 1997)

(foto da net)

Agostinho da Silva (George Agostinho Baptista da Silva,) filósofo, poeta, ensaísta, professor, filólogo, pedagogo e tradutor português (1906-1994)
Mais sobre a sua vida e obra , aqui.

(foto da net)

05 junho, 2020

"Contos escolhidos" - Fernando Pessoa

A alma da gente é uma cousa suja e o que vale é que a alma não tem cheiro.
(Conto: "Maridos")
Este livro reúne dez contos escritos em diferentes épocas da vida de Fernando Pessoa, e são marcados por "longos argumentos filosóficos-metafísicos sobre o Universo, sobre o Desconhecido, sobre as diferentes dimensões da realidade e sobre a percepção que dela recebemos através das mensagens dos sentidos, sobre as experiências da despersonalização provocadas por alterações do estado de consciência». (Calma, não se assuste,  a escrita magistral do poeta fingidor agarra e encanta da primeira à última página.)
São eles:
- A very original dinner /Um jantar muito original (versão bilingue)
- A estrada do esquecimento
- O peregrino
- A hora do diabo
- O banqueiro anarquista
- Um grande português 
- Maridos
- O adiador
- A carta da corcunda para o serralheiro
- A caçada
Destaco (por razão nenhuma) três contos:
"A estrada do esquecimento" - um pequenino conto datado de 1914, altura do início da Grande Guerra. Descreve a cavalgada de um grupo de homens numa escuridão terrível.
«A noite estava ilegível. Não se via céu nem terra - só escuridão. Nem mesmo podia haver pelos sentidos a convicção de que havia céu e terra, a escuridão tirava-lhes os lugares. Só havia escuridão, sem forma, lugar ou fundo. (...) O meu terror crescia ... toda esta cavalgada de muitos era uma solidão humana. Lembrei-me de repente que tudo isto era eu querer recordar o meu passado. Mas o meu passado não era senão uma escuridão imensa.  
Tremia de terror (...) Pensei em cantar, mas tremia (...) Pensei em gritar, mas lembrei-me, que o meu grito podia, em vez de sair para fora, para a escuridão, soar para dentro, para o meu pensamento, e matá-lo de terror. Quis rezar (...)
"O peregrino" - datado de 1917, um conto de carácter esotérico, a iniciação de um percurso iniciático.
«Do quanto passei e vi nada posso ensinar-te senão dizer-te o que vi e o que passei. E do que me disseram, o quanto que posso ensinar-te é o pouco que posso dizer-te, que foi o que me disseram: Não fites a Estrada: segue-a até ao fim.
"A hora do diabo" - um conto de carácter metafísico-esotérico, um diálogo entre uma mulher e o Diabo.
«Sou o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de todos os silêncios. Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo.
«... As minhas melhores criações - o luar e a ironia.»
«Não são coisas muito parecidas...»
«Não, porque eu não sou parecido comigo mesmo. É por isso que sou o Diabo. Esse vício é a minha virtude.»
Fui sempre mais ou menos lúcido. Sentia-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me anarquista consciente e convicto - o anarquista consciente e convicto que hoje sou.
(Conto: "O banqueiro anarquista") - Quem não conhece?!

Comprei este livro na Feira do Livro de Lisboa, em 2017.
Como gosto de pequenas histórias, coloquei de lado o romance que estava a ler na altura e logo iniciei a leitura destes "Contos escolhidos". Terminada a leitura, o livro foi para a pilha dos livros lidos que aguardam a entrada no Rol. E lá ficou... e ficou... e ficou... A pilha foi crescendo, e eu acabei por «perder o  Fernando Pessoa de vista». Achei-o agora. Ao livro, claro!
Ache-o também, numa livraria, e leia!

Contos escolhidos, de Fernando Pessoa
Edição de Ana Maria Freitas e Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim (Porto Editora), 2016
229 págs.

02 junho, 2020

A inveja é maldade pura!


“Se, em vez de nos concentrarmos na nossa obra, começamos a pensar naqueles que tiveram êxito e nos atormentamos invejando-os (...) tornamo-nos surdos e cegos. Já não vemos aquilo que valemos, já não nos sentimos estimulados a melhorar, já não conseguimos aprender”. (*)

Inveja é um sentimento negativo, repugnante, vergonhoso, que nos impede até de compreender o pensamento dos outros.
No decurso da vida conheci pessoas que gastavam mais tempo a invejar os bens materiais, os atributos físicos, a superioridade do pensamento, as qualidades morais dos outros, do que a esforçarem-se em valorizarem-se a si próprios. Pessoas que esboçavam sorrisos de esfuziante alegria pela ruína da pessoa invejada. 
O mais estranho é que algumas dessas pessoas não tinham necessidade de invejar fosse o que fosse, fosse quem fosse, pois tinham uma vida quase perfeita.
Então porque o faziam?
Porque queriam ser os maiores, os melhores, os únicos? 
Nunca percebi porque alguém inveja um anel de prata, quando tem dois de ouro.
Nunca percebi porque alguém inveja um carro utilitário, quando conduz um topo de gama.
Nunca percebi porque alguém inveja  uma  micro-empresa, quando gere uma que vale milhões.
Nunca percebi porque alguém inveja um triunfo conquistado a pulso, quando ele já está no topo.
Sem respostas, habituei-me a desfilar, indiferente, o brilho do meu optimismo, o sorriso de gratidão pela vida, pelo que tenho, pelo que sou. Mas isso, sei hoje, faz “roer”, ainda mais, os invejosos. Os falhados da vida. Os incompetentes.
Nunca invejei alguém. Nunca invejei algo de alguém. Sou feliz com o que tenho. 
Odeio a inveja. Fujo de invejosos. Às vezes escorrego... 
(Teresa Dias)


(*) “Os Invejosos”, de Francesco Alberoni

(Foto: Capadócia - Turquia)