26 janeiro, 2016

Surripiei daqui... "Em teu ventre", de José Luís Peixoto


“(Talvez porque escreves livros, pareces convencido de que toda a gente precisa de saber ler. Não creias, há ignorâncias muito piores. Eu sei que é triste sermos obrigados a ficar do lado de fora, sem autorização, como se quisessem fazer-nos ver que não temos a valia dos outros. Conheço bem essa ofensa, acredita. Mas repara em tantas vidas que prosperaram sem uma letra, repara também em quantos sabem ler e nunca chegam a passar de imbecis.)”

“(Não são as palavras que distorcem o mundo, é o medo e a vontade. As palavras são corpos transparentes, à espera de uma cor. O medo é a lembrança de uma dor do passado. A vontade é a crença num sonho do futuro. Não são as palavras que distorcem o mundo, é a maneira como entendemos o tempo, somos nós.)”


“Mãe, atravessas a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam.”


Não foi por mal!

(Fotos da net)

22 janeiro, 2016

"Sábado" - Ian McEwan

Quem não dorme de madrugada faz um ninho com os seus próprios medos.
Londres, 15 de Fevereiro de 2003, sábado, três e quarenta da manhã.
Henry Perowne desperta de um sono profundo, levanta-se, às escuras atravessa o quarto, abre as portadas de uma das janelas de guilhotina e fica ali imóvel e imune ao frio da madrugada a olhar para a cidade. Depois, volta a deitar-se e abraça a mulher que ama.
Aos quarenta e oito anos Henry é um homem feliz e realizado: conceituado neurocirurgião, marido dedicado de Rosalind (advogada,) pai de Daisy (dada às letras e promissora poetisa) e de Theo (talentoso músico de blues). A sua felicidade apenas é abalada pela eminência da guerra com o Iraque, o crescente pessimismo desde o 11 de Setembro e um certo e inexplicável medo de que a sua vida familiar e a sua cidade estejam ameaçadas.
Por momentos esquece os medos e pensa no seu dia de folga semanal. Isso basta para o deixar eufórico e bem-disposto. Quer que aquele sábado seja perfeito: squash de manhã (é fã do exercício físico, corre frequentemente, participa todos os anos numa meia maratona de beneficência); compra dos ingredientes para uma perfeita sopa de peixe; jantar em casa com toda a família: o casal, o sogro e os filhos (Daisy vem de Paris, onde vive, e o filho prometeu ficar em casa pelo menos umas horas).
Como faz sempre nos dias de folga, liga para o hospital para saber dos seus doentes. Depois, animado por um café quente e forte, veste o velho fato de desporto, pega na raqueta, sai de casa, apressa o passo em direcção ao parque onde tem o carro e arranca em direcção ao clube de squash, ao som de um trio de cordas de Schubert (na sala de operações gosta de ouvir Bach).
Estranhamente sente um misto de felicidade e agressividade.
A meio de Tottenham Court Road um polícia de trânsito manda-o parar. A rua está fechada devido a uma manifestação contra a invasão do Iraque. Tenta avançar por uma rua estreita e deserta e eis, senão, quando dois carros tentam ocupar o espaço que só dá para um: o seu Mercedes S500 prateado e um BMW série cinco, modelo que ele associa a criminalidade e tráfico de droga.
Henry sai do carro para avaliar os estragos. O Mercedes está arruinado. E o mesmo acontece com o seu sábado. Está furioso mas tem de ter cuidado – no BMW estão três rapazes e ele não gosta de confrontos pessoais
- Um cigarro?
Uma mão grande, fechada e trémula estende-se para Henry.
- Não fumo, obrigado.
Apertam as mãos.
- Henry Perowne.
- Baxter. Espero que esteja disposto a pedir-me sinceramente desculpa.
Bastou o simples apertar de mãos para Henry perceber que aquele jovem nervoso e agressivo, tem graves problemas neurológicos.
O que acontece depois, naquela rua estreita e deserta? Confronto físico, claro!
Estragada a manhã, como corre a noite?
Vou desvendar muito pouco: a família está finalmente reunida; falam sobre música e poesia; brindam à vida, ao amor, à união familiar. De repente...
… de repente, Baxter de faca em punho irrompe violentamente na sala e transforma o serão familiar numa aventura aterradora, com consequências graves para todos.
Acabou!
Para saber o que ali se passou; quem tem de perdoar quem; como pode a leitura de um poema enfeitiçar um homem - vai ter de ler "Sábado".

Foi um gosto reler este romance . É o meu preferido, de todos os que já li de Ian McEwan.
Para criar e caracterizar o protagonista Henry Perowne, ele assistiu durante dois anos ao trabalho do neurologista Dr. Neil Kitchen no bloco operatório e ouviu tudo sobre “as complexidades da sua profissão e do cérebro, com as suas inúmeras patologias”.
Quem se esforça faz perfeito!
Aviso de amiga: não passe  numa rua oficialmente fechada ao trânsito.

Sábado, de Ian McEwan
Tradução de Maria do Carmo Figueira
Ed. Gradiva, 2005
330 págs.

19 janeiro, 2016

Surripiei daqui... "Em teu ventre", de José Luís Peixoto


“(Quando eras pequeno, eu guardava-te a melhor parte de tudo. Se alguém se atrevesse a cobiçar as coisas do menino, eu tornava-me fera. Gostava de saber porque é que agora nunca me chamas para compartir as partes boas. Mas se houver alguma desgraça, é certo que vens logo a correr queixar-te.)”

“(À hora de almoço, só precisavas de ocupar o teu lugar à mesa. Mesmo assim, ainda te achavas no direito de me acusar de sal a mais ou a menos. Nunca valorizaste o meu cansaço, porque sempre ignoraste o meu trabalho e o meu transtorno. Agora, juntas estas palavras como se realizasses uma grande façanha. É bem feito que os que estão a dormir sejam os primeiros a criticar-te adjetivos. No fundo, acontece-te com eles o mesmo que me acontecia contigo: por aparecer feito, supunhas que não custava nada.)”


Não foi por mal!

(Foto da net)

13 janeiro, 2016

Surripiei daqui... "Em teu ventre", de José Luís Peixoto



“Mãe, volto a nascer de ti sempre que tenho de mostrar toda a esperança de que sou capaz.
Sem ti onde estaria aquele que sou?
Sem ti, eu não seria eu; teria outro nome, outro rosto, estaria noutro lugar (…)
Sem ti, a verdade seria outra.
Mãe, primeira e última palavra.”

Não foi por mal!

(Foto da net)

12 janeiro, 2016

Surripiei daqui... "Em teu ventre", de José Luís Peixoto


“(Todas as pessoas têm direito a descanso, menos as mães. Para cada tarefa, profissão ou encargo há direito a uma folga, menos para as mães. Se alguma mãe demonstrar a mínima fadiga de ser mãe, haverá logo uma besta, ignorante de limpar baba e de partir, que se oferecerá para a pôr em causa. Não é mãe, não sabe ser mãe, não foi feita para ser mãe, dirá. Mas, se todas as pessoas têm direito a descanso, será que as mães não são pessoas? A culpa é nossa. Sim, a culpa é das mães. Deixámos que fossem os filhos a definir-nos.)”

Não foi por mal!

(Foto da net)

08 janeiro, 2016

"Em teu ventre" - José Luís Peixoto

Porque viria Nossa Senhora, infinita e universal, a este pequeno país? Num mundo tão necessitado, onde em tantos lados a ignoram e agridem, porque viria a mãe de Deus a este país e, podendo escolher à vontade no mapa, porque viria exatamente aqui?

A sinopse diz:
"A partir de um ponto de vista inteiramente novo, Em Teu Ventre retrata um dos episódios mais marcantes do século XX português: as aparições de Nossa Senhora a três crianças, entre maio e outubro de 1917.
Cruzando o rigor da sua dimensão histórica com a riqueza de uma galeria de personagens surpreendes, este livro propõe uma reflexão acerca de Portugal, naquilo que tem de mais subtil e profundo.
Tanto na aparente simplicidade como no abismo do seu mistério, a maternidade é também um dos temas marcantes de Em Teu Ventre."

Já eu, nada vou revelar sobre o enredo deste romance soberbo. 
Nem sobre as personagens  (Maria, mãe de Lúcia, e Maria da Capelinha são magníficas).
Nem sobre a escrita cativante e viciante e cintilante de José Luís Peixoto.
Nada!
Li o romance. Absorvi o conteúdo. Não o esquecerei. Recomendo a sua leitura. Não minto. Basta!
Uma mentira, fina com um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo.
Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros têm da realidade, leva-os a acreditar que é aquilo que não é.
Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. É por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster.

Em Teu Ventre voltará ao “rol de leituras” muitas outras vezes. Não resisto a citar o que verdadeiramente me deslumbra. Que me desculpem os meus seguidores e, principalmente, o autor.
A que horas vai chegar Nossa Senhora?

Em teu ventre, de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal, 2015
163 págs.

05 janeiro, 2016

11º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa

110-(1915?)
“O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei.”

112- (1915?)
“Invejo a todas as pessoas o não serem eu. Como de todos os impossíveis, esse sempre me pareceu o maior de todos, foi o que mais se constituiu minha ânsia quotidiana, o meu desespero de todas as horas tristes."

116-(1915?)
"Os desastres dos romances são sempre belos porque não corre sangue autêntico neles, nem apodrecem os mortos nos romances, nem a podridão é podre nos romances.”

117-(1915?)
“Muitas vezes para me entreter – porque nada entretém como as ciências, ou as coisas com jeito de ciências, usadas futilmente – ponho-me escrupulosamente a estudar o meu psiquismo através da forma como o encaram os outros. Raras vezes é triste o prazer por vezes doloroso que esta tática fútil me causa.
Geralmente, procuro estudar a impressão geral que causo aos outros, tirando conclusões. Em geral sou uma criatura com quem os outros simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito. Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!