30 novembro, 2015

A brincar a brincar se dizem umas verdades!


Muito obrigada.
Gostei!

9º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa



56-(1914?) Máximas
“- A nossa personalidade deve ser indevassável, mesmo por nós próprios: daí o nosso dever de sonharmos sempre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para que nos não seja possível ter opiniões a nosso respeito.
E especialmente devemos evitar a invasão da nossa personalidade pelos outros. Todo o interesse alheio por nós é uma indelicadeza grave. O que livra a vulgar saudação - como está? – de ser uma indesculpável grosseria é o ser ela em geral absolutamente oca e insincera.

- Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios. (Importa soberanamente que não amemos.)

- Dar bons conselhos é não respeitar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os atos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros – para saber bem, ao agir ao contrário, quem somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!

29 novembro, 2015

8º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa

54-(1914?)
“Amar é maçador, mas é talvez preferível a não amar. O sonho, porém, substitui tudo. Nele pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter medo ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que me doa que nunca chego; sem querer resolver um problema que veja que nunca resolvo. Posso amar sem que me recusem ou me traiam, ou me aborreçam. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. (...) 
Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fora da vida; depende apenas do meu poder em tornar o sonho vivido, nítido, real. Isso exige estudo e paciência interior.
Há várias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar torná-los nítidos, deixar-se ir no vago e no crepúsculo das sensações. É inferior e cansa, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Há o sonho nítido e dirigido, mas aí o esforço em dirigir o sonho trai o artifício demasiadamente. O artista supremo, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal, que tome tais caprichos... e ele desenrola-se diante dele assim como ele o desejaria, mas não poderia conceber, se fatigaria de fazê-lo. Quero sonhar-me rei... Num ato brusco, quero-o. E eis-me súbito rei dum país qualquer. Qual, de que espécie, o sonho mo dirá... Porque eu cheguei a esta vitória sobre o que sonho – que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!



28 novembro, 2015

"Casa arrumada é assim...", de Carlos Drummond de Andrade


"Casa arrumada é assim: Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não centro cirúrgico, um cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas... Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta pros amigos, filhos... Netos, pros vizinhos... E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia.
Arrume a casa todos os dias... Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela... E reconhecer nela o seu lugar."

Carlos Drummond de Andradepoeta e contista brasileiro (1902-1987)

(Agradeço a quem me mandou este texto encantador.)

7º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa

53-(1914?)
“Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas. É que nunca penso, nem falo, nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu, em que me encarno de momento. Vou a falar e falo eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo quanto é a vida. Não sei os gestos a ato nenhum real.
Nunca aprendi a existir.
Tudo que quero consigo, logo que seja dentro de mim.

Se me perguntardes se sou feliz, responder-vos-ei que o não sou. (Intervalo Doloroso)

Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso."

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


27 novembro, 2015

Formou Deus o homem... em "Viagens na minha terra", de Almeida Garrett


Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.
O homem – não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando, em seus moldes de ferro, aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade - , o homem, assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita a Terra.
Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza; príncipe deserdado e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados; altivo ainda e soberbo com as recordações do passado; baixo, vil e miserável, pelas desgraças do presente.
Destas duas tão opostas actuações constantes, que já por si só o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras, a qual mais desvairada, encontrado, de repugnâncias a qual mais oposta. “

Almeida Garrett - poeta, historiador, filófoso, crítico e artista, jurisconsultor e administrador, erudito e homem de Estado - nasceu no Porto, em 1799 e faleceu em Lisboa, em 1854.
"Viagens na minha terra" (1846) é um misto de romance (que belo o amor de Carlos e Joaninha), narrativa de uma viagem de Lisboa a Santarém, e reflexão sobre Portugal do século XIX, cativante e  actualíssimo.
Leia!

6º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa



34-(1913?)
“Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor à minha ideia de os achar belos.”

49-(1914?)
“Viver a vida em sonho e falso é sempre viver a vida. Abdicar é agir. Sonhar e confessar a necessidade de viver, substituindo a vida real pela vida irreal, e assim é uma compensação da inalienabilidade do querer viver.
Que é tudo isto enfim senão a busca da felicidade? (...)
Este livro é um só estado de alma, analisado de todos os lados, percorrido em todas as direcções.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


26 novembro, 2015

Quando nasci... em "Eu, Malala", de Malala Yousafzay


Quando nasci, os habitantes da nossa aldeia exprimiram o seu pesar à minha mãe e ninguém deu os parabéns ao meu pai. Cheguei de madrugada, quando a última estrela se extinguia. Nós, os Pastós, consideramos que isso é um sinal auspicioso. O meu pai não tinha dinheiro para pagar o hospital nem para uma parteira, por isso foi uma vizinha que ajudou no me nascimento. O primeiro bebé dos meus pais fora nado-morto, mas eu saltei cá para fora a espernear e a berrar. Era uma menina nascida numa terra em que se disparam armas para celebrar o nascimento de um filho, enquanto as filhas são escondidas por detrás e uma cortina, sendo o seu papel na via simplesmente fazer comida e parir filhos.”

Sinopse:
No dia 9 de Outubro de 2012, Malala Yousafzay, então com 15 anos, regressava a casa vinda da escola quando a carrinha onde viajava com as professoras e as colegas foi mandada parar e um homem armado disparou três vezes à queima-roupa sobre a jovem, atingindo também outras duas raparigas. Nos últimos anos Malala – uma voz cada vez mais conhecida, não só na região de onde é oriunda, o Vale de Swat, mas também em todo o Paquistão, por lutar pelo direito à educação de todas as crianças, especialmente das raparigas – tornou-se um alvo para os terroristas islâmicos. Esta é a história, contada na primeira pessoa, da menina que se recusou a baixar os braços e a deixar que os talibãs lhe ditassem a vida.

5º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


28-(1913?) Estética da Indiferença
“Cada um de nós é uma sociedade inteira, todo um bairro de Deus, convém que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro, que nas festas das nossas sensações haja requinte e recato, e pompa sóbria e cortesã nos banquetes dos nossos pensamentos.
(...)
Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de um sonho de amar, pálido e trémulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


24 novembro, 2015

Aprende-se muito na insensibilidade... em “Galveias”, de José Luís Peixoto


Aprende-se muito na insensibilidade. Regra desde o começo do mundo: quando os homens casados querem algo, começam por se queixar da mulher. As coisas lá em casa não andam muito bem; vivemos juntos, mas já não há nada entre nós; estamos quase a separar-nos. Então, quando se aperta com eles, dando um pouco e tirando um pouco, passam à fase de prometer que vão deixar a mulher, mas precisam sempre de tempo. Só estou à espera do momento certo; a notícias vai arrasá-la, coitada; confia em mim, já falta pouco. Depois o tempo continua a passar: os filhos, a casa, os sogros, etc. E um dia, de repetente, chega a notícia: adeus, o problema não és tu, sou eu. Grande novidade.
(...)
Desaprende-se muito na insensibilidade.”


(Foto tirada da net.)

22 novembro, 2015

"Acasalamento" - Norman Rush

"Tudo o que escrevo é para a Elsa, mas em especial este livro, uma vez que, nele, o seu coração, a sua sensibilidade e inteligência são celebrados e explorados de forma notória, ainda que forçosamente esotérica. A minha dívida para com ela, na arte e na vida, cresce, por mais que eu tente contrabalançar."
(Para Elsa, a mulher.)

Em África, quer-se sempre mais, parece-me.
As pessoas tornam-se ávidas. 
Sou antropóloga e tenho um passatempo relacionado com isso, que é tentar encaixar as peças que me permitem compreender o mundo verdadeiro e tentar viver nele.
A voz “ que ouvimos” é de uma americana, de quem não sabemos o nome. Sabemos apenas que é solteira, robusta, com propensão para a violência (quando alguém me toca sem eu dar autorização), leitora compulsiva, excêntrica, que detesta melodramas, está sexualmente desperta, tem trinta e dois anos de idade à data dos factos que expõe cronologicamente neste longo, inteligente, intenso, irónico e bem humorado romance.
Factos ocorridos na década de oitenta, no Botsuana, país africano que escolheu (uma de tantas outras escolhas...) para preparar uma tese sobre antropologia nutricional para demonstrar que a fertilidade nas chamadas “populações residentes em regiões remotas” oscila consoante a estação, porque uma grande parte do que essas populações remotas comem depende do que conseguem encontrar quando vão recolher alimentos, o que devia afetar a fertilidade.
Depois de dezoito meses praticamente sozinha no mato, desanimada por ver a tese a ir por “água abaixo” desiste e retira-se para a capital... sentia-me sexualmente desperta e não há lugar no mundo como Gabarone para uma mulher branca, livre e solta...
Sem planos, com a vida académica em "banho-maria", com um historial sexual que era a encarnação da banalidade, começa por se “distrair” atraindo atenções masculinas da colónia branca, cuja vida gira à volta de muitas festas, muita bebida e muito sexo.
É sem pudor que fala sobre três amantes - não teve muitos pois selecciona-os rigidamente -  três homens muito diferentes, estranhos mas especiais, três relações falhadas: Giles, fotógrafo britânico; Martin Wade, um musicólogo homofóbico sul-africano; Z, um espião vaidoso, que sofre de escoliose, com quem tem uma relação praticamente sem sexo, mas com muitas massagens: dominei as costas dele.
Depois de Z é Nelson Denoon, que “entra” na sua vida.
Desde os tempos da faculdade que ela deseja conhecer aquele homem inteligente, atraente, misterioso, considerado o “suprassumo” em áreas como economia, antropologia, antropologia económica e ciências políticas.
Encontra-o num evento em Gabarone, fala com ele, apaixona-se, entra em euforia - quando o conheci a sensação foi mesmo a de um edifício a cair para cima de mim.
Dennon é o intelectual carismático fundador de Tsau, uma aldeia comunitária para mulheres e dirigida por mulheres – mulheres indigentes de todo o Botsuana - num lugar remoto do deserto do Kalahari. Mesmo sabendo que Tsau é um projecto fechado onde não entram visitantes não convidados, ela atravessa sozinha o deserto para  voltar a ver Denoon.
Chega a Tsau desnutrida e exausta.
As mulheres da aldeia tratam da corajosa “viajante perdida”, que durante o dia finge não conhecer Denoon mas com quem tem à noite encontros privados. Os dias passam, ela recupera, e as mulheres acabam por aceitá-la como uma habitante provisória da aldeia. Então, de privados os encontros com Denoon passam a públicos e logo iniciam um longo e complexo ritual de acasalamento.
E fico por aqui, para deixar que seja você a descobrir o verdadeiro significado do título deste romance - Acasalamento” (Mating, no título original).
E a encontrar uma grande personagem feminina – forte personalidade, inteligente, determinada, destemida, afectuosa, alegre, sensual – que busca incessantemente um amor perfeito num lugar perfeito, mesmo sabendo que o amor é cansativo. Andar atrás de alguém é cansativo.
E a conhecer o Botsuana, um país do interior sul árido do continente africano.

Não é fácil escrever sobre este primeiro romance (1991) de Norman Rush.
Escrever sobre o que nos conta uma mulher que pensa sobre tudo, analisa tudo, experimenta tudo, compara tudo, anota tudo, questiona tudo... não é mesmo nada, nada fácil. 
A sua voz é tão audível, tão verdadeira e nua e crua, que incomoda. Incómodo atenuado por tiradas de humor subtil que nos acalentam da primeira à última página. E são 592. Talvez demasiadas. O relato sobre o dia-a-dia em Tsau, por exemplo, estende-se por cerca de 400 páginas. Demasiadas e, por vezes, um tudo-nada massudas.
Faço minhas as palavras da grande protagonista-narradora: a vida não deve ser mais dolorosa do que tem de ser.
Apesar de tudo... leia!

Acasalamento, de Norman Rush
Tradução de Tânia Ganho
Ed. Quetzal, 2015
592 págs.

17 novembro, 2015

4º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


22-(1913?)
“Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.”

25-(1913?)
“Não aspiro a nada . Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar.”

26-(1913?) Viagem nunca feita
“Cada um de nós é uma sociedade inteira, todo um bairro de Deus, convém que ao menos tornemos elegante e distinta e vida desse bairro, que nas festas das nossas sensações haja requinte e recato, e pompa sóbria e cortesã nos banquetes dos nossos pensamentos. “(…)
“Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de um sonho de amar, pálido e trémulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer ela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormece-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


16 novembro, 2015

Trabalho em massapão - a perfeição


“… a perfeição é alcançada não quando nada mais há a acrescentar, mas quando nada mais há a suprimir.”

Antoine de Saint-Exupéry, escritor-aviador francês (1900-44), in “Terra dos homens”, Ed. Vega, 1995


(Agradeço a quem me mandou esta perfeição.)

13 novembro, 2015

"Como água para chocolate" - Laura Esquivel

O aborrecido de chorar quando picamos cebola não é o simples facto de chorar, mas sim às vezes começarmos, ou melhor, ficarmos picados, e já não conseguirmos parar. Não sei se já vos aconteceu, mas a mim, para dizer a verdade, já. Vezes sem conta. A mamã dizia que era por eu ser tão sensível à cebola como Tita, a minha tia-avó. (...)
Tita chegou a este mundo prematuramente, em cima da mesa a cozinha, entre os cheiros de uma sopa de aletria que estava a ser cozinhada, do tomilho, do louro, dos coentros, do leite fervido, dos alhos e, é claro, da cebola. (...)
Este inusitado nascimento foi determinante para o facto de Tita sentir um imenso amor pela cozinha.
Lida ou vista no cinema, serão poucos os que não terão já saboreado a história de amor de Tita e Pedro, “cozinhada” numa quinta do México revolucionário do início do século XX.
Amor proibido pela tradição familiar que dita o destino de Tita: por ser a mais nova das três filhas da Mamã Elena (mulher de forte personalidade), cabe-lhe a ela cuidar da mãe até ao dia da sua morte.
Enquanto Tita se interroga: Quem teria iniciado esta tradição familiar? Se não podia casar nem ter filhos, quem é que ia então cuidar dela quando chegasse à senilidade?, Pedro pede a sua mão  à Mamã Elena e esta, em alternativa, propõe-lhe a mão de Rosaura, dois anos mais velha do que Tita. 
Pedro vê nesse casamento a única saída para estar perto da mulher que realmente ama e aceita casar com Rosaura, e Tita, resignada, refugia-se na grande cozinha da quinta, para continuar a aprender com Nacha, a velha e sábia cozinheira índia, tudo sobre sabores, aromas e amores. 
Após a morte de Nacha, Tita ocupa o seu lugar na cozinha e esmera-se para cozinhar cada dia melhor para o seu amado - assim como um poeta joga com as palavras, assim ela jogava à sua maneira com os ingredientes e com as quantidades obtendo resultados fenomenais.
A história  de Tita e Pedro “cozinha-se” em doze capítulos. Cada capítulo, de Janeiro a Dezembro, abre com uma receita, os respectivos ingredientes e o modo de fazer.
As receitas são realizáveis?
Talvez, mas confesso que não experimentei. Bastou-me saborear a magia do amor “explosivo” (verdade, verdadinha) dos dois amantes.

Foi bom reler este “saboroso e ternurento” romance.
Se ainda não o leu, leia. Leia e deguste com prazer. Tem ZERO calorias.
Hum! Hum!

Como Leite para chocolate, de Laura Esquivel
Tradução de Cristina Rodriguez
Ed. ASA, 1993
229 págs.

10 novembro, 2015

Poemas de... Manuel de Sousa Falcão

Manuel de Sousa Falcão brindou-me com três poemas do seu próximo livro, e com uma foto do quadro “Duas figuras” (acrílico sobre tela), que exibiu na exposição “Escuro”, na Casa das Artes, Porto, 2015.
Porque gostei MUITO, e com a devida autorização do poeta-pintor, partilho no meu “rol".
Maiores sucessos!

AMAR EM VÃO
Mor meu
Mor parte
Das vezes
Só meu.
Vão por
Isso

(Poema sem título)
Caminho este tal andado
Mais mais longe do lugar quente
Onde a morte seu momento adiado
Enquanto afunda em dor a mente e não se sente
Do que foi, o coração confiado em jamais ser terminado
Passo dado agora à morte rente
E na espera tempo humano silente

Oh dança estranha então se faz
Diz do que foi mudado

DO CHORO
Se som
O plangente
Da cinira
Não outro

07 novembro, 2015

"Galveias" - José Luís Peixoto


ENTRE TODOS OS LUGARES POSSÍVEIS, foi naquele ponto certo.
Durante um minuto inteiro, Galveias foi atravessada por uma sucessão de explosões contínuas, sem um intervalo pequeno, sem uma folga. (...)
Quando o barulho terminou, ficou o silêncio insistente, um guincho nos ouvidos. Então, podiam ter gritado, mas aquele já não era tempo de gritos, era hora de respirar. Por isso, todos foram para a rua, velhos crianças, mulheres, homens com a barba por fazer.
O ar estava coberto por um sólido cheiro a enxofre.
Galveias” é um magnífico romance (ou livro de memórias?), uma homenagem comovente prestada pelo autor aos seus conterrâneos galveenses.
Galveenses que numa noite escura e fria de Janeiro de 1984 ouvem um estrondo estranho, como se a terra estivesse a partir-se ao meio, e na manhã seguinte descobrem na herdade do Cortiço, uma coisa sem nome, caída numa cratera redonda e inédita, que só conseguem esquecer após sete dias de chuva ininterrupta.
“Galveias” é um bem construído retrato psicológico rural, que nos prende da primeira à última página. 
Depois do estranho início o romance prossegue com um rendilhado de histórias misteriosas, risíveis, sofredoras e enternecedoras, contadas a partir de um núcleo alargado de personagens, que convivem num tempo e num lugar: o velho Justino (quando decidiu matar o irmão que não via há mais de cinquenta anos, fizeram as pazes); Chico Francisco; João Paulo (doido por motas); Sem Medo; Funesto; doutor Matta Figueira; Acúrcio; Joaquim Janeiro (tem em casa uma caixa fechada onde guarda a Guiné); ti Adelina Tamanco; Joaquim Janeiro, Rosa Cabeça e Joana Barreta (uma história hilariante, um amor proibido); Bartolomeu; ti Silvina; menina Aida; Miau; Isabella (brasileira, prostituta e padeira); Cebolo; ti Manuel Camilo; Maria Teresa (a professora nortenha de língua afiada); Isaura; o padre Daniel; Maria Assunta; etc., etc., etc..
Todos temos um lugar onde a vida se acerta.
Sem acusar cansaço, e sempre sentindo no ar o cheiro do enxofre, calcorreamos as ruas geladas e escuras da vila; penetramos na intimidade de gente humilde e trabalhadora; espreitamos namoros, casamentos e funerais; sabemos de segredos; escutamos choros e lamentos; vimos passar a motorizada enlouquecida do Catarino; admiramos passos de dança; sentimos o cheiro de pão fresco; ouvimos ladrar cães de vários tamanhos; viajamos com o carteiro até à Guiné; fugimos de chuva gelada; lemos panfletos que anunciam aulas de alfabetização para adultos; revoltamo-nos com a tareia  dada ao ti Manuel Camilo; conhecemos o padre Daniel; vimos nascer uma menina, que tinha o cheiro normal das crianças acabadas ade nascer. Não cheirava a enxofre.

Galveias é uma pequena vila do distrito de Portalegre, terra natal de José Luís Peixoto.
Galveias não pode morrer.
Genial!

Galveias, de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal, 2014
278 págs.

03 novembro, 2015

3º- Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


16 -(1937?) Intervalo Doloroso
“Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor. (…)
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar. (…)
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gesto e de atos.
Por mais que por mim me embrenhe todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia. (…)
A minha vida é como se me batessem com ela.”

17-(1937?) Peristilo
“Tu não o sabes, tu não sabes que o não sabes, tu não queres saber nem não saber. Despiste de propósitos a tua vida, nimbaste de irrealidade o teu mostrar-te, vestiste-te de perfeição e de intangibilidade, para que nem as Horas te beijassem, nem os Dias te sorrissem, nem as Noites te viessem pôr a lua entre as mãos para que ela parecesse um lírio.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!