O medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre.
Era medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir.
O romance “Torto Arado”, do brasileiro Itamar Vieira Junior, venceu por unanimidade o Prémio LeYa 2018.
Por unanimidade? Curiosa, procurei-o nas livrarias. E logo li a sinopse. E logo fiquei rendida… à «procissão de lembranças» desvendadas por Bibiana e Belonísia, filhas de trabalhadores da Fazenda Água Negra, no sertão da Bahia, descendentes de escravos para quem a abolição nunca passou de uma data marcada no calendário.
São muitas e tristes as histórias do quotidiano na fazenda, quase sempre protagonizadas por mulheres. Histórias de vida, morte, medo, dor, violência, humilhações, mas também de amizade, amor e luta pela libertação, contadas à vez pelas duas irmãs, transmissoras de todas as vozes negadas, que uma tragédia na infância tornou tão dependentes que uma será até a voz da outra. São filhas de Salu e de Zeca Chapéu Grande, guia do povo de Água Negra para assuntos de trabalho, problemas de saúde, resolução de conflitos familiares e tudo o mais; e netas de Donana, a parteira de mãos pequenas «capazes de entrar no ventre de uma mulher para virar com destreza uma criança atravessada, mal encaixada, crianças com os movimentos errados para nascer». Vivem numa fazenda onde as casas e os caminhos são de terra «de barro apenas… e de onde brotava tudo que comíamos. Onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde enterrávamos os restos de nossos corpos. Para onde desceríamos algum dia. Ninguém escaparia.»
Anos depois da tragédia que emudeceu uma das irmãs, chega à fazenda o tio Servó, para dar «seu suor na plantação». Chega acompanhado da mulher e seis filhos. E primeiro uma depois a outra, as duas irmãs perdem-se de amores pelo primo Severo, menino tímido de sorriso largo, que, quando homem feito tem planos de estudar na cidade e trabalhar nas sua própria terra. Bibiana, então com dezasseis anos, ouvia-o embevecida «… nunca havia conhecido ninguém que me dissesse ser possível uma vida além da fazenda». Então, um dia, «naquela terra mesmo, entranhada da secura da falta de chuva, deixamos nosso suores para que lhe servisse de alívio», e logo os enjoos passaram a diários e a fuga dos dois para a cidade foi feita no sereno de uma noite.
Os anos passaram, os donos da fazenda mudaram e, para evitar problemas com os homens da lei, passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. E Bibiana e Severo regressaram a Água Negra, decididos a lutar pelo direito à terra, melhores condições de vida e emancipação dos trabalhadores.
“Rio de Sangue” é o título do terceiro e último capítulo do livro. Por quê este título e quem é o narrador? Por respeito pela fonte do rio de sangue e lágrimas… nada revelo!
Nos momentos de forte emoção meu horizonte se embota, transbordo para os lados, não consigo reunir o que me compõe.
(Não, não são palavras minhas, mas podiam ser, tão forte era a emoção ao terminar a leitura deste fascinante romance/retrato da ruralidade brasileira no período que se seguiu à abolição da escravatura, no final do Séc. XIX.) Leia-o, por favor!
Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É escritor, geógrafo e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA), com pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro. Publicou a colectânea de contos "A Oração do Carrasco" (2017), finalista do prestigiado Prémio Jabuti de Literatura.
(Foto do escritor tirada da net.)