Aos 10 anos mudei-me com pais e irmã para o "Prédio Valente", na Av. Pinheiro Chagas, em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique.
Aos 12 vi chegar ao prédio a Nina, uma menina nascida em Quelimane, filha de pais goeses, que logo se tornou a minha melhor amiga. Éramos da mesma idade. Frequentávamos a mesma escola. Vivíamos no mesmo prédio e no mesmo piso. Eu sentia-me bem em casa dela (a mãe era docinha como mel), ela, introvertida, evitava a minha. Os nosso pais eram bons amigos. Nós, amigas inseparáveis!
A Nina tinha uma irmã, a Iolanda, dez anos mais velha que nós. Naquele tempo, dez anos de diferença de idade era uma grande diferença. Ela pintava as unhas de vermelho, nós ruíamos as unhas. Ela trabalhava, nós estudávamos. Ela namorava, nós gastávamos tempo a jogar às cartas, ao ringue ou à macaca, a trocar cromos, a ver filmes, a ouvir na rádio canções meladas. Ela lia "livros sérios", nós líamos foto-novelas. E por aí fora...
Aos 18 anos, já eu namorava o pai dos meus filhos, a Iolanda era mãe-solteira de um lindo menino loiro e vivia com ele num apartamento arrendado, na mesma rua. Éramos amigas! Eu admirava-a pela força e coragem e ouvia embevecida os seus sábios conselhos.
Sentia-me bem em casa dela. Uma casa pequena, acolhedora, confortável, que… tinha dentro muitos livros.
Na altura já eu tinha largado as foto-novelas (fui obrigada!) e lia fogosamente tudo o que me aparecia à frente. Como nas livrarias eram poucas as novidades, eu encomendava livros a livrarias da Metrópole e chegavam-me pelo correio. Era uma alegria abrir aqueles pacotes - previamente vistoriados pela polícia política - tirar de dentro os livros com cuidado, cheirá-los, desfolhá-los, assiná-los e devorá-los, literalmente, mas com alguma calma porque a próxima remessa tardaria a chegar, ou mesmo não chegar se os meus gostos literários não agradassem ao agente da PIDE que visionasse o pacote dos meus livros. Isso acontecia mesmo! A Isabel, minha colega e amiga, foi duas vezes chamada e interrogada sobre livros que recebia de Portugal. «Meros romances», dizia ela, que nunca recuperou. Era assim, naquele tempo líamos apenas o que os esbirros do fascismo permitiam.
Voltando à Iolanda, recordo o dia em que sentada no sofá da sua sala, olhando, remirando e por vezes mexendo nos seus livros, lhe pedi emprestado "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós, e ela respondeu sem qualquer hesitação.
- Não! Podes ler aqui esse livro e todos os outros, levares é que não.
Emudeci estupefacta, poisei o livro e saí. Tristíssima!
Demorei a voltar a casa dela. Um livro não nos separou, mas criou silêncios incómodos.
Muitos anos depois, já em Portugal, os livros tornaram-se os meus amigos silenciosos e disponíveis, e eu compreendi a atitude da Iolanda quando passei a assiná-los, a anotar o mês e o ano da leitura, a sublinhar frases, a fazer anotações nas margens, enfim, deixaram de ser do autor e passaram a ser meus.
O “não” da Iolanda doeu, mas nada aprendi com ele. Ainda hoje não sei dizer NÃO quando me pedem um livro emprestado e isso deixa-me furiosa.
Furiosa, porque são bastantes os livros que emprestei e não me foram devolvidos.
Sei o nome de todos eles, e são bastantes. Sei com quem estão. Sei também que nunca os conseguirei pedir de volta. Falta-me a determinação da Iolanda.
Há uns anos atrás a minha filha emprestou, sem eu saber, um livro meu a um amigo dela. Quando dei pela falta d’ “O Perfume”, de Patrick Süskind, fiz uma cena danada e exigi que ela pedisse o livro ao amigo. Passaram-se meses, passaram-se anos e ela não aparecia com o livro. «Perdi-o para sempre», pensava eu.
Ela, como eu, lamentavelmente, não conseguia pedir o livro ao amigo e, para me calar, comprou-me um livro novo.
Calei-me, mas sempre que olho para “O Perfume” não o reconheço como meu. Falta-lhe tudo lá dentro. E deprime-me pensar que ele está em outra casa que não a minha, a ser manuseado por outras mãos que não as minhas, a ser lido segundo o fio condutor das minhas anotações.
Dói muito, “emprestadar” livros!
Regressei a Portugal em 1975. Encontrei a Iolanda cerca de 10 anos depois. Eu vivia num apartamento confortável e quase cheio de livros, ela numa tenda, no Jamor, cheia de "retornados" alojados pelo IARN. Estarrecida, logo lhe ofereci ajuda e ela começou a passar comigo os sábados, para lavar roupa na máquina, tomar um duche quente e decente, comer comida caseira, "botar" conversa. Nunca falávamos de livros, nunca me pediu emprestado um que fosse.
Muitos meses passaram até ao sábado em que ela não apareceu. Estranhei! Ela tinha o número do meu telefone fixo (não havia móveis, na altura). Aguardei!
Vários anos depois cruzámo-nos nas escadas rolantes de um Centro Comercial. Consegui ouvi-la dizer, enquanto eu subia e ela descia, que vivia em Sintra, em casa própria. Emudeci estupefacta (de novo com a Iolanda) e nem mais uma palavra ouvi, e nem uma só emiti. Na escada rolante, logo ali decidi que não seria um livro mas uma palavra a separar-nos:
INGRADITÃO!
Av. Pinheiro Chagas, a mais larga avenida de Lourenço Marques, anos 70.
"Prémio Valente - 5 pisos, 13 apartamentos por piso", no cruzamento da Av. Pinheiro Chagas com a Av. General Machado (o mesmo cruzamento da foto anterior). Foto tirada após a independência.
(Fotos da net.)