30 novembro, 2018

"Tenho vontade de lágrimas" - Fernando Pessoa


“A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir fechar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma. (…)
Uma criança que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não “tenho vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é um estúpido, senão isto: “Tenho vontade de lágrimas”. E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura liquefeita. “Tenho vontade de lágrimas”! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.
Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades fictícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido.


Passam hoje 83 anos sobre a morte do grande poeta português FERNANDO PESSOA.
Assinalo o dia com este texto do “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014.
(Fotos da net.)

27 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "desespero"



"O desespero é o suicídio do coração."


Frase de Jean-Paul Sartre, escritor e filósofo francês (1905-80)
Foto da net.

23 novembro, 2018

Palavras de...Viktor E. Frankl

"Um clínico geral já idoso consultou-me certa vez por causa de uma depressão grave. Na conseguia superar a perda da mulher, que tinha amado mais que tudo e que falecera dois anos antes. Perante isso, como podia eu ajudá-lo? O que deveria dizer-lhe? Bom, evitei dizer fosse o que fosse e em vez disso confrontei-o com a questão: «O que teria acontecido, doutor, se tivesse sido o senhor a morrer primeiro e a sua mulher tivesse de sobreviver sem si?» «Oh», disse ele, «para ela isso teria sido terrível; como teria sofrido!» E nessa altura retorqui: «Está a ver, doutor, esse sofrimento foi-lhe poupado e foi o senhor quem lho poupou - a dizer a verdade, fê-lo ao elevado preço de ter agora de lhe sobreviver e de a chorar.» Não disse uma palavra mas apertou-me a mão e deixou calmamente o meu consultório. De certa forma, o sofrimento deixa de o ser no momento em que se lhe descobre um sentido, tal como o sentido de um sacrifício."

Palavras de Viktor E. Frankl, psiquiatra austríaco (1905-97), in "O homem em busca de um sentido", Ed. Lua de Papel, 2012.
Foto da net.
Aconselho vivamente a leitura deste livro, impressionante relato do período que o autor passou no campo de concentração de Auschwitz.
Escrevi sobre ele aqui.

20 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "milionários"



“O tamanho da tua conta bancária e o tamanho da tua casa não têm nada a ver com viver cheio de alegria e maravilha. O mundo está cheio de milionários infelizes.”


Frase de Robin S. Sharma, escritor e orador motivacional canadiano (1965-), in “O monge que vendeu o seu Ferrari”, Ed. Pergaminho, 2004
Foto da net.

16 novembro, 2018

"A Preferida", conto (sem censura) de Rubem Fonseca

A PREFERIDA
"Minha mulher Raquel é ciumenta. Ela costumava me seguir, disfarçadamente, ou então contratava alguém para fazer isso.
Tenho que tomar muito cuidado quando abraço a minha Preferida. Sinto uma espécie de eflúvio, que vem da terra, que vem do ar, um perfume embriagador.
Minha mulher me perguntou:
«Você não gosta mais de fazer amor comigo, Pedro?»
«Gosto… gosto…»
«Então por que não faz?»
Abraço minha mulher, penso na minha Preferida e consigo cumprir minha obrigação de marido. Confesso que antes de encontrar a minha Preferida eu era um sujeito promíscuo. Não sei quantas abracei, às escondidas, algumas vezes à noite, sempre tendo o cuidado de não ser visto por ninguém.
Mas tornei-me outra pessoa depois que encontrei a minha Preferida. Quando eu a abraçava, ficava excitado, encostava o meu pénis nela e ejaculava, Isso me criava um problema, ou melhor, dois problemas. Eu tinha que entrar em casa, correr para o banheiro e lavar aquela cueca. Depois, na cama, era um problema com Raquel. Por uma dessas coincidências - quando penso em coincidência vem-me à mente a frase de Einstein «Coincidência é a maneira que Deus encontrou para permanecer no anonimato», cujo significado nunca entendi direito, mas também nunca compreendi sua fórmula de equivalência massa-energia, E=m2, a equação mais famosa do mundo. Alguém entende? Uma vez pedi ao meu professor de física, na universidade, que me explicasse aquilo e ele não conseguiu -, mas, como eu ia dizendo, por uma dessas coincidências, em um dos dias que encontrei a minha Preferida, Raquel quis fazer amor comigo.
«Novamente, Pedro? O que está havendo? Você tem outra mulher? Anda, diz a verdade, seu farsante, você anda com outra mulher?»
«Não, Raquel, estou apenas cansado.»
«Cansado de ficar sentado no escritório? Você pensa que eu sou alguma idiota?»
Raquel me agarrou pelo pescoço com tanta força que quase desmaiei.
«Se eu pegar você com outra mulher eu… mato os dois, os dois», ameaçou Raquel.
Certa ocasião eu li, não lembro onde, uma frase que dizia que existe um tempo para ousadia e um tempo para cautela, e o homem sábio conhece o momento de cada um deles. Eu me considerava um homem sábio, mas infelizmente estava cada vez mais ousado e menos cauteloso.
Um dia eu estava fazendo sexo com a minha Preferida quando fui surpreendido pelo flash de uma máquina fotográfica. Alguém me agarrou, senti uma pancada na cabeça e desmaiei.
Acordei numa cama de hospital, com os pulsos presos no gradil da cama.
Um sujeito de avental branco entrou no quarto.
«Está na hora da sua injeção», ele disse.
«Injeção? Por que estou preso aqui nesta cama?»
«O senhor sofre de uma doença muito grave. Dendrolatria patológica de terceiro grau.»
«Não sofro de doença nenhuma, quero ir embora, solte os meus pulsos, quero ir embora.»
«Temos fotos que comprovam o seu comportamento psicopatológico.»
«Fotos? Que fotos?»
«O senhor quer ver?»
«Quero, muito.»
Ele tirou do bolso uma foto e me mostrou. Eu estava fazendo amor com a minha Preferida, vestido, mas com o pénis de fora, enfiado nela.
«Desde quando a cópula é um comportamento psicopatológico?»
«Desde que ocorra com uma árvore. O exame de DNA vai provar que os inúmeros vestígios de esperma no caule são da sua autoria.»
A foto continuava na minha mão. A minha Preferida era mesmo uma árvore de caule grosso. Então ocorreu uma revelação arrebatadora: eu sempre fizera sexo com árvores, eu copulava com as árvores.
Antes que eu pudesse raciocinar sobre isso, o médico me aplicou uma injeção e perdi os sentidos."
 Leia e divirta-se!
BOM FIM DE SEMANA!

13 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "lágrimas"


Ninguém merece as tuas lágrimas e quem quer que as mereça não te vai fazer chorar.”



Frase de Gabriel García Márquez, escritor colombiano (1928-)
Prémio Nobel de Literatura, 1982

(Foto de ANTÓNIO GOMES, do blogue "Existe Sempre um Lugar". Obrigada, amigo!)

09 novembro, 2018

"Emprestadar" livros... e ingratidão!

Aos 10 anos mudei-me com pais e irmã para o "Prédio Valente", na Av. Pinheiro Chagas, em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique.
Aos 12 vi chegar ao prédio a Nina, uma menina nascida em Quelimanefilha de pais goeses, que logo se tornou a minha melhor amiga. Éramos da mesma idade. Frequentávamos a mesma escola. Vivíamos no mesmo prédio e no mesmo piso. Eu sentia-me bem em casa dela (a mãe era docinha como mel), ela, introvertida, evitava a minha. Os nosso pais eram bons amigos. Nós, amigas inseparáveis!
A Nina tinha uma irmã, a Iolanda,  dez anos mais velha que nós. Naquele tempo, dez anos de diferença de idade era uma grande diferença. Ela pintava as unhas de vermelho, nós ruíamos as unhas. Ela trabalhava, nós estudávamos. Ela namorava, nós gastávamos tempo a jogar às cartas, ao ringue ou à macaca, a trocar cromos, a ver filmes, a ouvir na rádio canções meladas.  Ela lia "livros sérios", nós líamos foto-novelas. E por aí fora...
Aos 18 anos, já eu namorava o pai dos meus filhos, a Iolanda era mãe-solteira de um lindo menino loiro e vivia com ele num apartamento arrendado, na mesma rua. Éramos amigas! Eu admirava-a pela força e coragem e ouvia embevecida os seus sábios conselhos.
Sentia-me bem em casa dela. Uma casa pequena, acolhedora, confortável, que… tinha dentro muitos livros.
Na altura já eu tinha largado as foto-novelas (fui obrigada!) e lia fogosamente tudo o que me aparecia à frente. Como nas livrarias eram poucas as novidades, eu encomendava livros a livrarias da Metrópole e chegavam-me pelo correio. Era uma alegria abrir aqueles pacotes - previamente vistoriados pela polícia política - tirar de dentro os livros com cuidado, cheirá-los, desfolhá-los, assiná-los e devorá-los, literalmente, mas com alguma calma porque a próxima remessa tardaria a chegar, ou mesmo não chegar se os meus gostos literários não agradassem ao agente da PIDE que visionasse  o pacote dos meus livros. Isso acontecia mesmo! A Isabel, minha colega e amiga, foi duas vezes chamada e interrogada sobre livros que recebia de Portugal. «Meros romances», dizia ela, que nunca recuperou. Era assim, naquele tempo líamos apenas o que os esbirros do fascismo permitiam.
Voltando à Iolanda, recordo o dia em que sentada no sofá da sua sala, olhando, remirando e por vezes mexendo nos seus livros, lhe pedi emprestado "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós, e ela respondeu sem qualquer hesitação.
- Não! Podes ler aqui esse livro e todos os outros, levares é que não.
Emudeci estupefacta, poisei o livro e saí. Tristíssima!
Demorei a voltar a casa dela. Um livro não nos separou,  mas criou silêncios incómodos.

Muitos anos depois, já em Portugal, os livros tornaram-se os meus amigos silenciosos e disponíveis, e eu compreendi a atitude da Iolanda quando passei a assiná-los, a anotar o mês e o ano da leitura, a sublinhar frases, a fazer anotações nas margens, enfim, deixaram de ser do autor e passaram a ser meus.
O “não” da Iolanda doeu, mas nada aprendi com ele. Ainda hoje não sei dizer NÃO quando me pedem um livro emprestado e isso deixa-me furiosa.
Furiosa, porque são bastantes os livros que emprestei e não me foram devolvidos.
Sei o nome de todos eles, e são bastantes. Sei com quem estão. Sei também que nunca os conseguirei pedir de volta. Falta-me a determinação da Iolanda.
Há uns anos atrás a minha filha emprestou, sem eu saber, um livro meu a um amigo dela. Quando dei pela falta d’ “O Perfume”, de Patrick Süskind, fiz uma cena danada e exigi que ela pedisse o livro ao amigo. Passaram-se meses, passaram-se anos e ela não aparecia com o livro. «Perdi-o para sempre», pensava eu.
Ela, como eu, lamentavelmente, não conseguia pedir o livro ao amigo e, para me calar, comprou-me um livro novo. 
Calei-me, mas sempre que olho para “O Perfume” não o reconheço como meu. Falta-lhe tudo lá dentro. E deprime-me pensar que ele está em outra casa que não a minha, a ser manuseado por outras mãos que não as minhas, a ser lido segundo o fio condutor das minhas anotações.
Dói muito, “emprestadar” livros!

Regressei a Portugal em 1975. Encontrei a Iolanda  cerca de 10 anos depois. Eu vivia num apartamento confortável e quase cheio de livros, ela numa tenda, no Jamor, cheia de "retornados" alojados pelo IARN. Estarrecida, logo lhe ofereci ajuda e  ela começou a passar comigo os sábados, para lavar roupa na máquina, tomar um duche quente e decente, comer comida caseira, "botar" conversa. Nunca falávamos de livros, nunca me pediu emprestado um que fosse.
Muitos meses passaram até ao sábado em que ela não apareceu. Estranhei! Ela tinha o número do meu telefone fixo (não havia móveis, na altura). Aguardei!
Vários anos depois cruzámo-nos nas escadas rolantes de um Centro Comercial. Consegui ouvi-la dizer, enquanto eu subia e ela descia, que vivia em Sintra, em casa própria. Emudeci estupefacta (de novo com a Iolanda) e nem mais uma palavra ouvi, e nem uma só emiti. Na escada rolante, logo ali decidi que não seria um livro mas uma palavra a separar-nos: INGRADITÃO!

Av. Pinheiro Chagas, a mais larga  avenida de Lourenço Marques, anos 70.

"Prémio Valente - 5 pisos, 13 apartamentos por piso", no cruzamento da Av. Pinheiro Chagas com a Av. General Machado (o mesmo cruzamento da foto anterior).  Foto tirada após a independência. 

(Fotos da net.)

06 novembro, 2018

À terça - imagens e palavras: "guerra"









“A guerra é o maior negócio do mundo, 
vale milhares de milhões, e é o mais opaco, 
o mais cruel, o que faz mais vítimas.”


Frase de Clara Ferreira Alves, jornalista e escritora portuguesa (1956-).
Foto da net.

02 novembro, 2018

"Esta velha angústia" - Fernando Pessoa

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano? Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer –
Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
(Um dos meus poemas preferidos.)

Sabia que (5):
1905 – Em Agosto (Fernando Pessoa) parte sozinho e definitivamente para Lisboa (…)
Continua a escrever poesia em inglês.
1906 – Matricula-se no Curso Superior de Letras.
1907 – Desiste do Curso Superior de Letras.
Lê os filósofos gregos e alemães; os decadentes franceses (…)
Em Agosto morre a Avó Dionísia deixando-lhe uma pequena fortuna. Com o dinheiro recebido, vai a Portalegre a fim de comprar material para montar um tipografia em Lisboa.
Instala, na Rua a Conceição da Glória, 38 e 40, a «Empresa Ibis – Tipografia e Editora», que mal chega a funcionar.
Recusa a oferta de bons lugares por os mesmos incluírem obrigações de horário que lhe seriam de obstáculo à realização da sua obra literária.”
("Fernando Pessoa, uma fotobiografia", de Maria José de Lancastre).

Não sabia? Eu também não!
O que importa é que agora sabemos.
Prometo partilhar mais informações sobre a vida do poeta do desassossego.
(Foto da net)