19 dezembro, 2011

Poema de... Mário de Sá-Carneiro

A NOITE DE NATAL
Em a noite de Natal
Alegram-se os pequenitos;
Pois sabem que o bom Jesus
Costuma dar-lhes bonitos.

Vão se deitar os lindinhos
Mas nem dormem de contentes
E somente às dez horas
Adormecem inocentes.

Perguntam logo à criada
Quando acorde de manhã
Se Jesus lhes não deu nada.

– Deu-lhes sim, muitos bonitos.
– Queremo-nos já levantar
Respondem os pequenitos.

Poema de Mário de Sá-Carneiro, Portugal (1890-1916)
Pintura de Jacob Jordaens, Bélgica (1593-1678)

16 dezembro, 2011

Poema de... Manuel Alegre

NATAL
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Poema de Manuel Alegre, Portugal (1936-)
Pintura (Holy night), de Carlo Maratta, Itália (1625-1713)

12 dezembro, 2011

"Natal... Natais" - Vasco Graça Moura

Esta antologia reúne oito séculos de poesia em língua portuguesa sobre o Natal. Inicia-se com Afonso X, o Sábio, e termina com Pedro Sena-Lino, poeta que começou a publicar em 2005.
Inclui 202 textos de 130 poetas.
Num único livro encontramos poemas de Fernando Pessoa, Luís de Camões, António Gedeão, Almeida Garrett, António Nobre, José Régio, Gil Vicente e muitos outros poetas conhecidos.

Mas também encontramos poemas belíssimos de autores menos conhecidos, e até de alguns anónimos.
Seleccionei um poema de Alberto de Serpa (Porto, 1906-1972).

NATAL
Os joelhos em terra,
as mãos erguidas, presas.
E Deus o céu descerra
aos murmúrios que rezas.

Brilham mais as estrelas.
Mais neve o céu derrama.
E, se por fora gelas,
Por dentro és uma chama.

E beija a tua face
o luar que aparece,
como se Deus mandasse
um sim à tua prece.

É, simplesmente, maravilhoso!

08 dezembro, 2011

Desafio nº1: Serão estas as melhores obras literárias de sempre?


Há uns anos atrás li numa revista portuguesa um artigo, que cortei e guardei, sobre as melhores obras literárias de sempre.
O editor americano J. Peder Zane pretendeu encontrar as dez melhores. Dada a subjectividade da matéria, pediu a 125 grandes escritores que lhe indicassem o seu “top-10”. Tudo somado o resultado foi o seguinte:

1. Anna Karenina, de Leão Tolstoi
2. Madame Bovary, de Gustave Flaubert
3. Guerra e Paz, de Leão Tolstoi
4. Lolita, de Vladimir Nabokov
5. As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain
6. Hamlet, Princípe da Dinamarca, de William Shakespeare
7. O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald
8. À Procura do Tempo Perdido, de Marcel Proust
9. Contos, de Anton Tchekov
10. A vida era assim em Middlemarch, de George Eliot

Desta lista apenas li “Madame Bovary” e “O Grande Gatsby”. E vi o fime "Lolita" (o que não é a mesma coisa). Pouco, muito pouco.
No 2º ano do rol de leituras vou tentar ler mais uma destas grandes obras (grandes também no número de páginas).
Alguém quer acompanhar-me neste desafio?
Se não as lermos, nunca saberemos se são realmente as melhores obras literárias de sempre.
Concordam?

05 dezembro, 2011

"Némesis" - Philip Roth


Acabei de ler o último livro de Philip Roth editado em Portugal.
Divulgarei a minha opinião em Janeiro do próximo ano (que está já ali à esquina...), pois decidi que este mês será um mês diferente no "rol de leituras".
Mas... não resisto a dizer que este "Némesis" me emocionou e assustou.
O tema é aterrador: uma epidemia de poliomielite que no verão de 1944 grassa nos Estados Unidos, o efeito que tem sobre uma comunidade de Newark, coesa e assente nos valores da família, e a luta de Bucky Cantor contra o avanço da doença que lhe vai mudar fatalmente a vida.
O medo castra-nos. O medo degrada-nos.
Philip Roth não deixa de me surpreender.

01 dezembro, 2011

1º Aniversário do "rol de leituras"


E já passaram 12 meses…
O prazer que senti ao iniciar o meu rol de leituras mantém-se inalterável.
Se há um ano gostava de ler, agora gosto de ler e de escrever sobre o que leio.
E gosto de buscar informação sobre livros em outros blogues, e gosto de deixar comentários, e gosto de responder a comentários. Ou seja, gosto do convívio entre seguidores.
Ao longo deste ano li e reli vários livros, que guardei para sempre no meu rol de leituras. A uns, dei nota máxima e depositei-os, também, na estante da minha memória. A outros, guardei-os, simplesmente.
Fiz, também, uma maratona de leitura de todas as obras do meu escritor preferido: Philip Roth. Doeu…
O que vou fazer no próximo ano?
Ler, ler, ler.
E aprender com todos os blogues sobre livros, que visito sempre que possível.
Aceito comentários, sugestões, críticas.... que ajudem a melhorar o segundo ano deste cantinho.
Obrigada a todos os que passaram pelo rol de leituras.

30 novembro, 2011

Sumário de leituras




Li ou reli em Novembro 2011

. Memorial do convento, de José Saramago
. A pomba, de Patrick Süskind
. O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe
. O retorno, de Dulce Maria Cardoso
. A viagem do elefante, de José Saramago

Dou nota máxima:
. Memorial do convento, de José Saramago

27 novembro, 2011

"A viagem do elefante" - José Saramago

… ó cornaca, que raios vais tu fazer com o elefante a Viena. Provavelmente o mesmo que em Lisboa, nada de importante, respondeu subhro, irão dar-lhe muitas palmas, irá sair muita gente à rua, e depois esquecem-se dele, assim é a lei da vida, triunfo e olvido.
Era uma vez um rei e uma rainha, que no aconchego dos aposentos reais matutavam sobre o que oferecer ao primo Maximiliano, arquiduque de Áustria, futuro imperador.
Depois de muito pensarem eis que a rainha encontra a solução: ofereceremos o Salomão, que há mais de dois anos veio da Índia e, “desde então não tem feito outra coisa que não seja comer e dormir, a dorna da água sempre cheia, forragens aos montões, é como se estivéssemos a sustentar uma besta à argola, e sem esperança de pago”.
Corria o ano de 1551, dão-se as cisões religiosas e o Concílio de Trento, e o rei católico D. João III pensou e decidiu: “Então que vá para Viena”.
É este singelo mas determinante facto histórico, que está na base da narrativa da longa mas extraordinária viagem do paquiderme e do seu tratador, o cornaca Subhro.
Obtida a confirmação de que o arquiduque aceitaria a oferta do rei português, começaram os preparativos para a viagem e...
a partir daí, a poderosa lucidez e imaginação de um Saramago debilitado pela doença, não tem limites.
A odisseia de Salomão tem início dez dias depois. Por caminhos inóspitos, montanhas agrestes e os Alpes frios, “move pesadamente as suas quatro toneladas de carne e osso e os seus três metros de altura”. E pensa.
Creio que na cabeça de salomão o não querer e o não saber se confundem numa grande interrogação sobre o mundo em que o puseram a viver, aliás, penso que nessa interrogação nos encontramos todos, nós e os elefantes.
Em todas as aldeias e cidades o paquiderme é recebido com entusiasmo e Subhro, orgulhosamente sentado nos ombros do animal, está feliz.
… e, num insólito instante de lucidez e relativização, pensou que, bem vistas as coisas, um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante.
Ainda em terras de Espanha, o cornaca é oficialmente informado de que Salomão, dali em diante passará a chamar-se Solimão e que o seu nome deixará de ser Subhro para ser Fritz.
Desgostou-o a mudança de nome mas, “como sói dizer-se, vão-se os anéis e fiquem os dedos”.
A chegada da comitiva a Génova é triunfal. Subhro ou Fritz, consoante se preferir, depois de trezentas léguas montado em Salomão, está feliz, “bem longe das estreitezas da vida em Portugal, onde, praticamente, o tinham deixado a vegetar durante dois anos no cercado de Belém, vendo partir as naus da índia e ouvindo as cantorias dos frades jerónimos”.
É então, que um padre lhe pede um milagre, “um dos grandes milagres da nossa época”: que Salomão ajoelhe à porta da basílica.
Conseguirá Fritz convencer Solimão a colaborar nessa operação milagrosa?
Finalmente a chegada à Áustria. Assinalava-se o dia de reis do ano de mil quinhentos e cinquenta e dois e a festa foi de arromba.
Salomão, ou Solimão morre dois anos depois, de causas desconhecidas “ainda não era tempo de análises de sangue, radiografias do tórax, endoscopias, ressonâncias magnéticas e outras observações”.
Depois de esfolado cortaram-lhe as patas dianteiras para que “servissem de recipientes, à entrada do palácio, para depositar as bengalas, os bastões, os guarda-chuvas e as sombrinhas de verão”.
Entre falar e calar, um elefante sempre preferirá o silêncio...
Que bem me soube reler este romance, ou conto, tanto faz (uma combinação de personagens reais e inventadas, um olhar irónico e implacável sobre a natureza humana), escrito dez anos após a atribuição do Prémio Nobel.
Viva Saramago!

A viagem do elefante, de José Saramago
Caminho, 2008
258  págs.

23 novembro, 2011

"O retorno" - Dulce Maria Cardoso

Descemos as escadas do avião e a minha irmã disse, estamos na metrópole. Não sabíamos o que havíamos de fazer. Foi esquisito pisar na metrópole, era como se estivéssemos a entrar no mapa que estava pendurado na sala de aula.
Corria o ano de 1975, Portugal vivia em pleno processo revolucionário e assistia ao ruir do império.
Em poucos meses, mais de meio milhão de portugueses foram forçados a abandonar as colónias e a regressar à metrópole. Eram os “retornados”.
Este fantástico romance de Dulce Maria Cardoso é o relato emocionado do retorno à metrópole de uma família que vive em Luanda, onde o pai tem um negócio de transportes. O pai que “foi para África para fintar a pobreza”. O pai que “sempre tratou bem dos pretos”. O pai que não vem com eles para a metrópole. Porquê?
Conhecemos a família quando a mãe doente, que não gosta de sol nem de sal só de rosas, escreve com canela no arroz doce as iniciais dos seus nomes: R de Rui, L de Lurdes (a irmã mais velha), M de Mário e G de Glória.
Depois, é o Rui, adolescente de 15 anos que, sob a forma de monólogo, relata de forma minuciosa os últimos dias da família em Luanda, a “fuga” para a metrópole, e os longos e desesperantes meses passados num hotel virado para o mar.
O mar da metrópole é tão azul como o mar era lá, um mar quase igual, talvez um bocado mais pequeno.
O realismo da vida no hotel, onde se amontoam centenas de pessoas, que sabem que tem de se manter unidas porque “os de cá ainda gostam menos de nós do que os pretos” é comovente. Viver no hotel de cinco estrelas era horrível para um rapazinho, mas mais horrível era o medo de ser posto fora do hotel.
… no hotel não há ninguém que não tenha medo. Todos tentam disfarçar, disfarçam tanto que a sala de convívio ou a da televisão chegam a parecer uma festa. Mas é uma festa de gente triste. Agora então que o verão acabou acho que a tristeza da metrópole entra em nós como se fosse o ar que respiramos. E o frio.
Poupam, mas os vinte contos que trouxeram estão a acabar. Encontram ajuda em bichas que vão dar ao IARN e na penhora das jóias da mãe.
No IARN (Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais) estavam retornados de todos os cantos do império, o império estava ali, naquela sala, um império cansado, a precisar de casa e de comida, um império derrotado e humilhado, um império de que ninguém queria saber.
Os meses passam e Rui volta à escola, faz amizades, descobre a sexualidade, anda com más companhias, aprende a tomar conta da mãe e da irmã, espera pela chegada do pai, reinventa a esperança.
No hotel há também muita gente de Moçambique.
Às vezes os de Angola e os de Moçambique desentendem-se acerca de qual era a melhor colónia. Não consigo perceber porque é que discutem tanto qual era a melhor colónia se já perdemos as duas.

A leitura deste livro levou-me à arca de memórias onde guardo a história do meu retorno à metrópole, em Março de 1975. Eu vim de Moçambique. Felizmente tinha à minha espera uns sogros maravilhosos, uma casa quentinha e muito amor. Felizmente, não vivi a dor que a autora deste livro viveu.
Obrigada, Dulce Maria Cardoso, pelo seu extraordinário testemunho. Finalmente alguém teve a coragem de mostrar aos portugueses da metrópole, que nem tudo foi fácil para os retornados.
Hoje sabemos que foi a coragem, a força e a determinação dessa gente que ajudou a mudar mentalidades, numa metrópole tacanha, cinzenta e triste.
Em mim, em si, África estará sempre presente mas cada vez mais longe.

O retorno, de Dulce Maria Cardoso
Tinta-da-China, 2011
267 págs.

22 novembro, 2011

Poema de... David Mourão-Ferreira

TERNURA
Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada…

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo…

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

Poema de David Mourão-Ferreira, Portugal (1927-1996)
Pintura (A sesta 1939) de Almada Negreiros,  Portugal (1893-1970)

18 novembro, 2011

"O filho de mil homens" - Valter Hugo Mãe

Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz.
Com a leitura deste romance descobri Valter Hugo Mãe, portanto, não conheço a sua fase das minúsculas.
Sem saber, comecei pelo “novo ciclo na sua criação literária” e pelo primeiro de três livros que o autor irá dedicar à família e aos afectos, temas que me agradam sobremaneira.
Para ser feliz é preciso aceitar ser o que se pode, nunca deixando de acreditar que é possível estar e ser sempre melhor.
São várias as personagens - fortes e credíveis – deste quinto romance (ou história de encantar?) do autor, que buscam a felicidade.
 No centro da trama está Crisóstomo, pescador, sozinho, que “chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho”. Um dia saiu à rua e disse a toda a gente que era um pai à procura de um filho.
Esse filho apareceu. Era um rapaz de catorze anos, “carregado de ausências e silêncios”, e chamava-se Camilo.
Camilo é filho de uma anã (gostei particularmente do capítulo dedicado a esta personagem) que morreu assim que o menino nasceu. O nome do pai é um mistério.
Isaura, uma camponesa “enganada” por um vizinho, que faz um casamento de faz-de-conta com um homem maricas, chamado Antonino.
Crisóstomo, “que ganhava amor pelas pessoas por grandeza”, apaixona-se por Isaura, “uma mulher enjeitada e diminuída”, e tem a certeza de que os dois vão ser felizes para sempre.
Antonino disse à mulher “que amasse pelos dois o pescador, que dele cuidasse como quem cuidava do importante destino do mundo”.
Depois há Matilde, a mãe que rejeita o homem maricas, Maria, a alterada mãe de Isaura, e Rosinha, a caseira de Matilde, que casa com um velho que tem uma galinha gigante.
Apesar do final feliz e da sensibilidade da escrita, este romance não me entusiasmou.
De qualquer modo, vou voltar a este autor.

O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe
Alfaguara, 2011
258 págs.

15 novembro, 2011

Pétalas de sabedoria...


Um arqueólogo é o melhor marido que uma mulher pode ter – quanto mais ela envelhece, mais interessado ele fica.


Agatha Christie
Escritora britânica (1890-1976)

12 novembro, 2011

"O retorno" - Dulce Maria Cardoso

Comprei ontem este novo livro de Dulce Maria Cardoso.
Pelo que já li e ouvi sobre o livro, trata-se do relato do retorno a Portugal, em 1975, de portugueses que viviam em Angola, de entre os quais a própria autora, ainda criança.
Estou curiossissima, porque também eu abandonei Moçambique, em Março de 1975, com destino a Lisboa.
Vim com o meu marido e um filho de 4 meses, ainda no aconchego da minha barriga.
No aeroporto de Lisboa esperavam-me quatro rostos que conhecia de fotografias: os meus sogros e os meus cunhados.
Nesta cidade cinzenta e fria não tinha um amigo, um conhecido.
Os meses passavam e as lágrimas não paravam de cair, até que em Agosto nasce o meu filhote.
Sozinha com ele, aprendi a ser mãe, reaprendi a ter esperança e deixei de chorar.
Dois anos depois os meus pais e a minha irmã também regressaram. Finalmente a família estava reunida. Havia que guardar memórias num cantinho especial do coração e seguir em frente.
Foi o que fiz!

11 novembro, 2011

"A pomba" - Patrick Süskind

Meu Deus, meus Deus, porque me abandonaste? Porque me castigas assim? Pai nosso, que estás no céu, salva-me desta pomba. Ámen!
Quando se fala de Patrick Süskind pensamos logo no primeiro livro do autor “O perfume”, publicado em 1985.
Há alguém que ainda não tenha lido este romance de culto? Não acredito!
Dois anos depois o autor publicou uma pequena, pequenina maravilha: “A pomba”, uma novela com 89 páginas.
Só a li em 1996. Li e não mais esqueci.
Quando lhe aconteceu isto da pomba, que de um dia para o outro mudou radicalmente a sua existência, já Jonathan Noel estava com mais de cinquenta anos, havia uns bons vinte anos que levava uma vida igual e sem incidentes…pois não gostava de acontecimentos e detestava em particular aqueles que lhe abalavam o equilíbrio interior e perturbavam a ordem externa da vida.
Jonathan trabalha como guarda num banco, em Paris, e vive num quarto minúsculo sem grandes comodidades.
Aquele quartinho é o refúgio seguro onde se abriga das desagradáveis surpresas da vida, a sua ilha segura no mundo inseguro.
Jonathan partilha a sua monótona existência entre o seu quarto e o banco onde trabalha: às oito e quinze em ponto está à porta do banco;  às dezassete e trinta sai, compra o jantar e corre para o seu refúgio. É feliz.
A vida decorre sem incidentes, até que, numa sexta-feira, ao abrir a porta do quarto vê, a menos de vinte centímetros da soleira, uma pomba ferida.
Jonathan apanha um susto de morte, que  durante alguns segundos o deixa petrificado, incapaz de avançar ou retroceder.
O que fazer?
O caos instala-se, quando um simples pássaro ferido põe à mostra a miséria da sua existência.
Maravilhoso!

A Pomba, de Patrick Süskind
Presença, 1987
Tradução de Teresa Balté
89 págs.

08 novembro, 2011

Poema de... Sophia de Mello Breyner Andresen

NOVEMBRO
A respiração de Novembro verde e fria
Incha os cedros azuis e as trepadeiras
E o vento inquieta com longínquos desastres
A folhagem cerrada das roseiras

Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal (1919-2004)
Pintura (The olive trees 1889) de Vincent van Gogh , Países Baixos (1853-1890)

04 novembro, 2011

"Memorial do convento" - José Saramago


Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.
Já tudo foi dito e escrito sobre este extraordinário romance de José Saramago, galardoado com o Nobel da Literatura, em 1998.
Então, porque referi-me agora a este livro?
Porque sinto que falhei ao não falar de Saramago ao longo de quase um ano de existência do rol de leituras e está na altura de remediar o meu erro.
Comprei e li este livro, corria o ano de 1989. Era um livro adorado por muitos, mas também odiado por alguns. Para isso contribui a escrita de Saramago, que, a meu ver, primeiro se estranha mas depois se entranha.
Ao longo das cinquenta primeiras páginas estive para desistir por diversas vezes.
Teimosa, continuei, e ainda bem que o fiz pois a partir daí a leitura deste livro foi um deslumbramento, um sonho que vivi levada pela mão de um escritor MAIOR.
Se você ainda não leu Saramago, considero que este é o romance por onde deve começar. No final rejubilará de prazer e correrá em busca de todos os outros livros do autor.
Deixe-se levar pelo sonho, à descoberta do nome maior da nossa literatura.
Vai aperceber-se que os seus livros se lêem compulsivamente e não se esquecem.
É a minha opinião, claro!
Deste romance, recordo-me amiudadas vezes do amor de Baltazar Sete-Sóis (o maneta) por Blimunda Sete-Luas (a vidente que guardava vontades em frascos de vidro) e do sonho do padre Bartolomeu Lourenço, que queria voar.
Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita.
Corram a ler, deixem-se levar pelo sonho e deslumbrem-se.
Viva Saramago!

Memorial do convento, de José Saramago
Caminho, 1989
357 págs.

01 novembro, 2011

Pétalas de sabedoria...


Adopte o ritmo da natureza.
O segredo dela é a paciência.



Ralph Waldo Emerson
Escritor norte-americano (1803-1882)

31 outubro, 2011

Sumário de leituras...





Li ou reli em Outubro 2011
. C, de Tom McCarthy
. A estrada, de Cormac McCarthy
. Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa



Dou nota máxima
. A estrada, de Cormac McCarthy

28 outubro, 2011

"Emprestadar" livros...

Tinha eu 12 anos, a Nina tornou-se a minha melhor amiga. Éramos da mesma idade. Andávamos na mesma escola. Vivíamos no mesmo prédio. Éramos inseparáveis.
A Iolanda, irmã da Nina, tinha mais dez anos que nós. Naquela altura dez anos de diferença, fazia mesmo uma grande diferença. A Iolanda já trabalhava, nós estudávamos. A Iolanda já namorava, nós devorávamos cinema, coleccionávamos cadernetas de cromos, líamos fotonovelas e ouvíamos vezes sem conta as canções meladas da época.
Teria eu dezoito anos, a Iolanda, agora mãe solteira de um lindo menino loiro, adoptado por todos os vizinhos, deixou a casa dos pais e foi viver sozinha para um apartamento pequeno, lindo e perto de nós.
Adorava ir a casa dela. Era arrumada, confortável, bem decorada e… tinha muitos livros.
Naquela altura eu já tinha largado as fotonovelas (ou fui obrigada?!) e lia fogosamente tudo o que me aparecia à frente. Recordo que encomendava livros a livrarias da Metrópole e que os recebia muitos dias depois pelo correio. Era uma alegria abrir aqueles embrulhos - previamente vistoriados pela polícia política - tirar os livros com o maior cuidado, cheirá-los, desfolhá-los, assiná-los e devorá-los, literalmente, mas com alguma calma porque a próxima remessa tardaria a chegar.
Ora bem, voltando à Iolanda, recordo o dia em que sentada num sofá da sua sala, olhando, remirando e mexendo nos seus livros, lhe pedi para me emprestar "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós, e ela respondeu sem qualquer hesitação.
- Não! Podes ler aqui esse livro e todos os outros, levares é que não.
Emudeci estupefacta. Poisei o livro e saí.
Durante muito tempo não fui a casa dela. Acabei por esquecer, e continuámos amigas. Não deixei que um livro nos separasse, mas não voltei a pedir-lhe nenhum. Nem li nada lá em casa.
A partir de dada altura os livros tornaram-se os meus amigos silenciosos e disponíveis e foi quando entendi a atitude da Iolanda.
Passei a assiná-los, a anotar o mês e o ano da leitura, a sublinhar frases, a fazer anotações nas margens, enfim, deixaram de ser do autor e passaram a ser meus.
Ainda não consigo dizer NÃO quando me pedem para emprestar um livro, e isso deixa-me furiosa.
Certamente que na estante da Iolanda não faltam livros. Na minha faltam vários, que emprestei e nunca mais recebi de volta.
Sei o nome de todos eles, e são bastantes. Sei com quem estão. Sei também que nunca os conseguirei pedir de volta. Falta-me a determinação da Iolanda.
Há uns anos atrás a minha filha emprestou, sem eu saber, um livro meu a um amigo dela. Quando dei pela falta d’ “O Perfume”, de Patrick Süskind, fiz uma cena danada e exigi que ela pedisse a devolução urgente do livro. Passaram-se meses, passaram-se anos e ela não aparecia com o livro. Perdi-o para sempre, pensava eu.
Ela, tal como eu, lamentavelmente, não conseguia pedir o livro ao amigo e, para me calar, comprou-me um livro novo.
Calei-me, mas voltei a lembrar-lhe que não emprestasse livros dela e muito menos meus.
Hoje, olho para “O Perfume” e não o reconheço como meu. Falta-lhe tudo lá dentro.
Recordo o meu livro e assusta-me pensar que ele está dentro de outra casa que não a minha, a ser manuseado por outras mãos que não as minhas, a ser lido segundo o fio condutor das minhas anotações.
Dói muito, “emprestadar” livros!

25 outubro, 2011

Poema de... Antero de Quental

À  GUITARRA
Três cordas tem a guitarra,
Uma d’ouro, outra de prata…
Á terceira, que é de ferro,
Todos lhe chamam ingrata.

Ninguém faça ramalhetes
Com flores que hão-de murchar…
Ninguém tenha cordas d’ouro,
Se as não quer ver estalar!

Aprendam todos comigo
O que pode acontecer
A quem canta os seus amores
Num cabelo de mulher…

Das três cordas da guitarra
Só a terceira dá ais…
Bastou-me um amor na vida,
Um só amor e nada mais!

Quadras de Antero de Quental, Portugal (1842-1891)
Pintura (Velho guitarrista cego 1903) de Pablo Picasso, Espanha (1881-1973)

21 outubro, 2011

"Travessuras da menina má" - Mario Vargas Llosa

Este foi o primeiro romance que li de Mario Vargas Llosa, escritor peruano premiado em 2010 com o Nobel da Literatura.
Não me fascinou, por aí além.
Talvez não tenha feito a escolha certa para ir à descoberta de Llosa, autor de uma variada obra.
Não sei.
Aconteceram coisas extraordinárias naquele verão de 1950.
Mas o facto mais notável foi a chegada a Miraflores (Peru), de duas irmãs, vinda de Santiago (Chile). A mais velha chamava-se Lily, teria catorze ou quinze anos, dançava com um ritmo agradável e muita graça, sorrindo e cantarolando a letra da canção. Apaixonei-me como um bezerro, a forma mais romântica de uma pessoa se apaixonar.
Eu pedia a Deus um desejo, que fossemos namorados, nos amássemos, passássemos a noivos e nos casássemos e acabássemos em Paris ricos e felizes.
Mas não foi bem assim que aconteceu.
No final do verão, Ricardo descobre que Lily e a irmã mentiram, intrujaram, inventaram e desapareceram.
Ricardo Somocurcio, narrador e personagem principal deste romance, desde que tinha o uso da razão que sonhava viver em Paris.
Os tios, que substituíram os seus pais mortos por atropelamento tinha ele dez anos, incentivam-no a partir.
Em Paris vivia-se a febre da revolução Cubana, com jovens a chegarem dos cinco continentes.
Ricardo integra o grupo que prepara a revolução peruana e conhece a camarada Arlette (ou Lily a falsa chileninha?). Nele renasce a paixão do verão de 1950, nela  a indiferença.
Três anos depois, já a trabalhar como tradutor-intérprete, Ricardo encontra a camarada Arlete (ou Lily?), agora como Madame Robert Arnoux, casada com um diplomata francês.
Ele – o Ricardito, o menino bom (é assim que ela o chama) - continua apaixonado.
Ela – a menina má (é assim que ele a chama) - vê nele um borra-botas, nada mais.
Vivem fogosos encontros apaixonados, até que ela… desaparece.
Volta a encontrá-la quatro anos mais tarde, agora como Mrs. Richardson.
Ele ama-a cada vez mais. Ela conta mais mentiras que verdades e… volta a desaparecer.
O próximo encontro é no Japão, era ela uma advogada “japonesinha”, secretária de um perverso e mafioso homem de negócios.
Ele continua apaixonado, ela entrega-se mas a seguir... afasta-o.
São 40 longos anos de encontros e desencontros, com momentos de amor, de amizade, de desejo, de paixão, de egoísmo, de humor, de mentira, de dor, de tragédia, de obsessão e perversão.
… estava havia muitos anos apaixonado por uma mulher que aparecia e desaparecia na minha vida como um fogo-fátuo, inflamando-a de felicidade por curtos períodos, e, depois, deixando-a seca, estéril…
Qual será o verdadeiro rosto do amor?

Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa
D. Quixote, 2006
Tradução de J. Teixeira de Aguilar
375 págs.

18 outubro, 2011

Pétalas de sabedoria...


Os meus livros são como água; os dos grandes génios são vinho.
Felizmente toda a gente bebe água.


Mark Twain
Escritor norte-americano (1835-1910)

14 outubro, 2011

"A estrada" - Cormac McCarthy

Está tudo bem contigo?, perguntou. O rapaz fez que sim com a cabeça. E então puseram-se os dois a caminhar no asfalto sob a luz metálica, cinzento-azulada, a arrastar os pés na cinza, e cada qual era o mundo inteiro do outro.
Um pai e um filho – personagens sem nome - caminham sozinhos pelas estradas de uma América devastada. Dirigem-se para sul e o seu destino é a costa, embora não saibam o que os espera, ou se algo os espera. A paisagem devastada pelas chamas é estéril, silenciosa e maléfica. Nada possuem, apenas uma pistola para se defenderem dos bandidos que assaltam a estrada, as roupas que trazem vestidas, comida que vão encontrando – e um ao outro.
O que é que disseste, papá?
Nada. Está tudo bem. Dorme.
Vai correr tudo bem, não vai papá?
Vai, sim.
E não nos vai acontecer mal nenhum, pois não?
Claro que não.
Porque nós transportamos o fogo.
Sim. Porque nós transportamos o fogo.
A Estrada é o relato dramático e comovente da luta do bem contra o mal, do melhor e do pior da natureza humana: a destruição última, a persistência desesperada e o afecto que mantém duas pessoas vivas enfrentando a devastação total.
Não vejo nada.
Eu sei. Vamos ter de dar um passo de cada vez.
Está bem.
Não me largues a mão.
Está bem.
Aconteça o que acontecer.
Aconteça o que acontecer.
Os diálogos entre pai e filho são simplesmente FABULOSOS!

Ler ou reler (a primeira leitura deste livro foi em 2007) Cormac McCarthy é sempre um ENORME prazer.
Descobri este autor quando li “Meridiano de sangue”. Livro duríssimo. Foram várias as vezes em que fechei o livro e me interroguei se deveria ou não continuar a ler tanta, mas mesmo tanta, violência. Seria um livro só para homens? Teimosa e curiosa não desisti e foi assim que descobri o meu segundo autor estrangeiro preferido.
Depois li “Este país não é para velhos” e tornei-me fã incondicional do autor.
Seguiu-se "Suttree" e a admiração pelo autor cresceu desmesuradamente.
Preparo-me para devorar “Nas trevas exteriores” o último livro editado por cá e "O guarda do pomar" que há já vários meses me olham da estante ansiosos por eu os desfolhar.
Sei que não me vão desiludir. Vão sim, assustar e maravilhar – como sempre!

A estrada, de Cormac  McCarthy
Relógio d'Água, 2007
Tradução de Paulo Faria
187 págs.

11 outubro, 2011

Poema de... Florbela Espanca

LÁGRIMAS OCULTAS
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Poema de Florbela Espanca, Portugal (1894-1930)
Pintura (Femme aux bras croisés 1902) de Pablo Picasso, Espanha (1881-1973)

07 outubro, 2011

Tomas Tranströmer - Prémio Nobel da Literatura 2011

Tomas Tranströmer, psicólogo e poeta, nasceu em Estocolmo, em 1931.
É o poeta sueco mais traduzido em todo o mundo.
No nosso país o novo prémio Nobel está apenas representado na colectânea “21 poetas suecos”, editada pela Vega, em 1981.
Pouco, muito pouco. Aguardemos.

A árvore e a nuvem
Uma árvore anda de aqui para ali sob a chuva,
com pressa, ante nós, derramando-se na cinza.
Leva um recado. Da chuva arranca vida
como um melro ante um jardim de fruta.

Quando a chuva cessa, detém-se a árvore.
Vislumbramo-la direita, quieta em noites claras,
à espera, como nós, do instante
em que flocos de neve floresçam no espaço.

01 outubro, 2011

Poema de... Eugénio de Andrade


MELANCOLIA DE UM FIM DE SETEMBRO
Ó manhã, manhã,
manhã de Setembro,
invade-me os olhos,
inunda-me a boca,
entra pelos poros
do corpo, da alma,
até ser em ti,
sem peso e memória,
um acorde só
do vento e da água,
uma vibração
sem sombra nem mágoa.

Poema de Eugénio de Andrade, Portugal (1923-2005)
Pintura (Melancolia 1895) de Edvard Munch, Noruega (1863-1944)

30 setembro, 2011

Sumário de leituras




Li ou reli em Setembro 2011
. O último homem na torre, de Aravind Adiga
. Transgressão, de Rose Tremain
. A noite do oráculo, de Paul Auster
. Na praia de Chesil, de Ian McEwan

Dou nota máxima
. O último homem na torre, de Aravind Adiga
. Na praia de Chesil, de Ian McEwan

27 setembro, 2011

Pétalas de sabedoria...

Sê dono apenas do que podes transportar contigo; conhece línguas, conhece países, conhece pessoas.
Deixa que a tua memória seja o teu saco de viagem.


Alexander Soljenitsyn
Escritor russo (1918-2008)

25 setembro, 2011

Vale a pena ler... Satish Kumar



"Tal como a minha mãe me ensinou a andar na Natureza, gostaria que o mesmo acontecesse na nossa sociedade. Devemos educar as nossas crianças no amor pela Natureza, aprendendo na Natureza e não sobre a Natureza, com livros e computadores. Gostaria de ver os pais a levar os filhos para a Natureza e a deixá-los subir às árvores, escalar montanhas e nadar nos rios. Para as crianças não é tarde de mais, estão prontas para isso. Talvez para os adultos seja tarde, até porque têm medo da Natureza."

Excerto da entrevista a Satish Kumar, indiano, 75 anos, publicada no jornal Público de 5 Setembro 2011
Vale a pena ler na íntegra.

Foto tirada por mim, da esplanada do restaurante Dona  Bia, na Torre (a meio caminho entre a Comporta e o Carvalhal), em 11 Setembro 2011.

24 setembro, 2011

Poema de... José Carlos Ary dos Santos


SONATA DE OUTONO
Inverno não ainda mas Outono
a sonata que bate no meu peito
poeta distraído cão sem dono
até na própria cama em que me deito.

Acordar é a forma de ter sono
o presente o pretérito imperfeito
mesmo eu de mim próprio me abandono
se o rigor que me devo não respeito.

Morro de pé, mas morro devagar.
A vida é afinal o meu lugar
e só acaba quando eu quiser.

Não me deixo ficar. Não pode ser.
Peço meças ao Sol, ao céu, ao mar
pois viver é também acontecer.

Poema de  José Carlos Ary dos Santos, Portugal (1937-1984)
Pintura (Outono 1918), de José Malhoa, Portugal (1855-1933)

23 setembro, 2011

"Na praia de Chesil" - Ian McEwan

Este romance de Ian McEwan tem 128 páginas.
Pequenino, não é?
Enganam-se. É um ENORME romance, profundo, inteligente, sobre sentimentos, silêncios, medos, dúvidas, libertação, uma história de vidas transformadas por um gesto não feito ou uma palavra não dita.
A história começa com o jantar de Edward e Florence na suite destinada a casais recém-casados, num hotel na praia de Chesil, na costa de Dorset.
Eles eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível.
Não tinham dúvidas de que queriam passar juntos o resto da vida.
O seu casamento tinha corrido bem; o serviço religioso foi correcto, a recepção divertida, a despedida dos amigos da escola e da faculdade ruidosa e animada.
E o namoro?
O seu namoro fora uma pavana convencional... nada era discutido e eles não sentiam a falta de uma conversa íntima.
Tudo perfeito?
Não!

Que pequeno grande livro.
Li-o pela primeira vez em 2007, e recordo que a história me encantou e incomodou.
Voltei a ele e o prazer da leitura foi ainda maior.
Lê-se de um fôlego, mas o final – arrasador - mantém-se por muito tempo na nossa memória.

Na praia de Chesil, de Ian McEwan
Gradiva, 2007
Tradução de Ana Falcão Bastos
128 págs.

20 setembro, 2011

Gosto de ler na praia. Oh, se gosto!

DAI-ME O SOL
Dai-me o sol das águas azuis e das esferas
Quando o mundo está cheio de novas esculturas
E as ondas inclinando o colo marram
Como unicórnios brancos.
ESPERA
Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.
ESPERO
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen

16 setembro, 2011

"A noite do oráculo" - Paul Auster

Um marido sai para pôr uma carta no marco do correio e não volta a casa. O que é que a sua mulher vai pensar?
Sidney Orr, escritor, casado com Grace, 34 anos, a recuperar de uma doença quase fatal, é o protagonista e narrador desta viagem pelo labirinto da imaginação.
No dia 18 de Setembro de 1982, um sábado cinzento, durante o seu passeio matinal pelas ruas de Brooklyn, chega à papelaria “Paper Palace”. Nunca a tinha visto antes.
Decidido a voltar ao trabalho, entra para se abastecer de material e eis que descobre quatro daqueles cadernos portugueses que tanto o fascinam: capas duras, linhas quadriculadas, sólidos, imunes a todo o tipo de borrões. Compra o único caderno de cor azul.
Regressa a casa e abre o caderno na primeira página mas não sabe o que escrever. Não se preocupa porque o objectivo não é escrever nada de especial mas sim provar que ainda é capaz de escrever.
Recorda a conversa que teve com um amigo acerca de um homem que abandona a vida que leva e desaparece, e eis que a história para o seu romance surge e as palavras começam a ser alinhadas no caderno azul: Nick Bowen, um jovem assistente editorial numa grande editora de Nova Iorque, vive momentos de insatisfação no trabalho e no casamento.
Um dia chega à editora um pacote com o manuscrito de um romance com o sugestivo título de "A Noite do Oráculo", supostamente escrito por Sylvia Maxwell, uma popular autora falecida há cerca de duas décadas. A seguir conhece Rosa Leightman, a neta da autora. É uma mulher interessante, que o deixa perturbado.
Certa noite em que Nick sai para colocar umas cartas no marco do correio, a cabeça de uma gárgula de pedra cai de um décimo primeiro andar e despenha-se a escassos centímetros da sua cabeça. Aturdido, desorientado, cheio de medo, decide abandonar o seu passado e… desaparecer.
Mas há outra história para escrever - “A Noite do Oráculo”. Sidney Orr, tinha de urdir toda a intriga, mas sabia que seria um breve romance filosófico em torno da predição do futuro, uma fábula sobre o tempo.
Li este romance pela primeira vez em 2004. Na altura estranhei a ligação das três histórias. Desconcentrava-me. Como seguir a leitura? Complicado. Não me entusiasmou.
Agora, entendi melhor a sequência das histórias, mas… voltei a estranhar e a não me entusiasmar.
As boas pessoas fazem coisas más.

A noite do oráculo, de Paul Auster
Edições ASA, 2004
Tradução de José Vieira de Lima
201 págs.

13 setembro, 2011

"Transgressão" - Rose Tremain

Bebia por causa do peso das coisas. O álcool tornava-o cada vez mais doente, e ele sabia-o, mas não conseguia arranjar qualquer substituto, qualquer forma de se libertar do peso da laje de memórias que tentava esmagá-lo… esmagá-lo com a culpa e com o amor que nunca conseguiu expressar.
A acção deste cativante romance, ou thriller psicológico, desenrola-se em duas aldeias nas montanhas do sul de França.
Em La Callune, na região de Cévennes, uma floresta de carvalhos e castanheiros esconde “Mas Lunel”, uma antiga casa de pedra que guarda histórias terríveis.
O proprietário e ocupante é Aramon Lunel, um alcoólico atormentado por um passado cruel.
Na mesma quinta vive a sua irmã Audun, uma mulher de sessenta e quatro anos. Ela vive longe da sujidade da casa e do fedor do irmão, num bangaló construído nos fundos da propriedade.
Os irmãos vivem em permanente conflito, conflito que se agudiza quando Aramon decide vender a propriedade e esta é visitada por um inglês.
Esse inglês é Anthony Verey, negociante de antiguidades em Londres, a passar por uma grave crise de identidade, que busca o consolo da irmã Veronica.
Veronica, arquitecta-paisagista, vive com a namorada Kitty, uma aguarelista medíocre, na velha casa de pedra da quinta “Les Glaniques”, na região de Gard. Vivem felizes. Vivem felizes até à chegada de Anthony. A partir daí o mal-estar instala-se e a ruptura acontece.
Com vista a reconstruir a sua vida, Anthony Verey decide comprar uma casa na região e começa a visitar propriedades.
A primeira visita é a “Mas Lunel”. A velha casa de pedra é o local perfeito para viver os últimos anos de vida.
Decide comprá-la, mas põe como condição a demolição do bangaló.
Aramon Lunel fica entusiasmado, mas a sua irmã fica horrorizada e fará TUDO para continuar naquele lugar de tantas más recordações.
… quando passamos trinta e quatro anos sozinhos, descobrimos que é difícil suportar a presença de um desconhecido dentro ou, sequer, perto da nossa casa. Não conseguimos deixar de pensar em todo o mal de que ele é capaz.
Este é um livro difícil de “digerir”.
As pedras daquelas velhas casas escondem histórias cruéis de violência, de incesto, de amor e desamor, de horror à mudança, de solidão, de silêncios, de vingança.
A forma sublime como a autora constrói as histórias dos vários personagens prende-nos da primeira à última linha.
Há muito que queria dizer-te isto – lamento o que se passou! Foste a minha princesa… só isso.
Gostei!

Transgressão, de Rose Tremain
Porto Editora, 2011
Tradução de Luís Miguel Coutinho
310 págs.

07 setembro, 2011

"O último homem na torre" - Aravind Adiga

Um homem não se reduz à opinião que os vizinhos fazem dele.
Do autor de “O tigre branco”, Booker Prize 2008, chegou às bancas este verão “ O último homem na torre”.
A acção deste novo romance passa-se em Bombaim (actual Mumbai), a mais activa, cosmopolita e povoada cidade da Índia com cerca de 15 milhões de habitantes, amontoados em 430 Km2.
Os preços das casas são elevadíssimos. Os ricos vivem em subúrbios luxuosos. A classe média mantém-se nas habitações de renda baixa, apesar do estado de degradação dos prédios e da pressão das empresas de construção civil. Os mais pobres vivem literalmente na rua, despojados de tudo, ou em enormes bairros de barracas tapadas por plástico, sempre de cor azul.
Isto foi o que eu vi, quando lá estive em 2010. Vi uma cidade, aliás um país, de enormes e chocantes contrastes: uma pobreza abjecta e uma riqueza chocante.
Depois disto, é fácil perceber o quanto me tocou esta nova obra de Aravind Adiga.
Vamos então ao romance, um retrato duro do quotidiano dos residentes duma cooperativa de habitação, que é o reflexo da vida na própria cidade de Bombaim, a personagem principal deste romance.
Tudo se passa nas torres da Cooperativa de Habitação Vishram, localizada entre o degradado bairro Vakola, e um aeroporto doméstico. São duas torres A e B mas a Torre A é aquilo que a vizinhança considera ser a “Cooperativa Vishram” - calorosa, humana, familiar, a camada de queratina protectora que tinham vindo a segregar a fim de se salvaguardarem das provações da vida.
A vida decorre pacata nas duas torres até o empresário e construtor civil Dharmen Shah oferecer aos moradores uma generosa indemnização pelo abandono dos apartamentos para ali construir um complexo habitacional de luxo.
O empreiteiro é o único homem em Bombaim que nunca se dá por vencido.
Na Torre B, habitada por jovens executivos, a proposta é aceite pacificamente.
Na Torre A, um edifício de 5 pisos, 15 apartamentos, muito degradado, parecido com os seus residentes - classe média até à medula - a proposta é inicialmente recusada por todos, depois aceite por alguns, depois por muitos, depois instala-se o caos e a “guerra” começa.
Até à altura da proposta, o relacionamento entre os vizinhos era cordato, cúmplice, solidário – um por todos, todos por um.
A partir daí, a perspectiva de um futuro radioso, conseguido à custa do dinheiro sujo do empreiteiro mafioso, transforma  os vizinhos  em inimigos perigosos, em assassinos.
Para o negócio se concretizar é necessária a concordância de todos, mas há um morador que não aceita: Yogesh Murthy, mais conhecido por Masterji, professor, conservador, um dos primeiros residentes da torre e o último a sair.
Como? Não posso contar.
Leiam que vale a pena. É um livro duro mas fabuloso.
Nada pode deter uma criatura viva que teima em ser livre.

O último homem na torre, de Aravind Adiga
Editorial Presença, 2011
Tradução de Alice Rocha
467 págs.

06 setembro, 2011

Pétalas de sabedoria...



Ninguém merece as tuas lágrimas e quem quer que as mereça não te vai fazer chorar.


Gabriel Garcia Marquez
Escritor colombiano (1928 - )

03 setembro, 2011

A cultura é cara? Experimentem a ignorância.

"Porque continua a ser tão difícil fazer passar esta ideia simples de que o investimento na cultura fica muito mais barato do que o não-investimento? Talvez porque, a pretexto dos valores intrínsecos e da opacidade (verdadeira) da criação artística, o seu financiamento apareça como obscuro, por não ser comunicado, publicitado ou defendido com a clareza desejável para o comum cidadão contribuinte".

Excelente crónica de António Pinto Ribeiro, publicada na revista Ipsilon - Público, de 2 de Setembro 2011.

01 setembro, 2011

Voltei!

Voltei e tenho a declarar que cumpri os objectivos a que me propus no início de Agosto: li três excelentes livros O último homem na torre (um romance que é um verdadeiro tratado de sociologia); Transgressão (um triller-romance perturbador) e A noite do oráculo.
Já seleccionei o que vou “devorar” em Setembro: Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa (a descoberta de um autor - Nobel que eu teimava em não pegar); C, de Tom McCarthy (a capa do livro determinou que partisse à descoberta de outro novo autor) e  A estrada, de Cormac McCarthy (neste caso reler um dos meus autores preferidos).
Nos próximos dias vou dar um giro por todos os blogues que sigo para descobrir novidades.
Que saudades eu já tinha deste meu cantinho.
Boas leituras para todos.


01 agosto, 2011

Livros para um mês de férias...


Num mês de ausência das "lides bloguistas" pretendo ler O último homem na torre, de Aravind Adiga (autor de O Tigre Branco, de que tanto gostei); Transgressão, de Rose Tremain (a descoberta de um novo autor) e reler A noite do oráculo, de Paul Auster (entusiasmada pelo comentário que li no blog Quero um livro).
Até Setembro.
Boas leituras para todos.