26 abril, 2016

Centenário da morte de Mário de Sá-Carneiro


O fidalgo e o lavrador
É meia-noute. No baile
Folga tudo e tudo dança.
À mesm’ hora o lavrador
No seu casebre descansa.

Uma hora. No palácio
Agora vai-se almoçar.
Na choupana o lavrador
Já terminou de jantar!

Dorme o fidalgo num leito
De penas, sobressaltado.
Em tábuas o lavrador
Repousa, mas sossegado!

Fim
- Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro…

Mário de Sá-Carneiro foi poeta, contista, ficcionista. Nasceu em Lisboa (1890), suicidou-se em Paris (26 de Abril de 1916).

Caricatura de Mário de Sá-Carneiro, feita por Almeida Negreiros, pintor e escritor português (1893-1970).

O jogo de futebol


“Porque é que todos os domingos, milhões de pessoas ficam com os olhos colados ao televisor? O que é que o futebol dá aos que o vêem, o que é que lhes oferece, de que forma os enriquece?
Alguns defendem que não dá nada, e contrapõem o desporto praticado ao desporto espectáculo, que seria apenas um jogo de emoções, uma embriaguez fantástica, um desabafo dos instintos. Uma espécie de orgasmo colectivo com que todos descarregam frustrações e os rancores da vida diária. Estes pessimistas não vêem nele nada de positivo, mas apenas uma prova da irracionalidade humana.
Os sociólogos e os psicólogos, pelo contrário, são mais optismistas e defendem a tese de que o indivíduo tem necessidade periodicamente de esquecer a sua própria identidade, de se fundir com o colectivo. No estádio todos são iguais. O advogado, o médico, o operário e o seu chefe, o juiz e a dona de casa, os ricos e os pobres esquecem quem são e sentem uma embriaguez de liberdade. Explodem em excessos, gritam, abraçam-se, fundem-se todos para formar um novo e poderoso organismo superindividual. Depois, em casa, cada um regressa a si mesmo, à vida de todos os dias.(…)
O jogo de futebol é uma metáfora da vida.

Goooolo!

Tirei daqui: “O Optimismo”, de  Francesco Alberoni, Ed. Bertrand, 1995
(foto da net)

24 abril, 2016

"As primeiras coisas" - Bruno Vieira Amaral

"No Bairro Amélia come-se de tudo: moamba de galinha, calulu de peixe, cachupa, cozido à portuguesa, enguia frita com arroz de grelos…"

QUANDO, EM FINAIS DOS ANOS NOVENTA, voltei costas ao Bairro Amélia, com os seus estendais de gente mórbida, a banda sonora incessante das suas misérias, nunca pensei que a vida me devolveria ao ponto de partida.
Começa assim o Prólogo de quarenta e sete páginas (belíssimas) do romance de estreia de Bruno Vieira Amaral, uma ficção inspirada em realidade pois o escritor (n. 1978) cresceu no Bairro de Fomento à Habitação, no Vale da Amoreira, concelho da Moita, distrito de Setúbal.
A voz que ouvimos é de Bruno Eugénio, que diz mais à frente:
Saí para o mundo convicto da vitória e regressei, cabisbaixo, com o meu fracasso. Não importa detalhar o insucesso. Direi apenas que a queda não foi tão espectacular que não me envergonhasse. Foi um fracasso ordinário e marcante.
A minha mãe acolheu-me com impecável sentido de responsabilidade e o sentimento da mal disfarçada incomodidade de quem recebe um presente que não aprecia ou de que não precisa. Resignou-se. (…)
Foi assim que me encontrei de regresso ao Bairro Amélia: desempregado, desamparado, um pouco órfão…
Quarenta e tal páginas depois, ele confidencia:
O reflexo que o espelho me devolvia era uma cópia degradada do homem que, há poucos meses, eu contemplava com satisfação. Chegara ao fim. Não era agonia. Era cansaço, desemprego existencial, lassidão dos membros, a ânsia de adormecer.
Não! Bruno não chega ao fim. É salvo por Virgílio, o fotógrafo de voz rouca que lhe bate à porta, lhe entrega um envelope, e lhe diz «tenho algumas coisas que te podem interessar». 
Coisas que lhe interessam e o salvam...
Ao Prólogo segue-se um  “dicionário incompleto” com oitenta e seis pequeninas histórias… memórias, embustes, traições, homicídios, sermões de pastores evangélicos, crónicas de futebol, gastronomia, um inventário de sons, uma viagem de autocarro, as manhãs de domingo, meteorologia, o Apocalipse, a Grande Pintura de 1990, o inferno, os pretos, os ciganos, os brancos das barracas, os retornados: a Humanidade inteira arde no Bairro da Amélia, um lugar perdido na Margem Sul do Tejo…
Se o Prólogo é belíssimo e divertido, o Epílogo é lindo, profundo e comovente.
Hoje, assinámos os papéis do divórcio. Não a via desde o dia em que saí de casa. Está bonita. Cumprimentámo-nos. Acabou. (...)
Acabou, sim, porque eu nada mais desvendo.

Há muito que não lia um romance que me empolgasse tanto. Arrebatou-me a escrita concisa, clara e fluída, a narrativa empolgante, viciante, rica em detalhes, bem doseada de graça e seriedade.
Por favor leia!

As primeiras coisas”, de Bruno Vieira Amaral (Prémio Literário José Saramago, 2015),
Quetzal Editores, 2013
301 págs.

19 abril, 2016

O Cínico e o Entusiasta


O cínico
- não acredita na bondade dos homens…
- sabe que o ser humano é sonhador, ingénuo, hipócrita, ambicioso, avarento, vil, oportunista e mal-agradecido…
- é vaidoso e adora a adulação…
- sente-se acima do bem e do mal, está pronto para explorar as baixezas humanas, os vícios humanos, para alcançar a sua meta…
- é maquiavélico…
- a sua virtude fundamental é a astúcia…
- sabe ser paciente…
- sabe conduzir os homens para onde quer…
- desconfia das pessoas que se declaram amigas e pensa que o fazem por oportunismo…
- não tem ilusões…
- é um manipulador das paixões…
- não pensa melhorar o mundo, não acredita nisso…
- explora o lado pior dos que o seguem, envolve-os no seu cinismo…

O entusiasta
- é um sonhador infatigável, um inventor de projectos, um criador de estratégias, que contagia os outros com os seus sonhos…
- sabe que existem dificuldades, contrariedades, talvez insolúveis…
- sabe que nove de dez iniciativas falham, mas não esmorece, recomeça do princípio, renova-se…
- é um criador de possibilidades…
- sabe que o homem é fraco, sabe que existe o mal, vê a mesquinhez, sofre desilusões.
- faz apelo à parte mais criativa, mais generosa dos que o rodeiam, incentiva-os a usarem-na, força-os a serem melhores, arrasta-os consigo demonstrando que, agindo com impulso, com optimismo, com generosidade, as coisas são possíveis.”

Lembra-lhe alguém?

Tirei daqui: “O Optimismo”, de  Francesco Alberoni, Ed. Bertrand, 1995
(foto da net)

15 abril, 2016

"Adivinhas de Pedro e Inês" - Agustina Bessa-LuÍs


A História é uma ficção controlada. 
“Adivinhas de Pedro e Inês” é um romance histórico feito de muita investigação e imaginação, que relata a história do amor trágico de D. Pedro e Inês de Castro.
A “voz” que tudo desvenda sobre os mais conhecidos amantes portugueses, é de uma mulher que visita lugares míticos, levanta e questiona dados biográficos, reflecte sobre a verdade histórica arrumada em arquivos, “lê” as pétalas interiores e exteriores da rosácea da cabeceira do túmulo de D. Pedro, consagradas respectivamente aos amores idílicos e aos amores punidos, desmonta mitos.
A narrativa começa assim:
Visitei há muitos anos a Quinta das Lágrimas, onde se diz que Inês foi morta. Lembro-me que se transpunha o rio atravessando uma ponte de madeira cujas tábuas gemiam e baloiçavam (…)
Depois da morte de Inês, acontecida nesses famosos lugares, andou sete meses dementado o Infante, queimando e destroçando aldeias e semeaduras; tais flagelos sangravam do seu coração (...)
E termina assim:
Porque teve Inês, na sua maturidade, um intuito tão manifesto de ser rainha? A ambição resulta da felicidade ignorada. Possivelmente ela nunca amou D. Pedro, e a sua vontade de poder era uma forma de suspirar (…)
Lido e relido, este romance não me cativou.
Nem o aviso: as adivinhas de Pedro e Inês ficam entregues à imaginação do público, dos leitores... me fez gostar duma narrativa enfadonha e repetitiva.
Lamento!

Adivinhas de Pedro e Inês, de Agustina Bessa-Luís
Guimarães & Cª Ed., 1983
239 págs.

12 abril, 2016

O Pessimista e o Optimista


“O optimismo e o pessimismo, à primeira vista, parecem duas qualidades equivalentes, com vantagens e desvantagens de sinal oposto:

O pessimista
- é excessivamente prudente...
- tem uma visão negativa do futuro e uma visão negativa dos homens. Quando os observa descobre em todos as piores qualidades, as motivações mais egoístas, menos desinteressadas…
- para ele a sociedade é formada por pessoas avarentas, corruptas, intimamente perversas, sempre dispostas a explorar as situações em proveito próprio…
- é um avarento. Para quê ser generoso, se o mundo está cheio de gananciosos, corruptos, exploradores?
- muitas vezes é, também, um invejoso…
- está encerrado em si mesmo e não ouve os outros, sente-os como entidades ameaçadoras…
- vê tudo negro. Seja qual for o tema de que se fale, o projecto que se faça, ele descobre logo os aspectos negativos. Paralisa e paralisa-nos. Não tem confiança e tira-nos a confiança.
O optimista
- é mais virado para a acção, é mais activo…
- confia nos homens, corre riscos. No entanto, se o observarem atentamente, verão que ele vê realmente as maldades e as fraquezas dos outros. O que acontece é que ele não se detém perante estes obstáculos. Conta com o facto de em todos os seres humanos haver qualidades positivas e procura despertá-las.
- está atento às pessoas. Deixa-as falar, dedica-lhe o seu tempo, observa-as. Desta forma consegue identificar em cada uma o aspecto positivo, a qualidade que pode exaltar, fazer frutificar.
- supera as dificuldades… porque está aberto às novas soluções e pode rapidamente transformar uma desvantagem em vantagem.
- comparado com o pessimista, parece um ingénuo.

Em suma, o ideal parece ser uma mistura sensata de ambos.

Concordo!

Tirei daqui: O Optimismo”, de  Francesco Alberoni, Ed. Bertrand, 1995
(foto da net)

08 abril, 2016

"Número zero" - Umberto Eco

Não são as notícias que fazem o jornal, mas o jornal que faz as notícias.
A sinopse promete muita acção (e quase desvenda tudo…):
Um redactor paranóico que, circulando por uma Milão alucinada (ou alucinado por uma Milão normal), reconstrói uma história com cinquenta anos, tendo como pano de fundo um plano diabólico arquitectado em torno do cadáver putrefacto de um pseudo-Mussolini.E, na sombra, o Gladio, a P2, o assassino do Papa Luciani, a CIA, os terroristas vermelhos manobrados pelos serviços secretos, vinte anos de massacres e de pistas falsas, um conjunto de factos inexplicáveis que parecem inventados, até que uma transmissão da BBC vem provar que são verdadeiros ou, pelo menos, são agora confessados como tal pelos seus autores. Depois, um cadáver entra subitamente em cena na mais estreita e mal-afamada rua de Milão. (...)

“Número zero” é um romance irónico que critica-denuncia o actual jornalismo italiano, a corrupção na política, a impunidade das influentes e poderosas organizações criminosas.
A história, narrada na primeira pessoa por um protagonista barricado em casa com medo de morrer, principia Sábado, 6 de Junho de 1992 (1º capítulo) e termina Quinta-feira, 11 de Junho de 1992 (18º capítulo). Os restantes dezasseis capítulos, igualmente datados, são memórias de factos ocorridos em Abril e Maio do mesmo ano, com algumas incursões pela História do Século XX.
"Doutor" Colonna, o protagonista, é um perdedor compulsivo, tradutor de alemão, escritor falhado, ghost writer de um autor de livros policiais, cinquentão, infeliz no amor, que sonha com o que sonham todos os perdedores: escrever um livro que lhe desse glória e riqueza.
Como o medo de morrer dá fôlego às memórias, no tempo de clausura forçada ele reconstitui a história bizarra de um jornal sem leitores de Milão, criado para nunca passar do número zero.
Tudo começou quando aceitou escrever as memórias do jornalista Simei sobre o processo de criação desse jornal, dito independente de qualquer pressão, e disposto a dizer a verdade sobre tudo.
“Amanhã”, é o título, porque, ao contrário dos jornais tradicionais que falam do que aconteceu ontem, este falará do que poderá acontecer amanhã.
“Amanhã: Ontem”, é o título do livro que, recomenda Simei,  deverá dar a ideia de um outro jornal, mostrar como, durante um ano, eu me esforcei para realizar um modelo de jornalismo independente de qualquer pressão, dando a entender que a aventura acabou mal porque não era possível dar vida a uma voz livre. Para isso, preciso que você invente, idealize, escreve uma epopeia, não sei se me faço entender.
Ou seja, «O livro dirá o contrário daquilo que aconteceu…»
Nem mais, «será assinado por mim, você, depois de o ter escrito, deverá desaparecer.»
«Porque não o escreve você? É jornalista, não é? Pelo menos, visto que está em vias de dirigir um jornal…?»
«Ser director não quer dizer saber escrever. Ser ministro da Defesa não quer dizer saber atirar uma granada…»
Estranho?!
Sim, estranho, mas seis milhões/mês (por fora) durante um ano de trabalho (humilhante) na redacção do "Amanhã", a registar o ali que passa e a rever os artigos dos redactores, convenceram o deprimido/falido "Doutor" Colonna.
Doze números zero sairão da redacção. Doze números, feitos de reportagens ignóbeis, destinados a favorecer a chantagem do financiador do jornal, um Comendador milionário, que pretende entrar no salão reservado da finança, dos bancos, e mesmo dos grandes jornais, e que fará com que sejam vistos por certas pessoas. 
«Só eu e você é que estamos a par desta história… Se o comendador usa os nosso números zero para assustar alguém ou para limpar o rabo, isso são assuntos seus, não nossos.»
Terça-feira, 7 de Abril (3º Capítulo)
Primeira reunião de Simei (director) e Colonna (assistente de direcção) com os seis redactores do jornal.
(à porta fechada, logo, nada vou desvendar... )

Leia este romance corajoso, hilariante, surpreendente e saiba que ... nunca se deve acreditar no que nos é contado.

Número Zero, de Umberto Eco
Tradução de Jorge Vaz de Carvalho
Ed. Gradiva, 2015
163 págs.

05 abril, 2016

14º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa

158-(1918?)
“O amor perde identidade com diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna dele, e não é ele. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia – os amores todos que são os abominandos do amor.

O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele com quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente?"

Leia (tudo) e… deslumbre-se!