31 janeiro, 2017

"Versos" - Amália Rodrigues


LÁGRIMA
Cheia de penas
Cheia de penas me deito
E com mais penas
Com mais penas me levanto
No meu peito
Já me ficou no meu peito
Este jeito
O jeito de te querer tanto

Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim um castigo
Não te quero
Eu digo que não te quero
E de noite
De noite sonho contigo

Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desespero
Que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile
Estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer

Se eu soubesse
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar
Uma lágrima
Por uma lágrima tua
Que alegria
Me deixaria matar


Sabia que Amália escreveu alguns dos mais belos poemas que cantou?
Eu, não.
Já a ouviu cantar “Lágrima”?
Eu já, muitas vezes.
Pois bem, Amália escreveu e cantou “Lágrima”, um dos mais belos fados que gravou.
Eu soube tudo isto porque Vitor Pavão dos Santos, biógrafo e amigo de Amália, compilou em livro alguns dos poemas escritos pela fadista.
Livro que se lê e ouve. A sério!
Como por magia, lemos “Lágrima” e ouvimos e deslumbramo-nos com a voz única da fadista maior.
E lemos “Estranha forma de vida” e voltamos a ouvi-la.
E lemos...
Experimente!

27 janeiro, 2017

"Quando ela era boa" - Philip Roth

Numa tarde de novembro de 1954, uma semana antes do Dia de Ação de Graças, mesmo ao anoitecer, Willard chegou de carro a Clark’s Hill, estacionou junto à vedação e subiu a pé o carreiro de acesso ao jazigo da família (…) baixou as abas do boné e ali, diante das campas da sua irmã Ginny, e da sua neta Lucy, e dos retângulos reservados para os restantes membros da família, esperou. Começou a nevar.
Estava à espera de quê?
Quando ela era boa” – terceiro romance de Philip Roth, um drama familiar originalmente publicado em 1967 – conta a história comovente, intensa e arrebatadora de uma família humilde, numa cidadezinha provinciana do Centro Oeste americano, na primeira metade do século XX.
Em casa de Willard Carroll e Berta reina a tranquilidade e a felicidade. Felicidade que aumenta quando nasce Myra, a filha de saúde frágil, discreta e tímida, estudante de música e mais tarde professora de piano. Tudo muda quando Mary, já casada com Whitey Nelson, um alcoólico, ignorante, cobarde, ladrão, oportunista, ciumento e violento, volta para casa dos pais com o marido desempregado e a filha de três anos, Lucy Nelson, a protagonista da história. É ela que aos quinze e anos, farta da violência do pai e da passividade da mãe, liga à polícia e fica a vê-lo ser levado para a prisão.
… os meus pais são horríveis. Não sou eu que penso – é a verdade!
Lucy não se livrou de um sermão do avô Willard.
«Nesta casa somos pessoas civilizadas e há certas coisas que não fazemos (…) não somos nenhuma escumalha, e tu tens de te lembrar disso.»
«Cá em casa, Lucy, conversamos com a pessoa. Mostramos-lhe o caminho certo.»
«E se a pessoa não o conhecer?»
«Olha Lucy, não a mandamos para a prisão! A questão é só essa. Está percebido?»
(Anos mais tarde, ela dirá ao avô que ele não podia proteger as pessoas da fealdade da vida passando-lhe por cima uma camada de verniz.)
Depois disso, Lucy, a jovem de bom coração, inteligente, sensível, impiedosa e moralista que fingia que tinha uma família normal, mesmo depois de ter começado a perceber que isso não era verdade, decide regenerar os homens que a rodeiam.
Começa por Roy Bassart, o namorado, dois anos mais velho do que ela mas muito infantil. Ama-o? Casa com ele? Lucy tem dezoito anos e não, não quer casar-se com ele. Ou quer? Talvez, mas só porque está a crescer alguma coisa dentro do seu corpo, e sem a sua autorização.
O resto é para você descobrir… lendo, claro!

O enredo de “Quando ela era boa” é inteligente, os personagens brilhantes, a escrita de  Philip Roth, irrepreensível, mas… 
Se as primeiras 57 páginas emocionam e cativam - conhecemos o avô Willard Carroll, um “homem bom”, filho de pai feroz e ignorante e de mãe trabalhadeira com mentalidade de escrava, que abandona a casa dos pais aos dezoito anos e vai ao encontro do mundo civilizado; que sabe o que quer e o que não quer: não ser rico, não ser famoso, não ser poderoso, nem sequer ser feliz, mas ser civilizado... não viver como um selvagem; chega a Liberty Center em 1903, arrenda um quarto, consegue um emprego nos correios, casa com uma rapariga decente, determinada e respeitável, compra uma casa pequenina, tem uma filha, é promovido a sub-chefe, renova a casa, vê a filha casar com um alcoólico violento, recebe-a de coração aberto quando ela necessita de apoio e... nunca esquece Ginny, a irmã internada num lar para deficientes mentais...
... as restantes 302  - relato da vida familiar e estudantil de Lucy, da sua relação com as amigas, do amor por Roy e do ódio pela família dele - estafam de tanta repetição. Tudo podia ser dito em metade das páginas. Penso eu.
Philip Roth jamais me desiludirá mas… desta vez cansou-me. A sério!

Quando ela era boa, de Philip Roth
Tradução de Francisco Agarez
Ed. D. Quixote, 2016
359 págs.

17 janeiro, 2017

Recordando… Florbela Espanca


A MINHA DOR
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres e agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca ou viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém, ouve… ninguém vê… ninguém…

"No Mundo, passo por todos, vendo alguns; na vida esqueço-me de quase todos, esquecendo-me de mim. Quase tudo me é indiferente.", Florbela Espanca (1894-1930)

Está decidido, em 2017 vou reler a obra poética da grande Florbela Espanca e partilhar no meu rol alguns sonetos que me tocam particularmente.
Pensei nisto depois de ler “Florbela Espanca”, de Agustina Bessa- Luís, em Setembro de 2016.
Já agora, se gosta da obra de Florbela Espanca não deixe de ler esta biografia.

10 janeiro, 2017

Mário Soares (1924-2017)


«Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade».


Tirei daqui: "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa, Ed. Tinta da China, 2014
Foto da net.

06 janeiro, 2017

Vale a pena ler... José Tolentino Mendonça




"(...)Entre um ano que acaba e um ano que começa, a contas com o tempo que corre fora e dentro de nós, sentindo-nos talvez de forma mais sensível modelados por esse oleiro invisível que é o tempo, percebemos que a nossa vida é uma vida exposta. É impossível não detetar as marcas do tempo em nós: linhas de fragilidade, sombras, estremecimentos, erosões, zonas mais desvitalizadas, desvios. A unidade interior é um trabalho imenso. Parece-se ao manto que Penélope tecia durante o dia e desmanchava durante a noite, na sua espera quase sem esperança. Mas não podemos desistir de construir essa unidade de ser. Só aquilo que amamos com o extremo do amor não nos será tirado.(...) Dizer por exemplo, que a vida é marcada pela vulnerabilidade é reconhecer quando ela está exposta à possibilidade de ser ferida. (...) A vulnerabilidade é um acontecimento total. Descobrimos, no entanto, que através dela nos chega também o que nos redime. Só a vulnerabilidade nos eleva à altura do infinito à maneira de uma dança, onde a gravidade é vencida pela graça. E a dança não conhece fronteiras. O seu vocabulário é infinito pois é a emoção humana que ressoa no movimento. Tudo dança, tudo é dança. Os nossos olhos dançam, os nossos corpos rodopiam, a natureza (a nossa e a das coisas) manifesta-se num deslizar que se calhar não vemos.(...) E recorda Marta Graham: "A dança é a linguagem escondida da alma, é uma canção do corpo, um sopro de alegria e de dor. Importa apenas isto: levanta-te e dança". 

Excerto da crónica “Levanta-te e dança”, de José Tolentino Mendonça (presbítero e poeta português, n. 1965), publicada na “E”, revista do jornal Expresso de 30 Dezembro 2016
Vale a pena ler na íntegra.

(Foto da net)

03 janeiro, 2017

22º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa

242-(13-4-1930)
"Para o homem vulgar, sentir e viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar e viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.”
“Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjectividade.”

249-(cerca de abril de 1930)
“O peso de sentir! O peso de ter de sentir.”

250-(cerca de abril de 1930)
“Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!