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19 julho, 2019

Versos de Graça Pires e... «homens de Modigliani»!

Subversivamente
o instinto me descomenda.
E a magia inconsciente
do meu corpo
é um jogo clandestino
de gestos sem eco.
Há um ritual divino
nas carícias sensuais
em que me invento.
Nada me torna inocente
dos meus próprios sentidos
quando solto
as linhas marginais
do pensamento
e me seduzo
com gostos proibidos.
Sempre são excessivos os desejos de quem sonha
a vida toda num momento.
A solidão é como o vento.
É nos olhos do mendigo 
que a noite se prolonga por mais tempo.

Poema "MARGINALIDADE" (1990) de Graça Pires (blogue "Ortografia do olhar"), publicado no livro "Poemas Escolhidos -1990-2011".
Retratos pintados por Amedeo Modigliani (1884-1920):
1º Auto-retrato, 1919
2º Paul Alexandre, 1909
3º Moïse Kisling, 1915
4º Leopold Zborovski, 1918
5º Paul Guillaume, 1916
6º Chaim Soutine, 1915
7º Jean Cocteau, 1916
8º Pablo Picasso, 1915
(fotos da net)

 Amiga Graça, não te zangues comigo!
Eu continuo a preferir as tuas "mulheres de Modigliani"!

26 abril, 2019

"Lembrança" - poema de Miguel Torga

Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.
Depois,
não sei porquê nem por que não,
essa recordação desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.
Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite,
na maior solidão,
vem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira!
Poema de Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nascido a 12 de Agosto de 1907, em São Martinho de Anta, Portugal. 
Formou-se em Medicina na Universidade de Coimbra, cidade onde faleceu a 17 de Janeiro de 1995.
Considerado um dos grandes escritores portugueses contemporâneos, foi distinguido com vários prémios, nomeadamente com o Prémio Camões, em 1989.
"Lembrança"(1939) consta do livro que reúne todos os poemas do poeta: "Poesia Completa", editado em 2000 pelas Publicações Dom Quixote.
Detalhes das obras "The rose girl", "Summer", "Spring" e "Under the Cherry Tree", do pintor francês Émile Vernon (1872-1920).

13 janeiro, 2018

Uma braçada de lírios, rosas e... gripe!

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me às mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas
E lírios também...

Versos de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, Portugal (1888-1935)
Aguarela em papel “Rosas sempre rosas”, de Léah Mae, pintora e cronista, autora do belo blogue “Minhas pinturas
Pois é, o vírus da gripe entrou, sem ser convidado, em minha casa. E não parece querer sair.
Há uma semana que por aqui anda fazendo estragos: começou pelo maridão e logo depois, pumba, apanhou-me pela garganta.
Ataquei-o com antigripais, xarope, pastilhas, canja quentinha, e mantas, mas… está difícil debelar a infecção: a tosse (cavernosa) continua, o pingo do nariz não pára de cair, os espirros frequentes rebentam-me com as costas, as dores passeiam-se por mim da cabeça aos pés.
A desgraçada da gripe veio para ficar.
Entretanto, o sofá tem sido o meu melhor amigo: esparramada nele, dormito, vejo filmes gravados há meses e leio pequenos poemas. Para grandes romances… não há clima!
Afinal, o que é mesmo a gripe?
Ninguém merece!

15 dezembro, 2017

“O hábito da leitura” - Pedro Luso


“Não raro recebo mensagens de jovens e de adultos que dizem que gostariam de ter o hábito da leitura, pois não se sentem com o ânimo necessário para se aventurarem em leituras que exigem deles o dispêndio de muito tempo.
Dizem alguns, que se sentem frustrados quando fecham o livro iniciado sem chegarem ao final da história ou do poema. Dizem, ainda, que gostariam de continuar com a leitura iniciada, mas desistem.
Então, pedem que lhes indique qual o método que poderá levá-los a aprendizagem da leitura. (Isso, em se tratando de ficção, já que muitos estão interessados em outras leituras, que não ficção ou poesia.)

A resposta para essa pergunta, que pode parecer fácil é, ao contrário, bastante difícil. Para cada pessoa deve-se aplicar um método que se adapte com sua idade, escolaridade, sensibilidade, aspirações.
Daí podemos concluir que as pessoas mais indicadas para dar esse tipo de orientação são os professores, já que no dia a dia da vida escolar podem observar quais são as tendências e aspirações de seus alunos.
Quanto aos adultos, que não mais frequentam bancos escolares, deverão eles escolher o que mais se aproxima de seu gosto, que pode ser romance, conto, crônica ou poesia. Isso não quer dizer que não possam aderir a todos esses gêneros.
Depois que esse adulto estabelecer uma hora adequada para a prática da leitura, em lugar igualmente adequado, estará iniciada a rotina para as suas leituras, desde que não desista dessa importante empreitada.
Portanto, para as pessoas adultas, que não mais frequentam os bancos escolares, a aquisição do hábito da leitura dependerá unicamente deles próprios. Portanto, vontade e determinação é a receita para atingirem esse objetivo.”


Pensava eu que Pedro Luso só escrevia poesia, poesia realmente boa, mas estava enganada.
Ao bisbilhotar o seu "Blog Veredas" descobri crónicas encantadoras. Esta, sobre o hábito (saudável) da leitura, agradou-me tanto que decidi - sem autorização do poeta/cronista - trazê-la para o meu roldeleituras. Desculpa, Pedro!

Pintura “The Garden Window”,  de Daniel F. Gerhartz, EUA 1965

05 dezembro, 2017

"As palavras pesam" - poema de Graça Pires


As palavras pesam
Um texto nunca diz a dor das pequenas coisas,
Do quotidiano entrincheirado entre compromissos,
Das tramas afectivas, do exílio anunciado
No andar inquieto das mulheres.
De rosto em rosto, a caligrafia do amor
implorou a memória das palavras encantadas
e, como se houvesse uma linguagem
de atravessar o tempo, acenderam,
sobre os dias, constelações sonoras.
Mas eu, que não adiro aos calendários
nem acredito em vogais prometidas,
eu parti, de punhos febris,
enlaçando nos braços
um futuro marginal, a qualquer lógica.
A posse da noite, onde me quero lua em todas as fases,
leva-me a glosar os medos num novelo de rimas imperfeitas.
A cidade tem pombas que me perseguem sem eu dar por isso.
Tenho um aqueduto modelado nos olhos
e um dilúvio vermelho no desenho do peito.

Poema do livro “Poemas Escolhidos (1990-2011), da poetisa portuguesa Graça Pires (n.1946-), autora do blogue “Ortografia do olhar”, que recomendo aos amantes da verdadeira poesia.

Pintura “Transformative chapter”, acrílico em madeira, do artista vietnamita Duy Huynh.

28 novembro, 2017

Estou de volta!


Hora a hora,
Nasce outra vez em mim a vida.
Devagar,
Como um gomo de vide a rebentar,
Cobre de verde a cepa ressequida.

É um fruto que acena?
É uma flor que há-de-ser?
- Fui eu que disse que valia a pena
Viver!

"Convalescença", poema de Miguel Torga, Portugal (1907-95)
The Murmur of the sea”, de Delphin Enjolras, pintor francês (1857-1945)


Estou de volta!!
Já sem a vesícula biliar (órgão responsável pelo armazenamento da bílis produzida pelo fígado) onde se "alojavam" várias pedrinhas (cálculos biliares) e um pedregulho de 3 cm, verdade, 3 cm, que há semanas atrás me provocaram dores terríveis na zona abdominal e costas, que me levaram ao hospital.
Exames para cá, exames para lá, o diagnóstico chegou: dores provocadas pela expulsão de pedras pequeninas; inflamação provocada pelo pedregulho.
Tratada a inflamação, avançámos para a colecistectomia (excisão cirúrgica da vesícula) por via laparoscópica. Tudo correu bem!

Sou grata por tudo. Grata pela preocupação e carinho de todos: família; amigos reais; amigos da blogosfera; conhecidos de bata branca, verde, azul.
Um beijo no coração de TODOS!

14 novembro, 2017

"Se um dia eu pudesse..." - Fernando Pessao


Se um dia eu pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose ao sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro.”


Fernando Pessoa, poeta português (1888-1935), in “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014
"Daphne", de  Frederic Leighton, pintor e escultor inglês (1830-96)

15 setembro, 2017

"Irrita-me a felicidade de todos estes homens ..." - Fernando Pessoa


Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem rico com dor de dentes de vez em quando, mas muita aspirina também – a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) aos incidentes que chamam alegria e dor.

Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!”


Fernando Pessoa, poeta português (1888-1935), in “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014
Pintura de Giuseppe Arcimboldo, pintor italiano (1537-93)

21 julho, 2017

"Os sentimentos que mais doem..." - Fernando Pessoa



Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas importantes, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juntos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas. (…)
Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. (…)

Nestas horas de mágoa subtil, torna-se impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. E tudo um caos de coisas nenhumas.”


Fernando Pessoa, poeta português (1888-1935), in “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014
Painel de azulejos de Almada Negreiros, pintor  português (1893-1970).

16 junho, 2017

"Os pobres não gritam... " - Florbela Espanca


"Os pobres não gritam. A morte faz parte do seu lúgubre cortejo de amigos, tem um cantinho no seu leito e um lugar à sua mesa: quando chega, pode levar tudo; quando transpõe a porta, aberta de par em par, com a sua presa, não vê à sua volta, a escoltar-lhe o fatídico vulto negro, senão cabeças curvadas num gesto de resignação, braços caídos, braços de quem deu tudo, de quem não tem mais nada para dar. A dor dos pobre é resignada e calma; traz às vezes consigo as aparências da revolta mas, no fundo, é cheia de um imenso, dum infinito desapego de tudo. Os pobres vêm ao mundo já sem nada; o pouco que a vida lhes deixa é emprestado. Que lhes hão-de tirar que seja deles?! Aos pobres toda a gente chama desgraçados."

Florbela Espanca, poetisa portuguesa (1894-1930), in “As máscaras do destino - Conto A paixão de Manuel Garcia”, Bertrand, 1981
Pintura "Interior de Pobres" (1921), do pintor e escultor brasileiro Lasar Segal (1891-1957)

06 junho, 2017

"A vida é uma viagem experimental..." - Fernando Pessoa


A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e, como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito. (…)

Vem isto tudo, que vai dito como vai sentido, a propósito do grande cansaço, aparentemente sem causa, que desceu hoje súbito sobre mim. Estou não só cansado, mas amargurado, e a amargura é incógnita também. Estou, de angustiado, à beira das lágrimas – não de lágrimas que se choram, mas que se reprimem, lágrimas de uma doença da alma, que não de uma dor sensível.
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo todas as feridas de batalhas que evitei. Meu corpo muscular está moído do esforço que nem pensei em fazer.
Baço, mudo, nulo… “

Fernando Pessoa, poeta português (1888-1935), in “Livro do desassossego”, Ed. Tinta da China, 2014
Desenho de Vincent van Gogh, pintor holandês (1853-90)

28 maio, 2017

Vale a pena ler... José Tolentino Mendonça


“Cada vez mais se ouve pais hesitantes do seu papel que perguntam se a tarefa que lhes cabe é a de serem pais para os seus filhos ou simplesmente grandes amigos. Tornarem-se amigos dos filhos, vencendo a distância simbólica que a parentalidade estabelece, aparece hoje a mães e a pais como uma solução tentadora que os colocaria melhor na órbita existencial dos filhos, cúmplices das etapas que estes percorrem, confidentes privilegiados das suas vivências e, desse modo, com maior capacidade de influenciar e de intervir. Será verdade? (…)
Os pais precisam aceitar que cada filho é uma vida distinta e autónoma, ao mesmo tempo gerada por eles e inacessível, à maneira de um segredo que protegem mas cujo conteúdo está destinado a escapar-lhes. (…)
A tarefa da vida dos filhos é fazerem-se criativos herdeiros de um dom recebido que também eles não entendem até ao fim ou não entendem logo. Ora, ser herdeiro não significa apenas receber a parte de bens que lhe corresponde, mas construir em diálogo com essa vida recebida uma identidade original. (…)
Mas uma função inalienável dos pais é recordar que a vida humana é fundada em limites e sinalizá-los. Precisamente o contrário da promessa consumista das nossas sociedades, onde tudo aparece pronto para ser adquirido, devorado e esquecido.”

Excerto da crónica “Pais ou amigos dos filhos?”, de José Tolentino Mendonça (presbítero e poeta português, n. 1965), publicada na “E”, revista do jornal Expresso de 27 Maio 2017
Vale a pena ler na íntegra.

Pintura “A sagrada família do passarinho”, do espanhol  Bartolomé Murillo (1617-82)

23 maio, 2017

Escuta, Zé Ninguém!


O grande homem é aquele que reconhece quando e em que é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la.
Pensas sempre a curto prazo, Zé Ninguém, o teu tempo medeia de uma refeição a outra. Terás de aprender a memória em termos de séculos, e a perspectiva do futuro em termos de milénios. Terás de aprendê-la em termos da verdadeira vida, em termos do teu desenvolvimento desde o primeiro foco plasmático até ao animal humano, capaz de caminhar erecto, mas incapaz ainda de pensar com justeza. Porque a tua memória não retém acontecimentos de há dez ou vinte anos, continuas repetindo as mesmas asneiras de há dois milénios. E mais ainda: agarras-te a elas – à tua «raça», «classe», «nação», aos teus ritos religiosos compulsivos, à supressão do amor, como um piolho se aferra à pele. Nem te atreves a ver até que ponto te encontras atolado na tua miséria. De vez em quando, deitas a cabeça de fora e berras «Viva!» O coaxar de uma rã no charco tem pelo menos mais sentido. (…)
Quando saberás viver a tua vida em paz e segurança; a resposta consiste no inverso da tua forma de ser actual: viverás bem e em paz quando a vida significar para ti mais do que a segurança; o amor mais do que o dinheiro; a tua liberdade mais do que as linhas directivas do partido ou a opinião pública; quando o modo de estar no mundo de um Beethoven ou de um Bach for o tom habitual de toda a tua existência. (…)
Troca as tuas ilusões por um pouco de verdade.
Protege o amor das crianças de tenra idade dos ataques de adultos lascivos e frustrados.
Não tentes ser mais explorador que quem tenta explorar-te.
Não tentes melhorar a natureza mas antes entendê-la.
Procura pensar correctamente, ouve a tua voz interior e o seu murmúrio brando. Tens a vida nas tuas mãos. Sê tu próprio.
E não consintas que o sofrimento te torne duro e amargo.”

Tirei daqui: Escuta, Zé Ninguém!” (1945), de Wilhelm Reich (1897-1957), médico psicanalista e cientista austro-húngaro, pensador inconformista e autenticamente progressista, discípulo dissidente de Sigmund Freud.

Pintura "Cabeça", do pintor russo Pavel Filonov (1883-1941)

07 maio, 2017

Canção para minha Mãe - Miguel Torga


Canção Para Minha Mãe

E sem um gesto, sem um não, partias!
Assim a luz eterna se extinguia!
Sem um adeus, sequer, te despedias,
Atraiçoando a fé que nos unia!

Terra lavrada e quente,
Regaço de um poeta criador,
Ias-te embora antes do sol poente,
Triste como semente em calor!

Ias, resignada, apodrecer
À sombra das roseiras outonais!
Cor da alegria, cântico a nascer,
Trocavas por ciprestes pinheirais.

Mas eu vim, deusa desenganada!
Vim com este condão que tu conheces,
E toquei essa carne macerada
Da vida palpitantes que mereces!

Porque tu és a Mãe!
Partiste um dia aos gritos e aos arrancos,
E partirás ainda pelo tempo além,
Mesmo sem madre e de cabelos brancos!

És e serás a faia que balança ao vento
E não quebra nem cede!
Se te pediu a paz do esquecimento,
Também a força de lutar te pede!

Respira pois, seiva da duração,
Nos meus pulmões até, se te cansaste;
Mas que eu sinta bater o coração
No peito onde em menino me embalaste.

Poema de Miguel Torga, Portugal (1907-95)
Pintura da romena Anca Bulgaru.

05 maio, 2017

Vale a pena ler... José Tolentino Mendonça


“Como chegamos a ser o que somos? Por um trabalho longo e paciente, que decorre entre muita incerteza. (...)

«Estás a ouvir? Perguntou o principezinho. – Acordámos o poço e ele pôs-se a cantar…». Não se espera que existam poços num deserto. O pequeno herói de Saint-Exupéry garante, porém, que «o que torna belo um deserto é que ele esconde um poço em algum lugar». Resmungamos com a vida. Falta-lhe alguma coisa, nunca nada é perfeito, nada está acabado ou resolvido. É como se estivéssemos a jogar um jogo insolúvel: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. «O Principezinho» declara que não nos falta nada. Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar a alegria. Não é um problema de conhecimento, é uma questão de olhar. Olharmos para o que somos e para o que nos rodeia com o coração simples, capaz de perceber o dom que nos habita. Pois, se encostarmos o ouvido até mesmo junto das nossas maiores derrotas compreenderemos que a nossa vida canta!”

Excerto da crónica “Do bom uso do fracasso”, de José Tolentino Mendonça (presbítero e poeta português, n. 1965), publicada na “E”, revista do jornal Expresso de 29 Abril 2017
Vale a pena ler na íntegra.

(Pintura de Salvador Dali , pintor espanhol (1904-89)

07 abril, 2017

Um espelho é um sortilégio...


Um espelho é um sortilégio.
Temos de nos ver muito tempo ao espelho, muitas vezes e muito tempo, antes de conhecermos o nosso verdadeiro rosto. Um espelho não é uma simples placa de prata com a sua superfície lisa, não, um espelho é profundo como um lago de montanha, e quem se debruça com toda a atenção sobre a superfície de um espelho veneziano vê subitamente o fundo, vê profundidades sempre novas, e o seu rosto reflecte-se cada vez mais longe, o seu rosto que se debruça sobre o espelho, e todos os dias uma máscara cai do rosto que se olha ao espelho (...).
Nunca ofereças um espelho à mulher que amas, (...) porque desse modo as mulheres acabam por se conhecer a si próprias, passam a ver melhor e entristecem. 
Foi por meio do espelho que um dia, algures, o conhecimento começou, quando o homem se debruçou sobre o mar, viu o seu próprio rosto no infinito, e entristeceu perguntando-se: « O que é isto?...» “

Tirei daqui: A conversa em Bolzano”, de Sándor Márai,  Ed. D. Quixote, 2014
Pintura de Fernand Toussaint, pintor belga (1883-1956)

20 março, 2017

Dia internacional da felicidade??!!


A felicidade é disparatada como uma rosa na boca de um jacaré. Em seu esforço para não ser um jacaré, extasia-se o homem na felicidade de o não ser completamente dizendo isso num sorriso monstruoso que é uma rosa na boca de um jacaré .Ah! como o assassino é legível na ária da felicidade que lhe floresce na boca! Todos os assassinos trazem uma flor na boca; um sorriso de metódicas navalhas. Todos os felizes são assassinos, ou vítimas, é a mesma coisa. Recusar a felicidade é vomitar a memória, deslembrança do sítio onde o ouro se transtorna em chumbo.
Só conheço uma espécie de miseráveis: os felizes. Porque a felicidade é o tributo que pagam à miséria da existência.
Somos no que nos excede e só a infelicidade verdadeira nos excede. A alegria também um pouco porque é a resplandecente e frenética ironia da felicidade não existir.
Um novo dia! dizem os felizes, perfurando as paredes da esperança para espreitarem suas nádegas operárias do vício solitário do triunfo nos quartos de curta permanência que a felicidade aluga. Um novo dia! diz gota a gota a baba com que os felizes tecem seu sequestro de esperançosas toupeiras.
Como se não houvesse sempre e apenas um só dia, uma onda ininterrupta, eternamente solta trespassando-nos na vida que os campos sáfaros da existência alaga. Um volátil e fixo sustenido de platina de um intocado violino que os felizes fingem dividir em agulhas com que malcriadamente palitam os olhos nos sítios mais concorridos.”

Quadro de Agostinho Santos, pintor, escritor e jornalista português (n.1960), tirado da net.
Texto de Natália Correia, intelectual, poeta e activista social portuguesa (1923-93), tirado daqui:


17 fevereiro, 2017

Como apreciar uma boa chávena de chá...


"Temos de estar totalmente despertos no presente para apreciar uma boa chávena de chá. Apenas com a consciência no presente, as nossas mãos podem sentir o agradável calor da chávena. Apenas no presente podemos apreciar o aroma, sentir a doçura e saborear a delicadeza. Se estamos a ruminar sobre o passado ou preocupados com o futuro, perderemos por completo a experiência de apreciar a chávena de chá. Olharemos para a chávena de chá, e o chá terá já terminado.
A vida é assim. Se não estamos totalmente no presente, quando olhamos à nossa volta este terá desaparecido. Teremos perdido a sensação, o aroma, a delicadeza e a beleza da vida. Parecerá ter passado a correr por nós.
O passado terminou. Aprendamos com ele e deixemo-lo ir. O futuro ainda não está aqui. Planeemos, sim, mas não gastemos o tempo a preocuparmo-nos com ele. A preocupação é uma perda de tempo. Quando paramos de ruminar sobre o que já aconteceu, quando paramos de nos preocuparmos com o que poderá nunca vir a acontecer, então estaremos no momento presente. Só então começaremos a experimentar a alegria de viver."

Thich Nhat Hanh, monge e filósofo budista vietnamita, citado por Brian L. Weiss, em “Só o amor é real”, Ed. Pergaminho, 1999

Pintura de Mary Cassat, pintora norte-americana (1844-1926)

23 dezembro, 2016

A todos... um BOM NATAL!


CHOVE. É DIA DE NATAL

Chove. É dia de Natal
Lá para o Norte é melhor:
Há neve que faz mal.
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Poema de Fernando Pessoa, Portugal (1888-1935)
Pintura de Carlos Reis, Portugal (1037-)

20 março, 2016

Felicidade


"… para se tornar uma pessoa mais feliz, tem primeiro de imaginar que fazê-lo é possível.
As pessoas felizes sabem que não há garantias quanto à duração desta aventura chamada vida.
As pessoas felizes não esperam até amanhã para dar a saber às pessoas que amam que as amam, não esperam até amanhã para ver um belo pôr do sol, para ir ao campo ou para brincar com os filhos.

A vida é um dom espantoso… Não desperdice um momento precioso a produzir pensamentos sobre um passado doloroso ou um futuro imaginado. Quando este tipo de pensamentos surge, perceba que são meros pensamentos e que não precisa de ter medo deles.
A vida deve ser vivida um momento de cada vez.
A vida não é uma emergência e sim uma aventura.

Não existe um «caminho para a felicidade». A felicidade é o caminho. A felicidade é um sentimento em que a pessoa se envolve e não um resultado dos acontecimentos.
A felicidade é um sentimento, nada mais e nada menos que isso.
As pessoas felizes estão demasiado ocupadas a ser felizes e a apreciar a vida para perderem tempo a analisar a infelicidade que sentem de vez em quando.
Seja feliz e dê valor à vida."

Tirei daqui: “Sinta-se feliz de novo”, de Richard Carlson, Ed. Pergaminho, 2002
Pintura de Carlos Reys, Portugal (1937-)