04 julho, 2014

"A mulher certa" - Sándor Márai

A vida magoa-nos de tantas maneiras.
Se gosta de boas histórias de amor, este romance foi escrito para si. Se gosta delas com laivos de paixão, desejo, ciúme, ilusão, riqueza, pobreza, mentira, crueldade, solidão e morte, continuo a dizer que este romance foi escrito para si. Se gosta de enredos realistas e inteligentes, de apuro na descrição dos ambientes, de rigorosa caracterização das personagens, repito, este romance foi escrito para si.
Acredite em mim, esta é uma poderosa, surpreendente e inesquecível história de amor, narrada por três vozes e sensibilidades diferentes.
Confuso?
Eu explico: este romance - do mestre das paixões e dos triângulos amorosos, onde se encontram as páginas mais íntimas e arrojadas, as mais sábias, de Sándor Márai - demorou quarenta anos a ser concluído.
Em 1940, foi publicado Az Igazi (A mulher certa), um romance composto por dois monólogos.
Em 1949, o autor adicionou-lhe um terceiro monólogo, escrito durante o seu exílio em Itália.
Em 1980, reescreveu a terceira parte e juntou-lhe um epílogo.
O primeiro monólogo é de Marika. Ela está com uma amiga numa elegante cafetaria de Budapeste, e vê entrar o ex-marido. Relata, então, à amiga, como descobriu que o marido estava entregue de corpo e alma a uma paixão secreta que o consumia e como tentara, em vão, reconquistá-lo.
Tu, olha, aquele homem. Espera, não olhes agora, vira-te para mim, conversemos. Eu não gostaria que reparasse em mim, me visse, nem gostaria que me cumprimentasse… Aquele alto, pálido, de gabardina preta, que fala com a empregada loira e magra. Acabou de embrulhar casca de laranja cristalizada. Interessante, a mim nunca me comprou casca de laranja cristalizada… Já se foi? Diz-me, quando se for…. Se posso dizer-te quem era? Claro que posso, minha querida, não é segredo. Esse homem foi meu marido… há três anos que não falo com ele… Sabes quem era o meu marido? O fenómeno mais raro deste mundo. Era um homem… Sofri muito a seu lado. Mas sei que gostava dele… Talvez algumas paixões sejam mais fortes do que a vida, do que a razão, do que o tempo. Queimam e deixam tudo em cinzas? É possível… E aqui estou sentada contigo, enquanto o meu marido manda embrulhar laranja cristalizada para outra… Para quem? Ora, para outra mulher. Não me agrada pronunciar o seu nome. Com quem casou, a seguir. Não sabias que voltou a casar?
O segundo monólogo é de Péter. Na mesma cidade, uma noite, num bar, ele confessa a um amigo como deixou Marika para se casar com Judit, a mulher que desejava há anos, e como depois a perdeu.
Tu, olha aquela mulher... A loira de chapéu redondo? Não, a alta, num casaco de pele de marta – sim, a morena, a mulher alta, que não traz chapéu. Ajuda-as um homem atarracado, certo?... Aquele é o homem com quem tive esse doloroso e estúpido duelo. Por causa da mulher?... Pois claro, por causa da mulher… Se posso dizer quem é a mulher?... Posso, meu velho. Essa mulher foi minha mulher. Divorciámo-nos há três anos. Logo a seguir ao duelo… Áldozó Judit era o seu nome. Era uma camponesa. Veio com dezasseis anos para servir em casa dos meus pais… A primeira era perfeita. Não posso negar que a amei. Só tinha um pequeno defeito… era burguesa, uma mulher burguesa. Não entendas mal, eu também sou burguês. Vens tu agora dizer-me que sou um homem ressentido. Que alguém me magoou. Talvez aquela mulher, a minha segunda mulher. Ou a primeira. Algo falhou… Estou cheio de cólera. Não confio nas mulheres, no amor, na humanidade… 
O terceiro monólogo é de Judit. De madrugada, numa pequena pensão romana, ela conta ao seu amante como o seu casamento com um homem rico sucumbiu ao ressentimento e à vingança.
O que estás a ver, meu amor? Fotografias?... Sabes que te adoro. Porque és belo. Porque és um artista. Porque és único… Não quero que rias… só porque estou apaixonada por ti… É a velhice… essa ladra e assassina… tenho ainda o direito a amar-te e, como vês, não me faço rogada, devoro a felicidade que me dás… Virá o dia em que não terei direito de te amar, porque serei velha…O ventre flácido, os seios caídos… Não me consoles. Eu sei bem a lição… Verás que é assim… Aprendi que nos devemos ir embora no tempo certo… Queres saber quem me ensinou? Sim, aprendi com esse homem cuja fotografia tens na mão… O que queres saber? Se foi meu marido? Não, tesouro, não foi o meu marido. Meu marido foi o outro, aí, no canto do álbum, com casaco de pele… Os ricos são muito estranhos, meu anjo. Olha, também eu vivi uns tempos nessa espécie de riqueza… Não me envergonhava nada no meio deles, acredita. Nunca me mostrei tímida, nem púdica, e enchi bem a bolsa… Já te disse que não o amava. Houve um tempo em que o amei… em que estava apaixonada, porque não vivia com ele. As duas coisas não se dão juntas, sabias?
Segue-se o epílogo, para mim, desnecessário.
(Seleccionei frases de cada um dos monólogos e juntei-as com reticências.)

Sándor Márai nasceu em 1900, numa pequena cidade húngara, que hoje pertence à Eslováquia. Passou por um período de exílio voluntário na Alemanha e na França durante o regime de Horthy, nos anos 20, até que abandonou definitivamente o seu país em 1948, com a chegada do regime comunista, tendo emigrado para os Estados Unidos. A subsequente proibição da sua obra na Hungria fez cair no esquecimento quem nesse momento era considerado um dos escritores mais importantes da literatura centro-europeia. Foi preciso esperar várias décadas, até à queda do regime comunista, para que o escritor fosse redescoberto no seu país e no mundo inteiro. Sándor Márai suicidou-se em 1989, na Califórnia, poucos meses antes da queda do muro de Berlim.

Bem, está decidido, vou continuar a procurar o deslumbramento nos romances de Sándor Márai. O próximo será "A Irmã".
Você, leia "A mulher certa" munido de um lápis afiado. Vai precisar dele para sublinhar as palavras certas, colocadas nas frases certas. E são muitas.
Nunca se é bastante sábio para dizer por que motivo se juntam um homem e uma mulher, e porque, depois, se separam.
...porque é que na escola não se ensina nada sobre as relações entre homens e mulheres?
Não sei!

A mulher certa, de Sándor Márai
Tradução de Ernesto Rodrigues
Ed. Dom Quixote, 2007
418 págs.

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