29 junho, 2018

Cartas... de amor e dor!

“… sinto saudades do tempo em que as pessoas se correspondiam, trocando cartas, cartas autênticas, em bom papel, ao qual era possível acrescentar uma gota de perfume, ou juntar flores secas, penas coloridas, uma madeixa de cabelo. Sofro uma nostalgia miúda desse tempo em que o carteiro nos trazia as cartas a casa, e da alegria, do susto também, com que as recebíamos, com que as abríamos, escolhíamos as palavras, medindo-lhes o peso, avaliando a luz e o lume que ia nelas, sentindo-lhes a fragrância, porque sabíamos que seriam depois sopesadas, estudadas, cheiradas, saboreadas, e que algumas conseguiriam, eventualmente, escapar à voragem do tempo, para serem relidas muitos anos depois.”
José Eduardo Agualusa, in “O Vendedor de Passados”, Ed. Quetzal, 2017


Este excerto do livro de José Eduardo Agualusa fez-me recuar no tempo e lembrar as duas vezes que escrevi cartas. Cartas de amor e de dor.
Na década de noventa, do século passado, uma ausência prolongada do meu marido em Moçambique, em trabalho, deixou-me perdida. Nem as minhas idas lá de seis em seis meses, nem as vindas dele cá, me recompunham.
Semanalmente, enviava-lhe na mala da empresa uma encomenda e uma carta. Na encomenda inseria jornais (semanários e desportivos) e mimos. Na carta, em forma de diário descrevia a  minha semana, numa escrita que misturava dor, saudade e muito amor.
Uma colega e amiga querida, que semanalmente me acompanhava à empresa onde entregava tudo, dizia como muita graça «essas cartas pingam amor».
Em 1975, “retornei” a Portugal com o pai do filho de 4 meses que trazia dentro de mim.
No aeroporto de Lisboa conheci a minha outra família e na madrugada fria de Março, que enregelou até o vazio da minha alma, rumámos à casa dos meus sogros, onde vivemos até ao nascimento do Miguel.
Na Lisboa dessa época, que eu achei feia, cinzenta, triste, chorei rios de lágrimas de saudade dos meus pais e irmã, que continuaram em Moçambique por mais dois anos.
Um mês depois de chegarmos a Lisboa o marido começou a trabalhar e eu, sozinha, fechava-me no quarto e escrevia para os meus pais cartas sem fim. Em envelopes metia 20-30 páginas carregadas de saudade, molhadas por lágrimas que teimavam em cair, e muita, muita dor. Dor daquela que não se explica mas se sente roendo por dentro. Eu apenas queria abraços: do meu pai (que dava abraços gostosos), da minha mãe (que não sabia abraçar, mas tentava), da minha irmã (que refilava, mas encostava o seu coração ao meu). Se na altura conhecesse a minha amiga S., ela diria «essas carta pingam dor».
Tinha o meu filho um mês, já na casa de nós três as cartas para Moçambique deixaram de levar dentro lágrimas e passaram a levar alegria: muitas fotos do primeiro neto e sobrinho, para que lá longe avós e tia acompanhassem, à semana, o crescimento do pequenino. E logo, logo, passei eu a receber cartas molhadas por lágrimas salgadas.
Muitos anos passaram. Agora, escrevo cartas misteriosas, sem destinatário... em sonhos!
A vida é isto!

(Foto da net.)

26 junho, 2018

À terça - imagens e palavras: "morte"








“Ninguém sabe o que é a morte, mas não faz muita diferença, porque também nunca sabemos o que é a vida.”


Frase de António Lobo Antunes, escritor português (1942-)
(Foto cedida por ANTÓNIO GOMES, do blogue "Existe Sempre um Lugar". Obrigada, amigo!)

22 junho, 2018

Viajando e aprendendo: Índia (2)

Continuando...

No estado de Uttar Pradesh, um dos maiores e mais habitados estados da Índia, banhado pelos grandes rios Yamuna e Ganges, visitámos Agra, a cidade do Taj-Mahal, Khajuraho e Varanasi, a cidade mais antiga do mundo, o local sagrado do Hinduísmo.
Em Agra dormimos duas noites mas tivemos apenas um dia para visitar a cidade. Soube a pouco, mas foi o suficiente para  realizar um sonho: entrar, admirar, fotografar o Taj Mahal,  o majestoso mausoléu que o imperador Shah Jahan mandou construir em memória de Mumtaz Mahal, a sua esposa favorita falecida em 1631, no parto do 14º filho.
Estima-se que 20 000 operários franceses, persas, italianos e turcos trabalharam durante 17 anos na construção do Taj Mahal  - uma miragem, um poema de amor em mármore branco, incrustado com pedras semipreciosas, e uma cúpula "costurada" com fios do mais puro ouro - um dos mais famosos monumentos do mundo, classificado pela UNESCO como Património da Humanidade e desde 2007 uma das Novas Sete Maravilhas do Mundo.
Saímos cedo do hotel para a visita ao Taj Mahal. Envolto em neblina, o famoso mausoléu era ainda mais espectacular. O sol apareceu depois e a emoção que senti quando entrei no magnífico túmulo e percorri os jardins que o ladeiam é inenarrável. 
Destaco a Câmara Tumular; o Biombo filigranado, esculpido num único bloco de mármore; os jardins exteriores; a Fonte de Lótus, com o reflexo do túmulo nas suas águas.
No período da tarde visitámos o Forte de Agra, construído pelo imperador Akkar entre 1565 e 1573. Localizado na margem ocidental do rio Yamuna, as suas imponentes muralhas de arenito vermelho rodeiam um enorme complexo de edifícios palacianos. Jahangiri Mahal, o grande palácio dentro do forte, remonta ao reinado de Akkar.
(Em cada uma das cidades do itinerário fomos acompanhados por simpáticos e competentes guias locais. Já o motorista, andou connosco de Deli a Varanasi.)
À noite, o motorista levou-nos a um teatro local onde assistimos a um belíssimo espectáculo de música e dança. Gostei!
Na manhã do dia seguinte viajámos de comboio de Agra para Jhansi, uma viagem de aproximadamente três horas.  Na estação de Jhansi esperava-nos o motorista "que nos abandonou" na estação de comboios de Agra (um exemplo da pobreza do país), e nos levou, por estrada, para Khajuraho
(Sobre a viagem de comboio, não encontro palavras para descrever o que senti numa carruagem de 1ª classe primitiva, apinhada de gente. Talvez a experiência tivesse piada se viajássemos inseridos num grupo, agora apenas nós dois, com bagagem, foi inacreditável!
Porque fomos nós de comboio? Estradas péssimas a esconder de turistas? Pois eu preferia ter viajado de "montanha russa", desviando de vacas e búfalos, do que de comboio. Sim, porque viajar de comboio na Índia é uma experiência do outro mundo...)
No caminho parámos em Orchha, cidade fundada em 1531 e eleita capital pelos reis de Bundela até 1738, quando foi abandonada. Localizada num ilha rochosa do rio Betwa, Orchha mostra-se agora num conjunto de palácios em ruínas. É lastimável o estado de abandono, degradação e sujidade visível em todo o lado, nomeadamente no Jahangiri Mahal, construído pelo rei Bir Singh Deo de Bundela, que passou ali apenas uma noite. É um palácio imponente, quadrado em arenito vermelho, com 132 divisões espalhadas por vários pisos, um pátio central e subterrâneos. É o único palácio visitável. Eu tentei entrar, mas não consegui passar do pátio. O intenso cheiro a um produto desinfectante (creolina?) incomodava e afugentava.
A viagem continuou para Khajuraho. 
Chegámos ao fim da tarde a mais um hotel de 5 estrelas rodeado de barracas e cães a remexer montes de lixo.  Do quarto, a vista para os cuidados jardins à volta da piscina faziam esquecer, por algumas horas, o que de menos belo tínhamos visto.  
No dia seguinte, acompanhados por mais um guia local visitámos os famosos Templos de Chandela, erguidos nos séculos IX e X pela dinastia Chandela, que na altura dominava a Índia. O magnífico conjunto de templos, famosos pelas suas escultura eróticas, é Património Mundial da Humanidade.
O mais admirável é o Templo de Kandariya Mahadev, que representa o apogeu da arte e arquitectura do norte da Índia.
A seguir ao almoço arrancámos com destino a Varanasi, a mais sagrada das cidades hindus, com um legado religioso e espiritual que remonta a cerca de 3 000 anos. 
Também conhecida por Kashi (Cidade da Luz) ou Benares, Varanasi situa-se na margem oeste do rio Ganges. Nos 90 ghats (escadas na margem do rio), numa extensão de cerca de 6 km), e nas águas sagradas assiste-se a um contínuo ciclo das práticas religiosas hindus. A cremação de cadáveres é feita aqui e ali nos degraus da escadaria e as cinzas são depois deitadas ao rio. 
(Tudo se deita ao rio. Tudo se faz no rio. Todos se banham no rio, animais incluídos.)
 
Chegámos a Varanasi ao fim da tarde e saímos logo para um passeio na companhia do guia local. De rickshaw percorremos as ruas estreitas e apinhadas de gente da cidade, atravessámos mercados e por fim chegámos às margens do rio Ganges para assistir, no rio, dentro de um pequeno barco, à cerimónia "Ganga Aarti" que decorre na escadaria e observar centenas de velas e flores a flutuar no rio, à medida que o sol se põe.
Na manhã do dia seguinte, ainda antes do pequeno almoço, saímos para um passeio de barco pelo rio para contemplar os palácios, a escadaria e os peregrinos a banharem-se nas águas escuras (e sujas...) do Ganges. Assistimos ao nascer do sol e sem quaisquer dúvidas, o passeio pelo Ganges valeu a pena.
(De Varanasi vou lembrar para sempre a imagem real de inúmeros idosos, moribundos, magríssimos, abandonados, deitados por todo o lado. Segundo explicação do guia, são pessoas comuns que  querem exalar o último suspiro na cidade sagrada. Arrepia, não? )
À tarde dissemos adeus ao motorista e partimos de avião para Delhi, de onde no dia seguinte voámos para Goa.
Goa é um pequeno estado na costa oeste da Índia, dividido em dois distritos; Goa Norte e Goa Sul.
Antiga colónia portuguesa anexada pela União Indiana em 1961, os 400 anos de domínio português deixaram marcas profundas na língua, religião, culinária e forma de vestir das suas gentes.
As praias idílicas (que se estendem ao logo de mais de 106 km), o excelente clima, as pitorescas paisagens,  e o povo hospitaleiro, fazem de Goa um dos maiores destinos de férias da Índia.
Aqui, fomos acompanhados por um guia competente, simpático, descendente orgulhoso de portugueses, apreciador de bacalhau, que nos mostrou os grandes palácios coloniais da nobreza que prosperou nos séculos XVIII e XIX. Levou-nos à famosa Velha-Goa (classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO e considerada o coração espiritual do Cristianismo na Índia) para admirarmos a belíssima Basílica do Bom Jesus, venerada por católicos de todo o mundo por guardar os restos mortais de São Francisco Xavier e a grandiosa Sé Catedral, a maior igreja da Ásia, com um altar extraordinário em talha dourada.
No dia seguinte percorremos ruas e locais onde observámos a impressionante herança portuguesa, sempre acompanhados pelo experiente guia que tudo sabia sobre a nossa presença naquele lugar paradisíaco.
Em Goa não há confusão de automóveis, não há sujidade, respira-se ar puro e ouve-se o silêncio: tudo está limpo e ordenado. As ruelas estreitas, com casas pintadas de cores vivas, lembram o Portugal distante. Ali não faltam bares, cafés, restaurantes, mercados e gente que fala português.
O excelente hotel onde ficámos alojados estava a dois passos do areal de uma praia de areia branca e águas calmas mas uma chuva miudinha impediu um banho de mar.
Goa, é um destino turístico a considerar.
Depois de duas noites em Goa voámos para a última etapa da viagem: Mumbai (Bombaim).

Foi curtíssima a estada em Mumbai, uma cidade de enormes e chocantes contrastes: a riqueza ostensiva em viaturas, residências e condomínios ao lado de milhares (ou milhões?) de barracas tapadas com plástico azul, obrigam-nos a engolir em seco vezes sem fim.  
Chegámos de manhã e voámos na madrugada do dia seguinte para Lisboa. O que vimos foi numa visita panorâmica pelo cidade, com um guia local. Destaco o "Dhobi Ghat" uma lavandaria gigante ao ar livre, única no mundo, onde centenas de homens lavam por dia milhares de peças de roupa, a maioria de hotéis locais.
No centro da cidade, mesmo ao lado da lavandaria, de um enorme forno crematório encoberto por árvores frondosas sai em contínuo fumo de uma alta chaminé e dezenas de abutres sobrevoam o local. Não é bonito de ver, não!
Depois da agonia veio a emoção: entrámos na residência-museu de Ghandi, o Pai da Nação. Era ali que Ghandi se instalava quando se deslocava a Mumbai. Até o colchão no chão, onde dormia, ali está.
Continuámos para Malabar Hill e os Jardins Suspensos. Passeámos em frente à Porta da Índia (símbolo de Mumbai) e em tempos porta de entrada na cidade; admirámos o famoso (pelos bons e maus motivos) Hotel Taj Mahl; e "gastámos tempo" na avenida à beira rio, conhecida por "colar da rainha".
Num hotel do aeroporto jantámos, descansámos e aguardámos a hora do regresso a casa.
Foi uma viagem intensa, cansativa, incrível. Apesar de alguns sustos, gostei. 
Recomendo (apesar de tudo)! 
Como sinto que tudo ficou por dizer, "leia" mais nas fotos (muitas) aqui.

19 junho, 2018

À terça - imagens e palavras: "fracasso"

“O fracasso pode ter muitos nomes. Podemos chamá-lo insucesso, falhanço, lacuna, erro, imperfeição. Mais importante do que os nomes, porém, é aprender a interpretar e a trabalhar o quinhão de fracasso que nos cabe viver. Admitir que o fracasso existe em nós faz-nos sofrer, e não pouco. Mas uma coisa que quem já viveu o suficiente sabe por experiência é que, quanto menos investimento fazemos em reconhecê-lo, mais o fracasso, em versão negativa, se infiltra, se agiganta e nos derruba.”


Frase de José Tolentino Mendonça, presbítero, poeta e teólogo português (1965-)
Foto da net.

15 junho, 2018

Viajando e aprendendo: Índia (1)

“A pobreza da Índia atingiu-me como um martelo”, in “Seis Suspeitos”, do indiano Vikas Swarup, pág. 245.

No verão de 2010 viajámos para longe e fomos à descoberta da Índia.
Sendo o sétimo maior país do mundo, logo, impossível de todo conhecer em escassos quinze dias, optámos pelo programa “Índia Clássica”, que nos levou às cidades mais emblemáticas do norte e a  Goa.
Iniciámos a viagem em Nova Deli, e seguiram-se Samode, Jaipur, Agra, Orchha, Khajuraho, Varanasi, Goa e Mumbai.
Não estávamos preparados para encontrar uma das maiores economias do mundo, e o segundo mais populoso país, devastado pela carência.
Não estávamos preparados para encontrar cidades com milhões de habitantes a viver numa pobreza extrema, numa sujeira chocante.
A primeira impressão à chegada a Delhi foi brutal!
Só ali vivem cerca de 22 milhões de habitantes e o caos é a todos os níveis: ruas buliçosas, edifícios apinhados, engarrafamentos intermináveis, barulho ininterrupto de apitos e buzinas, montanhas de lixo, um movimento alucinante de cabras, vacas, búfalos, gente, muita gente. Não há semáforos, não há sinaleiros, não há separadores nas estradas, não há passadeiras para peões. A buzina resolve todas as confusões e os condutores são, não tenho quaisquer dúvidas, os melhores do mundo.
À excepção de Goa, o caos mantém-se em todas as cidades visitadas.
Cidades enormes, com estradas de terra batida, inundadas de lama e sujidade, prédios a ruir, barracas com lonas rasgadas, gente despojada de tudo, a dormir nos passeios, a comer, a lavar-se, a urinar para qualquer canto, a esperar pela morte. Gente que encontra na espiritualidade, nos rituais, na meditação, alimento para atingir a serenidade, a virtude, o conhecimento, a libertação.
Vende-se tudo, em todo o lado, mesmo se ao lado está uma montanha de lixo remexido por cães esqueléticos, cabras, vacas e búfalos.
Mas também vimos subúrbios luxuosos da abastada classe média, carros topo de gama, hotéis espantosos, monumentos fascinantes, museus que guardam cinco milénios de história indiana, jardins bem cuidados, guias competentes, motoristas experientes, gente simpática, homens que com um sorriso descarado nos miram dos pés à cabeça, mulheres lindas com saris coloridos que baixam o rosto quando se cruzam connosco, crianças devidamente fardadas a caminho das escolas, universidades enormes nos sítios mais improváveis.
Que contrastes...
Quando chegávamos ao quarto de hotel a pergunta que fazíamos um ao outro era sempre a mesma: como é possível?
Havia que parar, criar algumas regras de comportamento, aceitar as coisas como eram e deixarmo-nos de comparações com o Ocidente. Só assim poderíamos continuar a viagem.
Foi o que fizemos.

Em Deli visitámos a mesquita Jama Masjid,  a maior da Índia, o Forte Vermelho, imponente edifício da época do Império Munghai, o Forte Ghat, um memorial de Gandhi, a Porta da Índia, o Parlamento, o Palácio Imperial, o Templo da comunidade Sikh.
No caminho para Jaipur parámos para almoçar no maravilhoso Palácio Samode
 Jaipur (cidade Rosa dada a cor rosa escuro dos edifícios) é a capital do Rajasthan.
Cidade fundada por Raja Jai Singh no século XVIII, tem no topo das colinas que a rodeiam Fortes e Palácios encantadores. Há quem lhe chame a cidade do amor. Talvez seja!
Visitámos o Forte de Amber (subimos a colina em cima de um enorme elefante e descemos de automóvel), o Palácio do Maharaja (Palácio da Cidade), o Jantar Mantar, o maior observatório do Mundo, construído em pedra e mármore, entre 1728 e 1734. No  Laxmi Narayan, o Templo de Birla assistimos a um ritual religioso.
A viagem continuou para Agra.
No caminho visitámos a cidade abandonada Fatehpur Sikri, mandada construir pelo rei Akber, no século XVI.
E chegámos à cidade do deslumbrante Taj Mahal, do imponente  Forte de Agra e outras coisas mais.
(Falarei sobre Agra e sobre o restante itinerário desta viagem, na próxima semana.)
Na Índia apanhámos alguns grandes sustos. Um deles, o primeiro, quase nos fez desistir da viagem.
Chegámos a Nova Deli à noite e fomos conduzidos para o hotel integrados num grupo de portugueses. Pensei que seriam nossos colegas de viagem. Enganei-me! Só nós tínhamos escolhido o programa "Índia Clássica".
No dia seguinte visitámos a cidade com um guia  local, num carro conduzido pelo motorista que nos acompanharia no resto da viagem. Nós dois e um motorista, num país desconhecido, fizemos centenas de quilómetros em estradas em péssimo estado de conservação e trânsito caótico. Desistimos? Não! Arriscámos!
Em todas as cidades ficámos alojados em excelentes hotéis de 5 estrelas, por vezes verdadeiras ilhas no meio da maior imundice. Em cada cidade um guia local esperava-nos à entrada do hotel, entrava no "nosso" carro, mostrava-nos da cidade o que podia ser mostrado, levava-nos ao hotel para almoçarmos, voltava à tarde para continuarmos a visita.
A visita da tarde era sempre rápida e cedo chegávamos ao hotel. Até à hora do jantar, ocupávamos o tempo mergulhando na piscina. Saídas diurnas ou  nocturnas sozinhos? Nunca!
As refeições eram nos hotéis. Apenas uma vez almoçámos num restaurante, em Agra. Estranhámos, mas não contestámos. Seria uma refeição diferente. Tão diferente foi que apanhei uma gastroenterite que nada do que eu levara tratou.  Então, apanhei o segundo grande susto da viagem: uma ida, com o guia, a uma farmácia. À porta hesitei «não, antes a gastroenterite!», mas entrei. O velho homem que me olhava com estranheza ouviu o guia e logo despejou de um frasco 3 comprimidos cor-de-rosa na palma da minha mão. Comprimidos milagrosos, digo agora, refeita do susto.
No dia seguinte estava pronta para visitar mais algumas maravilhas e viver experiências estranhas. Como a que originou o terceiro susto: uma viagem de comboio de Agra para Jhansi, apenas os dois, com toda a bagagem. Surreal!
Continua...

(Mais fotos aqui.)

12 junho, 2018

À terça - imagens e palavras: "morte"


"Não usarei a morte para escapar à doença, desde que a doença seja curável. Morrer apenas por causa da dor é admitir a derrota. Mas se sei que a minha condição vai durar para sempre, abandono a vida. Não por causa da dor propriamente dita, mas porque isso me vai tirar as razões para viver. É o homem fraco que morre por causa da dor, mas é o homem tolo que vive em nome da dor."


Frase de Séneca, filósofo, escritor, mestre da retórica e estadista da Roma Antiga (-4/65)
Foto da net.

08 junho, 2018

"O vendedor de passados" - José Eduardo Agualusa

O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.
“NASCI NESTA CASA E CRIEI-ME NELA. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. (...) Eu vejo tudo. Dentro desta casa sou como um pequeno deus noturno. Durante o dia durmo.
A CASAVIVE. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. (…) Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o Sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões.”
Acreditem se quiserem, quem assim fala é Eulálio, uma osga-tigre de verbo fácil, que gosta de rir, de ler, de filosofar.
Eulálio vive em Luanda, em casa de Félix Ventura, um albino angolano, alfarrabista (o viúvo sem filhos que o recolheu, criou e educou era filho e neto de alfarrabistas) e vendedor de passados falsos.
Por muitos considerado traficante de memórias… como outros contrabandeiam cocaína, Félix é procurado por empresários, políticos, fazendeiros, generais, enfim, gente com um presente de sonho, um futuro assegurado mas sem um bom passado, sem ancestrais ilustres, pergaminhos. Então, Félix vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo.
A vida corria-lhe bem até à noite que lhe entrou em casa, sem se anunciar, um misterioso estrangeiro branco, repórter fotográfico de guerra, interessado numa nova identidade «Tive muitos nomes, mas quero esquecê-los a todos. Prefiro que seja você a batizar-me»num passado decente e em documentos nacionais autênticos, para poder fixar-se no país. Pagaria bem por tudo isso.
«Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não sou falsário», conseguiu dizer o atemorizado Félix.
Mas fez! Bilhete de identidade, passaporte, carta de condução, tudo em nome de José Buchmann, natural da Chibia (Província da Huíla), cinquenta e dois anos, fotógrafo profissional. Nota importante: José Buchmann foi avisado por Félix para que nunca fosse a Chibia. Mas um dia foi! E então, numa vertigem, o passado irrompe pelo presente e o impossível começa a acontecer.
E mais não digo!
Nem sobre a tórrida história de amor de José Buchmann; nem sobre a extraordinária história de vida de Félix Ventura; nem sobre a cozinheira Velha Esperança, que se julga imune à morte; nem sobre o ministro maravilhado com a sua nova genealogia, nem sobre o escritor mentiroso por vocação; nem.., nem…nem…
Leia e oiça porque Eulálio, a osga que tudo vê, tudo ouve, tudo analisa, desvenda absolutamente tudo o que se passa em casa do albino fabricante de genealogias de luxo, para a emergente burguesia angolana.
Tem um fim triste o Eulálio? Tem, mas por respeito, silencio.

Leia esta sátira feroz, repleta de humor. Leia e dará umas sonoras gargalhadas.
Se pensa que não é possível escrever sobre temas sérios de forma divertida, está tremendamente errado.
Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros. Palavras sábias, sabem de quem? Da mãe de Eulálio, pois então!
Prosa precisa e belíssima. Vou voltar a Agualusa.

O vendedor de passados (2004), de José Eduardo Agualusa (galardoado com o "Independent Foreign Fiction Prize", 2007)
Ed. Quetzal, 2017
145 págs.

05 junho, 2018

À terça - imagens e palavras: "juventude"















“É bem verdade que nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe.”


Frase de José Saramago, escritor português (1922-2010), in “A Caverna”, Ed. Caminho, 2000
Prémio Nobel de Literatura, 1998
Foto da net.

01 junho, 2018

"Não: devagar." - Fernando Pessoa


Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar…
Sim, devagar…
Quero pensar no que quer dizer
Esse devagar…
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima…

Talvez isso tudo…
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar…
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo…
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?
Poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa (1883-1935)

Sabia que (2):
"1893 - Em Julho, Joaquim de Seabra Pessoa (pai de Fernando Pessoa) morre tuberculoso em Lisboa. (...)
1894 - Em Janeiro morre o seu irmão Jorge. Neste período Fernando Pessoa cria o seu primeiro heterónimo, o Chevalier de Pas.
1895 - A sua primeira poesia, a quadra À minha querida mamã, tem a data de 26 de Julho.
Em Dezembro a mãe casa por procuração, na Igreja de São Mamede em Lisboa, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, na colónia inglesa do Natal.
1896 - Em Janeiro parte com sua mãe e um tio-avô com destino a Durban. (...)
1897 - Faz a instrução primária na escola de freiras irlandesas da West Street (alcança a equivalência de cinco anos lectivos em apenas três). No mesmo Instituto faz a sua primeira comunhão."
("Fernando Pessoa, uma fotobiografia", de Maria José de Lancastre).

Não sabia?  Eu também não!
O que importa é que agora sabemos.
Prometo partilhar mais informações sobre a vida do poeta do desassossego.

(Foto cedida por ANTÓNIO GOMES, do blogue "Existe Sempre um Lugar". Obrigada, amigo!)