28 março, 2014

"O Conselheiro" - Cormac McCarthy

Não gosto de me enganar acerca da natureza humana. (WESTRAY)
Depois de ver três dos seus romances (Belos Cavalos, Este País Não É Para Velhos e A Estrada), adaptados ao cinema, e um argumento original rejeitado por Hollywood, Cormac McCarthy escreveu novo argumento: “The Counselor – A Screenplay”, a história de um advogado (conselheiro) ambicioso que aposta tudo o que tem num negócio milionário de tráfico de cocaína. A sua esperança é que se trate apenas de um a transação única e que, depois, possa endireitar a vida ao lado da sua noive. Mas, pelo contrário, vê-se envolvido num jogo brutalmente perigoso – um jogo que ameaça destruir tudo e todos os que ama. Desta vez convenceu Hollywood e o guião foi levado ao grande ecrã, pela mão do realizador Ridley Scott.
Mas... nem a vasta experiência do realizador, nem o prestígio do argumentista, nem o elenco de estrelas - Michael Fassbender (Conselheiro), Brad Pitt (Westray), Javier Bardem (Reiner), Penélope Cruz (Laura), Cameron Diaz (Malkina), Rubén Blades (Jefe), Bruno Ganz (negociante de diamantes), conseguiram salvar o filme do fracasso.
Eu não “vi “ a história, mas, sendo fã incondicional de McCarthy, não resisti a lê-la em forma de guião. Gostei da experiência? Bem, no início não foi fácil…estranhei… estranhei… mas valeu pelas pérolas, perdão, diamantes, que encontrei e guardei. Partilho, no meu rol, apenas alguns desses diamantes, para não desvendar muito do enredo.
Não desejo pintar o mundo com cores mais sombrias do que aquelas que ele ostenta, mas à medida que o mundo dá lugar às trevas, torna-se cada vez mais difícil iludir a perceção de que o mundo é, afinal, a nossa pessoa. É uma coisa que nós próprios criámos, nem mais, nem menos. E, quando deixarmos de existir, o mesmo sucederá com o mundo. Haverá outros mundos. É claro. (JEFE)
A “marca” de McCarthy está por todo o lado: história hipnotizante, drama, suspense, crime, violência, humor negro, traição, fragilidade humana, sentido da vida e da morte, pessimismo, linguagem desbragada, cenas ousadas.
A ousadia lê-se (e vê-se, e ouve-se) logo no primeiro plano: apartamento do conselheiro, quarto quase em completa escuridão, duas pessoas na cama (o conselheiro e Laura, a namorada), linguagem desbragada, sexo.
Só depois aparece o genérico.
Segue-se uma cena no escritório de um negociante de diamantes (Bruno Ganz), onde o conselheiro vai comprar um diamante para a namorada. O diálogo entre os dois é um dos mais brilhantes do guião. Eis um excerto:
NEGOCIANTE - Quando os deuses eram mais humanos, os homens eram mais divinos. As próprias pedras preciosas têm a sua perspetival das coisas. Talvez não sejam tão mudas como julgamos… Cá está uma pedra preciosa que serve de aviso.
CONSELHEIRO - Um diamante para avisar os incautos.
NEGOCIANTE - Sem dúvida. Porque não? Embora eu ache que todos os diamantes são um aviso aos incautos… Realçar a beleza da nossa amada é reconhecer a um tempo a sua fragilidade e a nobreza dessa fragilidade. Não há nada mais nobre do que anunciarmos às trevas que não nos deixaremos amesquinhar pela brevidade das nossas vidas. Que não deixaremos que isso nos reduza à insignificância. Deixe-me mostrar-lhe. Já vai ver.
Para mim, são de MALKINA as melhores falas do guião. Todas soberbas. Eis algumas:
. Só os nossos segredos dão a medida do mal que temos cá dentro.
. A ganância leva-nos sempre à beira do abismo, não é verdade?
. Quando o próprio mundo é a fonte do nosso sofrimento, então somos livres de exercer vingança sobre qualquer parcela dele, mesmo a mais insignificante. Acho que talvez seja preciso ser uma mulher para entender isso. E nunca sabemos a medida da nossa dor até se nos oferecer a oportunidade de nos vingarmos. Só então percebemos do que somos capazes.
. Gostaríamos de lançar um véu sobre tanto sangue, tanto terror. As coisas que nos trouxeram aqui. É a nossa falta de nervo que nos leva a querer fechar os olhos para não vermos esse horror, mas, ao fazê-lo, convertemo-lo no nosso destino.
Será que devia ter ido “ver a história" em vez de a ler?
 
PS. Mr. Cormac McCarthy, quero pedir-lhe que desista de escrever guiões, volte à escrita de romances, no seu estilo inconfundível, e deixe que outros se entretenham a adaptá-los ao cinema.
Não vou desistir de si, mas o próximo guião... não vou comprar, não...
 
O Conselheiro, de Cormac McCarthy
Tradução de Paulo Faria
Ed. Relógio d’Água, 2013
155 págs.

07 março, 2014

"Metamorfose" - Franz Kafka

Já passaram muitos anos sobre a minha primeira leitura desta obra de Kafka. Por isso, achei que era altura de voltar a esta surpreendente parábola sobre a alienação humana, sobre o absurdo da vida, para a divulgar no meu rol.
Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de insecto.
É assim que começa a mais conhecida e estudada obra de Kafka, publicada em 1915, escrita em apenas três semanas, tinha ele 29 anos.
Dificilmente encontramos na literatura um primeiro parágrafo com a força deste. Concorda?
Vamos à história.
Gregor Samsa é solteiro,caixeiro-viajante e vive com os pais e uma irmã, de dezassete anos.
Não gosta da sua profissão, muito menos da companhia onde trabalha, e ainda menos do patrão, avarento e insensível, mas cumpre rigorosamente as suas obrigações laborais, para sustentar a família e pagar as dívidas do pai.
É apenas isso que o move: trabalhar arduamente, para garantir o sustento e a tranquilidade da família.
Certo dia, Gregor acordou às seis e meia da manhã. Não ouviu tocar o despertador às quatro horas, nem apanhou o comboio das cinco, como fazia diariamente.
Entra em pânico. Tem de apanhar o comboio das sete horas. Tem de chegar rapidamente à companhia. Tem de evitar a cólera do patrão. Tem de conservar o emprego. Tem de sustentar a família. Tem de manter a tranquilidade do lar. Tem de se levantar da cama… mas não consegue.
Não consegue, porque durante o sono se transformou num enorme insecto com numerosas perninhas, em perpétua vibração, sobre as quais não exercia controlo algum.
Através da porta, fechada à chave, os pais gritam para que ele se levante e vá apanhar o comboio
O gerente da companhia vai lá a casa saber o motivo do atraso, e pergunta: Que lhe aconteceu? O senhor fecha-se no quarto … aflige desnecessariamente os seus pais e descuida os seus deveres profissionais de uma maneira inaudita!
Depois de muitas tentativas, Gregor levanta-se da cama, mas cai no chão e fere a cabeça.
O barulho da queda foi ouvido do outro lado e o pai manda chamar um serralheiro e um médico.
Gregor decide abrir a porta para saber que impressão causaria àquela gente, que tão imperiosamente exigia a sua presença. Apoiado nos móveis, chega à porta, roda a chave na fechadura, e…
… o gerente, fora de si, foge; a mãe, desfalecida, grita por socorro; o pai urra como um selvagem, enxota-o com uma bengala, obriga-o a voltar para o quarto e fecha a porta à chave, com violência.
O serralheiro deixou de ser necessário. O médico foi esquecido
Grete, a irmã, foi vê-lo apenas na manhã seguinte, mas foi tomada de incontrolável terror e fugiu apressadamente. Volta, para empurrar o prato com comida para dentro do quarto. Por vezes entra, e Gregor, para ela não se assustar, esconde-se atrás dos móveis. A criada também entra, para limpar o quarto. Os pais, esses não entram.
O mundo de Gregor desmorona, dentro de quatro paredes: despedido da companhia (sendo ele um empregado exemplar), abandonado e desprezado pela família (que o vê apenas como um insecto repugnante), ferido e cada vez mais fraco.
Através da porta, ele escuta a rotina da família, e pensa, embevecido: Que vida tranquila tem levado a minha família…
Mas, chega o dia em que a família tem de ganhar o seu sustento.
E chega também o dia, em que a família começa a pensar num meio de se livrar daquela “coisa” repugnante, que só lhes dá trabalho e despesa.
Precisamos de livrar-nos dessa coisa! … É a única saída.
O que se segue?
Um fim trágico, claro!
Leia para saber. Aliás, não ler esta história é imperdoável.
Acredite, que não mais esquecerá a transformação física de Gregor (que ele nunca percebeu mas lhe possibilitou a fuga à opressão profissional e familiar) e a transformação comportamental da sua família.

Metamorfose, de Franz Kafka
Ed. Livros do Brasil, 2007
Tradução de Breno Silveira
108 págs.

7º - Você sabe em que livro se esconde este “primeiro parágrafo"?

Cheirei-o antes de o ver.
Estava uma multidão de gente ali parada, no passeio e na rua, a maioria polícias, alguns a falar ao telemóvel, outros a fumar, outros a olhar, outros a desviar o olhar. Do lado de onde eu vinha, tapavam-me a vista, e a princípio pensei que com tantas fardas devia ser um acidente de trânsito ou talvez uma razia da polícia aos imigrantes ilegais. Depois dei pelo cheiro.”
 
 
Resposta do 6º “Primeiro parágrafo”:
Em “A vida nova”, de Orhan Pamuk, ed. Presença, 2006