27 abril, 2013

"As intermitências da morte" - José Saramago

… de deus e da morte não se têm contado senão histórias, e esta não é mais que uma delas.
Na verdade, esta é uma história desconcertante, que tem como personagem principal: a Morte. Sim, a morte, enquanto inevitabilidade humana.
Não se assustem, nem ponham o livro de lado, que a história é surpreendente. Leiam-na e escutem-na com atenção, pois há uma “melodia” em cada palavra. O tema é negro, mas a mestria de Saramago faz milagres e a história passa de macabra a divertidíssima. Mas atenção, também é seria, muito séria.
… desde a entrada do novo ano, mais precisamente desde as zero horas deste dia um de janeiro em que estamos, não havia constância de se ter dado em todo o país um só falecimento que fosse… O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme….
Saramago parte de uma hipótese improvável - num único país (será Portugal?!) de um dia para o outro as pessoas deixam de morrer – e traça um retrato amargurado / humorado dos problemas causados por tão estranho fenómeno.
A história pode dividir-se em três partes:
Na primeira parte, o povo de um país com cerca de dez milhões de habitantes, passa de perplexo a eufórico, ao perceber que a morte fizera greve e ninguém mais morreria. Sem pensar nas complicações de tão estranho facto, o povo celebra nas ruas e por todo o país a bandeira nacional aparece pendurada em varandas e janelas. Era impossível resistir a um tal fervor patriótico…
Mas…as consequências do estranho fenómeno surgem de imediato: os doentes ficam em eterno sofrimento; as famílias veem-se obrigadas a levar os seus moribundos ao outro lado da fronteira, onde a morte ainda trabalha; os lares de idosos e os hospitais “rebentam pelas costuras”; as companhias de seguros entram em colapso, devido ao cancelamento maciço dos seguros de vida; as agências funerárias limitam-se a fazer funerais de cães, gatos e canários; a igreja sai à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume e avisa o governo: Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja…
E o que faz o governo? Vê-se metido até aos gorgomilos numa camisa-de-onze varas.
Na segunda parte, depois de sete meses de trégua da morte, a população continua agitada, o poder confuso, a autoridade diluída.
Eis senão, quando, inesperadamente, a morte faz chegar à televisão uma mensagem anunciando que a partir da meia-noite daquele mesmo dia se vai voltar a morrer, agora com uma diferença, a morte será anunciada, por carta, com uma semana de antecedência, para que a pessoa possa fazer testamento e dizer adeus à família …
Na terceira parte, a morte, que em todos os seus traços atributos e características, era, inconfundivelmente, uma mulher, não resiste a conhecer pessoalmente o destinatário de uma carta já por três vezes devolvida à procedência. Diz a ficha, que o destinatário é um homem de quarenta e nove anos, estado civil desconhecido, violoncelista de profissão.
Uma força alheia, misteriosa, incompreensível, parecia opor-se à morte da pessoa.
Intrigada a morte decide ir entregar-lhe a carta em mão.
Vê o violoncelista pela primeira vez, no palco do teatro onde toca.
…e a carta não é entregue.
Nos dias seguintes, espreita-o no conforto do lar.
… e a carta continua a não ser entregue.
É então, que a morte se veste de mulher, sai à rua, se apaixona e, no dia seguinte ninguém morreu.
Fabuloso!
A morte está zangada. É a altura de lhe deitarmos a língua de fora.
 
As intermitências da morte, de José Saramago
Ed. Caminho, 2005
214 págs.

19 abril, 2013

"A incrível e triste história da cândida Eréndira e da sua avó desalmada" - Gabriel García Márquez

Voltei aos contos.
Voltei à escrita encantatória de Gabriel García Márquez.
Este pequeno livrinho é composto por sete contos.
Sete contos de um realismo mágico, escritos por um escritor extraordinário, que utiliza a prosa como pura poesia.
Sete histórias sobre o quotidiano de personagens inesquecíveis, alguns já nossos conhecidos de outras obras do autor.
Apenas um conto é anterior à fase de plena maturidade de GGM, alcançada com “Cem anos de solidão”, a história mágica que publicou em 1967 e que deslumbrou milhões de leitores por todo o mundo.
Eis os sete
. Um senhor muito velho com umas asas enormes (1968)
A história do anjo cativo, procurado pelos doentes mais infelizes das Caraíbas: uma pobre mulher que desde menina contava os baques do coração e já não lhe chegavam os números, um jamaicano que não podia dormir atormentado pelo ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer adormecido as coisas que fizera acordado…
. O mar do tempo perdido (1961)
. O afogado mais bonito do mundo (1968)
. Morte constante para além do amor (1970)
Faltavam – lhe seis meses e onze dias para morrer quando o senhor Onésimo Sánchez encontrou a mulher da sua vida…Fora os médicos, ninguém sabia que estava condenado a prazo fixo, pois tinha decidido padecer a sós o seu segredo, sem qualquer mudança de vida, e não por soberba, mas por pudor.
. A última viagem do navio fantasma (1968)
Agora vão ver quem sou, disse para si mesmo, com o seu novo vozeirão de homem.
Começa assim esta história, contada em sete páginas, num único parágrafo.Ufa!
. Blacamán o bom, vendedor de milagres (1968)
. A incrível e triste história da cândida Eréndira e da sua avó desalmada (1972)
Eréndira tem catorze anos e vive com a avó. Uma noite, cansada do trabalho árduo do dia, recolhe ao seu quarto, poisa o candelabro na mesinha de cabeceira, adormece rapidamente e… ao amanhecer, gotas de chuva grossa apagavam as últimas brasas do incêndio que destruiu a casa da avó.
Minha pobre filha… a vida não te vai chegar para me pagares este percalço.
Começou a pagá-lo nesse mesmo dia… quando a avó a "ofereceu" ao tendeiro da aldeia, um viúvo esquálido…
E, quando na aldeia já todos os homens tinham pago pelo amor de Eréndira, avó e neta partem para terras distantes.
Tinham decorrido seis meses desde o incêndio quando a avó conseguiu ter uma visão completa do negócio.
- Se as coisas continuarem assim – disse ela a Eréndira -, pagas-me a dívida dentro de oito anos, sete meses e onze dias.
Tudo muda quando aparece Ulisses, filho de um contrabandista de laranjas. Sim, laranjas perfumadas e... pesadas. Mudará?
Como acaba esta história de amor, perversão, inocência e maldade?
Eu sei...
 
A incrível e triste história da cândida Eréndira e da sua avó desalmada, de Gabriel García Márquez
Quetzal Editores, 1992
Tradução de Pedro Tamen
135 págs.

13 abril, 2013

"A música da fome" - J.M.G. le Clézio

Não escolhemos a nossa história. Esta apresenta-se-nos sem que a procuremos, e não podemos, não devemos rejeitá-la.
É muito autobiográfica esta história, sobre a decadência de uma família oriunda da ilha Maurícia, exilada em França.
O autor não o esconde e avisa que escreveu esta história em memória de uma jovem que, involuntariamente, foi heroína aos vinte anos. Essa jovem é Ethel, alter-ego da mãe do escritor.
Ethel é a única filha de um casal de exilados em França. O pai, Alexandre Brun, era jovem quando deixou a ilha Maurícia. Em Paris, ocupa os dias a delapidar a herança, em negócios pouco recomendáveis.
Na infância, o único prazer de Ethel é a companhia do excêntrico tio-avô Samuel Soliman. Tudo o que sabe do mundo, foi ele que lhe contou. Tudo o que conhece de Paris, foi ele que lhe mostrou. Pouco antes de Ethel completar doze anos, no fim de 1934, Monsieur Soliman adoeceu e morreu, e o pequeno mundo de Ethel começou a desmoronar.
Quando eu já cá não estiver, terás de prestar muita atenção, dizia-lhe o avô, preocupado.
Na adolescência, Ethel descobre a amizade, pela mão de Xénia, uma colega de escola pobre e misteriosa, filha de exilados russos. Tornam-se amigas inseparáveis. Mas, se de desabafo em desabafo a amizade entre as duas cresce, de desilusão em desilusão acaba por morrer.
Da vida familiar, Ethel recorda as discussões entre os pais e os almoços que ofereciam, no primeiro domingo de cada mês, a visitas, amigos e parentes. Nessas reuniões, onde a música se misturava com riso e as conversas fluíam, começa a ouvir-se, repetidamente, o nome de Hitler. Avizinha-se o declínio da família Brun: a ruína, a guerra, a fome.
A vida é um saco muito pesado, diz Justine, a mãe de Ethel.
Aos dezoito anos, Ethel assume o controlo dos negócios da família. Depois de pagar as dívidas, resta-lhe a ruína e a angústia do futuro. O seu mundo fica reduzido à água de um canal.
 
É excelente, o retrato do quotidiano desta família, na alegre Paris dos anos 20 e 30, depois em Nice e de novo em Paris, já libertada pelos aliados.
É excelente, o retrato da sociedade francesa durante a ocupação nazi.
É excelente, o retrato da inconsciência dos cidadãos e dos políticos pelo bolchevismo, pelo  anti-semitismo e pelo sofrimento do povo.
Os rios lavam a História, é sabido.
Recomendo.
 
A música da forme, de J.M.G. Le Clézio (Prémio Nobel de Literatura, 2008)
Tradução de Isabel St. Aubyn
Dom Quixote, 2009
188 págs.

05 abril, 2013

"Terra dos homens" - Antoine de Saint-Exupéry

… só há uma verdadeira riqueza: a das relações humanas.
Quando se fala do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry vem imediatamente à lembrança o pequenino-ENORME livrinho “O Principezinho”, que todos já lemos. Não duvido!
Acontece, que Saint-Exupéry nos deixou outros livros, outras histórias mágicas.
“Terra dos homens” é uma história sobre pilotos e aviões, escrita em pleno deserto do Sara, onde o escritor-aviador foi forçado a aterrar em consequência de uma tempestade.
Meu Sara, meu Sara, eis-te encantado, inteirinho, por uma fiandeira de lã!
Sim, porque Saint-Exupéry para além da escrita tinha um fascínio por máquinas voadoras e, depois de cumprir o serviço militar na força aérea, em 1920, tornou-se aviador. O aviador que entre um voo e outro escrevia histórias encantadas.
Certo que o avião é uma máquina – mas que instrumento de análise! Tal instrumento fez-nos descobrir a verdadeira face da Terra.
“Terra dos homens” é o testemunho comovente das experiências do autor sobre os medos, as angústias, as alegrias, os triunfos, os acidentes, a perda, o progresso da aviação.
Uma história comovente, de experiências feita, sobre relações humanas, amizade, solidariedade e muita solidão.
Uma história sobre o Homem, o mundo, a vida e a morte. Sobre o Sara.
E os bens da terra escapam-se-nos por entre os dedos como a areia fina do deserto.
Em 31 de Julho de 1944, o avião que Saint-Exupéry tripulava desapareceu na proximidade da Córsega. Segundo declarações oficiais, é provável que tenha sido destruído por aviões de reconhecimento alemães.
Só o espírito, quando sopra sobre a argila, pode criar o Homem.
Gostei e recomendo.
Lê-se de um só fôlego e... sublinha-se, sublinha-se, sublinha-se...
 
Terra dos homens, de Antoine de Saint-Exupéry
Tradução de Nuno Lobo Salgueiro
Ed. Vega, 1995
131 págs.

02 abril, 2013

Desafio nº 16 – Lê-se e não se esquece, este romance que aborda o tema da vulnerabilidade do homem perante o absurdo? Quem o escreveu é Nobel, sim senhor!

Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: «Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.» Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
….
Quando estava lá em casa a mãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias de asilo, chorava muitas vezes. Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no último ano, quase não a fui visitar. E também porque a visita me tomava o domingo – sem contar com o esforço para ir até ao autocarro, comprar os bilhetes e fazer duas horas de viagem.
 
Ajuda se eu disser que é um clássico da literatura moderna?
Ajuda se eu disser que é muito estranho o personagem/narrador desta história, mas não conseguimos deixar de gostar dele?
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Resposta do Desafio nº 15:
Pois é, mesmo sabendo que todos acertaram (será?) aqui vai a resposta: é “O crime do padre Amaro”, do grande Eça de Queirós, publicado em 1875.
Parabéns para quem acertou.