28 outubro, 2011

"Emprestadar" livros...

Tinha eu 12 anos, a Nina tornou-se a minha melhor amiga. Éramos da mesma idade. Andávamos na mesma escola. Vivíamos no mesmo prédio. Éramos inseparáveis.
A Iolanda, irmã da Nina, tinha mais dez anos que nós. Naquela altura dez anos de diferença, fazia mesmo uma grande diferença. A Iolanda já trabalhava, nós estudávamos. A Iolanda já namorava, nós devorávamos cinema, coleccionávamos cadernetas de cromos, líamos fotonovelas e ouvíamos vezes sem conta as canções meladas da época.
Teria eu dezoito anos, a Iolanda, agora mãe solteira de um lindo menino loiro, adoptado por todos os vizinhos, deixou a casa dos pais e foi viver sozinha para um apartamento pequeno, lindo e perto de nós.
Adorava ir a casa dela. Era arrumada, confortável, bem decorada e… tinha muitos livros.
Naquela altura eu já tinha largado as fotonovelas (ou fui obrigada?!) e lia fogosamente tudo o que me aparecia à frente. Recordo que encomendava livros a livrarias da Metrópole e que os recebia muitos dias depois pelo correio. Era uma alegria abrir aqueles embrulhos - previamente vistoriados pela polícia política - tirar os livros com o maior cuidado, cheirá-los, desfolhá-los, assiná-los e devorá-los, literalmente, mas com alguma calma porque a próxima remessa tardaria a chegar.
Ora bem, voltando à Iolanda, recordo o dia em que sentada num sofá da sua sala, olhando, remirando e mexendo nos seus livros, lhe pedi para me emprestar "A Cidade e as Serras", de Eça de Queirós, e ela respondeu sem qualquer hesitação.
- Não! Podes ler aqui esse livro e todos os outros, levares é que não.
Emudeci estupefacta. Poisei o livro e saí.
Durante muito tempo não fui a casa dela. Acabei por esquecer, e continuámos amigas. Não deixei que um livro nos separasse, mas não voltei a pedir-lhe nenhum. Nem li nada lá em casa.
A partir de dada altura os livros tornaram-se os meus amigos silenciosos e disponíveis e foi quando entendi a atitude da Iolanda.
Passei a assiná-los, a anotar o mês e o ano da leitura, a sublinhar frases, a fazer anotações nas margens, enfim, deixaram de ser do autor e passaram a ser meus.
Ainda não consigo dizer NÃO quando me pedem para emprestar um livro, e isso deixa-me furiosa.
Certamente que na estante da Iolanda não faltam livros. Na minha faltam vários, que emprestei e nunca mais recebi de volta.
Sei o nome de todos eles, e são bastantes. Sei com quem estão. Sei também que nunca os conseguirei pedir de volta. Falta-me a determinação da Iolanda.
Há uns anos atrás a minha filha emprestou, sem eu saber, um livro meu a um amigo dela. Quando dei pela falta d’ “O Perfume”, de Patrick Süskind, fiz uma cena danada e exigi que ela pedisse a devolução urgente do livro. Passaram-se meses, passaram-se anos e ela não aparecia com o livro. Perdi-o para sempre, pensava eu.
Ela, tal como eu, lamentavelmente, não conseguia pedir o livro ao amigo e, para me calar, comprou-me um livro novo.
Calei-me, mas voltei a lembrar-lhe que não emprestasse livros dela e muito menos meus.
Hoje, olho para “O Perfume” e não o reconheço como meu. Falta-lhe tudo lá dentro.
Recordo o meu livro e assusta-me pensar que ele está dentro de outra casa que não a minha, a ser manuseado por outras mãos que não as minhas, a ser lido segundo o fio condutor das minhas anotações.
Dói muito, “emprestadar” livros!

4 comentários:

  1. Teresa,

    Parabéns, bonita crónica. Foi escrita com o coração.
    É curioso, tenho a minha estante no quarto e quase todos os dias visto-me a olhar pala ela e a lembrar-me das passagens de alguns livros.
    Por vezes, brinco com a minha namorada e digo-lhe que "quero o divórcio", mas com uma condição: que não leve o Memorial do Convento de Saramago da minha estante, pois o livro é dela. Como ela nunca aceita, continuamos a namorar, isto já dura à mais de cinco anos ;-)
    Relativamente ao empréstimo dos livros até gosto de o fazer, para depois falar com essa pessoa sobre o que leu. Mas aponto todos os livros que empresto, e a partir de algum tempo, geralmente dois, três meses, passo a perguntar por ele todas as vezes que estou com essa pessoa. Se vejo que já não esta interessado no livro, ou já leu a obra, digo-lhe que tenho que fazer um artigo para o jornal sobre o autor e que preciso do livro, até agora tem resultado e ainda não perdi nenhum.

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  2. Obrigada Tiago,
    Gostei da sua estratégia para recuperar livros emprestados - ainda não descobri a minha.
    Já agora, nunca se afasta uma namorada que lê "O Memorial do Convento"...

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  3. Oh Teresa, eu compreendo. Juro que sim, mas não consigo "sentir" assim. O "meu" livro , O salto mortal da Marion Zimmer Bradley, aquele que comprei no dia em que entrei para a faculdade e que me fez companhia nos primeiros dias de "adulta" (vá, tinha 17 anos e estava feliz por estar novamente com a mochila às costas) e que reli centenas de vezes, ficou para sempre na casa de uma amiga. Tive que comprar novamente um exemplar para mim. Custou-me porque era um livro especial. Mas não me esqueço de um que emprestei, que esteve com uma amiga quando ela teve um acidente de carro, que andou com ela no comboio e que voltou, com a capa meio rasgada. Ela queria comprar-me um novo, não deixei e ainda bem. Olho para aquele livro e lembro-me dela. Mesmo quando se perdem os livros têm história e eu gosto de partilhar os livros, de os emprestar. E se algum não volta... bem, não gosto, é certo, mas é um pequeno preço a pagar pela alegria de partilhar algo de que gosto tanto.
    Boas leituras

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  4. Olá Patricia,
    Gostei muito do teu comentário.
    Fez-me pensar.
    Sabes que eu sinto uma alegria enorme em partilhar com os outros coisas de que gosto - viagens, restaurantes, filmes, cozinhados, dicas, etc. Nunca escondo um preço, uma marca, um lugar. Livros é um pouco mais difícil, talvez porque os assino, os sublinho, os anoto, não sei mas é esquisito.
    Vou contar-te uma pequena história: depois de visitar Viena dizia sem cessar "se eu pudesse levava todos os portugueses a visitar aquela cidade", mas era a sério, fazia-me impressão eu ter ficado tão extraordinariamente impressionada com a grandiosidade e beleza da cidade e poucos conterrâneos meus poderem fazê-lo.
    O mesmo se passa em relação a muitas outras coisas. Infelizmente, tenho o querer mas não o poder da concretização.
    Emprestar livros é sem dúvida mais fácil.
    Vou pensar, seriamente, no assunto.
    Obrigada!

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