08 junho, 2018

"O vendedor de passados" - José Eduardo Agualusa

O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.
“NASCI NESTA CASA E CRIEI-ME NELA. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. (...) Eu vejo tudo. Dentro desta casa sou como um pequeno deus noturno. Durante o dia durmo.
A CASAVIVE. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. (…) Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o Sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões.”
Acreditem se quiserem, quem assim fala é Eulálio, uma osga-tigre de verbo fácil, que gosta de rir, de ler, de filosofar.
Eulálio vive em Luanda, em casa de Félix Ventura, um albino angolano, alfarrabista (o viúvo sem filhos que o recolheu, criou e educou era filho e neto de alfarrabistas) e vendedor de passados falsos.
Por muitos considerado traficante de memórias… como outros contrabandeiam cocaína, Félix é procurado por empresários, políticos, fazendeiros, generais, enfim, gente com um presente de sonho, um futuro assegurado mas sem um bom passado, sem ancestrais ilustres, pergaminhos. Então, Félix vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo.
A vida corria-lhe bem até à noite que lhe entrou em casa, sem se anunciar, um misterioso estrangeiro branco, repórter fotográfico de guerra, interessado numa nova identidade «Tive muitos nomes, mas quero esquecê-los a todos. Prefiro que seja você a batizar-me»num passado decente e em documentos nacionais autênticos, para poder fixar-se no país. Pagaria bem por tudo isso.
«Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não sou falsário», conseguiu dizer o atemorizado Félix.
Mas fez! Bilhete de identidade, passaporte, carta de condução, tudo em nome de José Buchmann, natural da Chibia (Província da Huíla), cinquenta e dois anos, fotógrafo profissional. Nota importante: José Buchmann foi avisado por Félix para que nunca fosse a Chibia. Mas um dia foi! E então, numa vertigem, o passado irrompe pelo presente e o impossível começa a acontecer.
E mais não digo!
Nem sobre a tórrida história de amor de José Buchmann; nem sobre a extraordinária história de vida de Félix Ventura; nem sobre a cozinheira Velha Esperança, que se julga imune à morte; nem sobre o ministro maravilhado com a sua nova genealogia, nem sobre o escritor mentiroso por vocação; nem.., nem…nem…
Leia e oiça porque Eulálio, a osga que tudo vê, tudo ouve, tudo analisa, desvenda absolutamente tudo o que se passa em casa do albino fabricante de genealogias de luxo, para a emergente burguesia angolana.
Tem um fim triste o Eulálio? Tem, mas por respeito, silencio.

Leia esta sátira feroz, repleta de humor. Leia e dará umas sonoras gargalhadas.
Se pensa que não é possível escrever sobre temas sérios de forma divertida, está tremendamente errado.
Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros. Palavras sábias, sabem de quem? Da mãe de Eulálio, pois então!
Prosa precisa e belíssima. Vou voltar a Agualusa.

O vendedor de passados (2004), de José Eduardo Agualusa (galardoado com o "Independent Foreign Fiction Prize", 2007)
Ed. Quetzal, 2017
145 págs.

9 comentários:

  1. Passou por aqui num Rota das Letras e deixou muito boa impressão.
    Beijo, bfds

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  2. Este ainda não li!
    Levo a sugestão ... bj

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  3. Ah! Seria ótimo termos um "fazedor de passado" para nossos políticos aqueles lá de Brasilia, sem moral ou caráter. Iam se encher de orgulho e pompa, os miseráveis... kkkk!
    Vou ver se acho esse livro deve ser hilariante!
    Escolha brilhante.
    Beijinhos, Léah

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  4. Olá, Teresa

    Tenho-o e já o li, mas vou relê-lo agora que o encontrei aqui no teu "Rol de Leituras". Um rol muito interessante que ganha vida de cada vez que nos trazes pedaços das tuas leituras e as tuas impressões.

    Bom fim-de-semana, minha amiga.

    Beijinhos

    Olinda

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  5. Teresa
    Eu amo ler e tenho
    lido bastante nesse ano
    de 2018.
    Vou por esse na minha lista.
    Bjins querida.
    CatiahoAlc.

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  6. Gostei muito desse livro. Foi recomendado por uma professora de Literatura que tive na faculdade.

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  7. A CASAVIVE. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. (…) Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o Sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões.”

    Também tenho uma interação com minha casa, em pensamentos parece que dialogamos, é o carinho, a proteção, os momentos felizes que nos apegamos. Por vezes parecem -elas- um ser vivo que está fincada no chão para nos abraçar.
    Gosto desse autor.
    Beijo, amiga!

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  8. Obrigada pela sugestão de leitura, Teresa.
    Vai ficar na minha lista dos não lidos!!

    Beijinho, boa semana

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  9. Gosto muito de ler José Eduardo Agualusa. É um escritor que nos faz rir e nos emociona. Ainda não li "O vendedor de passados". Está na fila de espera…
    Uma boa semana, Teresa.
    Um beijo.

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