O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.
“NASCI NESTA CASA E CRIEI-ME NELA. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. (...) Eu vejo tudo. Dentro desta casa sou como um pequeno deus noturno. Durante o dia durmo.
A CASAVIVE. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. (…) Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o Sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões.”
Acreditem se quiserem, quem assim fala é Eulálio, uma osga-tigre de verbo fácil, que gosta de rir, de ler, de filosofar.
Eulálio vive em Luanda, em casa de Félix Ventura, um albino angolano, alfarrabista (o viúvo sem filhos que o recolheu, criou e educou era filho e neto de alfarrabistas) e vendedor de passados falsos.
Por muitos considerado traficante de memórias… como outros contrabandeiam cocaína, Félix é procurado por empresários, políticos, fazendeiros, generais, enfim, gente com um presente de sonho, um futuro assegurado mas sem um bom passado, sem ancestrais ilustres, pergaminhos. Então, Félix vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo.
A vida corria-lhe bem até à noite que lhe entrou em casa, sem se anunciar, um misterioso estrangeiro branco, repórter fotográfico de guerra, interessado numa nova identidade «Tive muitos nomes, mas quero esquecê-los a todos. Prefiro que seja você a batizar-me»; num passado decente e em documentos nacionais autênticos, para poder fixar-se no país. Pagaria bem por tudo isso.
«Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não sou falsário», conseguiu dizer o atemorizado Félix.
Mas fez! Bilhete de identidade, passaporte, carta de condução, tudo em nome de José Buchmann, natural da Chibia (Província da Huíla), cinquenta e dois anos, fotógrafo profissional. Nota importante: José Buchmann foi avisado por Félix para que nunca fosse a Chibia. Mas um dia foi! E então, numa vertigem, o passado irrompe pelo presente e o impossível começa a acontecer.
E mais não digo!
Nem sobre a tórrida história de amor de José Buchmann; nem sobre a extraordinária história de vida de Félix Ventura; nem sobre a cozinheira Velha Esperança, que se julga imune à morte; nem sobre o ministro maravilhado com a sua nova genealogia, nem sobre o escritor mentiroso por vocação; nem.., nem…nem…
Leia e oiça porque Eulálio, a osga que tudo vê, tudo ouve, tudo analisa, desvenda absolutamente tudo o que se passa em casa do albino fabricante de genealogias de luxo, para a emergente burguesia angolana.
Tem um fim triste o Eulálio? Tem, mas por respeito, silencio.
Leia esta sátira feroz, repleta de humor. Leia e dará umas sonoras gargalhadas.
Se pensa que não é possível escrever sobre temas sérios de forma divertida, está tremendamente errado.
Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros. Palavras sábias, sabem de quem? Da mãe de Eulálio, pois então!
Prosa precisa e belíssima. Vou voltar a Agualusa.
O vendedor de passados (2004), de José Eduardo Agualusa (galardoado com o "Independent Foreign Fiction Prize", 2007)
Ed. Quetzal, 2017
145 págs.
“NASCI NESTA CASA E CRIEI-ME NELA. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. (...) Eu vejo tudo. Dentro desta casa sou como um pequeno deus noturno. Durante o dia durmo.
A CASAVIVE. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. (…) Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o Sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões.”
Acreditem se quiserem, quem assim fala é Eulálio, uma osga-tigre de verbo fácil, que gosta de rir, de ler, de filosofar.
Eulálio vive em Luanda, em casa de Félix Ventura, um albino angolano, alfarrabista (o viúvo sem filhos que o recolheu, criou e educou era filho e neto de alfarrabistas) e vendedor de passados falsos.
Por muitos considerado traficante de memórias… como outros contrabandeiam cocaína, Félix é procurado por empresários, políticos, fazendeiros, generais, enfim, gente com um presente de sonho, um futuro assegurado mas sem um bom passado, sem ancestrais ilustres, pergaminhos. Então, Félix vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo.
A vida corria-lhe bem até à noite que lhe entrou em casa, sem se anunciar, um misterioso estrangeiro branco, repórter fotográfico de guerra, interessado numa nova identidade «Tive muitos nomes, mas quero esquecê-los a todos. Prefiro que seja você a batizar-me»; num passado decente e em documentos nacionais autênticos, para poder fixar-se no país. Pagaria bem por tudo isso.
«Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não sou falsário», conseguiu dizer o atemorizado Félix.
Mas fez! Bilhete de identidade, passaporte, carta de condução, tudo em nome de José Buchmann, natural da Chibia (Província da Huíla), cinquenta e dois anos, fotógrafo profissional. Nota importante: José Buchmann foi avisado por Félix para que nunca fosse a Chibia. Mas um dia foi! E então, numa vertigem, o passado irrompe pelo presente e o impossível começa a acontecer.
E mais não digo!
Nem sobre a tórrida história de amor de José Buchmann; nem sobre a extraordinária história de vida de Félix Ventura; nem sobre a cozinheira Velha Esperança, que se julga imune à morte; nem sobre o ministro maravilhado com a sua nova genealogia, nem sobre o escritor mentiroso por vocação; nem.., nem…nem…
Leia e oiça porque Eulálio, a osga que tudo vê, tudo ouve, tudo analisa, desvenda absolutamente tudo o que se passa em casa do albino fabricante de genealogias de luxo, para a emergente burguesia angolana.
Tem um fim triste o Eulálio? Tem, mas por respeito, silencio.
Leia esta sátira feroz, repleta de humor. Leia e dará umas sonoras gargalhadas.
Se pensa que não é possível escrever sobre temas sérios de forma divertida, está tremendamente errado.
Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros. Palavras sábias, sabem de quem? Da mãe de Eulálio, pois então!
Prosa precisa e belíssima. Vou voltar a Agualusa.
O vendedor de passados (2004), de José Eduardo Agualusa (galardoado com o "Independent Foreign Fiction Prize", 2007)
Ed. Quetzal, 2017
145 págs.
Passou por aqui num Rota das Letras e deixou muito boa impressão.
ResponderEliminarBeijo, bfds
Este ainda não li!
ResponderEliminarLevo a sugestão ... bj
Ah! Seria ótimo termos um "fazedor de passado" para nossos políticos aqueles lá de Brasilia, sem moral ou caráter. Iam se encher de orgulho e pompa, os miseráveis... kkkk!
ResponderEliminarVou ver se acho esse livro deve ser hilariante!
Escolha brilhante.
Beijinhos, Léah
Olá, Teresa
ResponderEliminarTenho-o e já o li, mas vou relê-lo agora que o encontrei aqui no teu "Rol de Leituras". Um rol muito interessante que ganha vida de cada vez que nos trazes pedaços das tuas leituras e as tuas impressões.
Bom fim-de-semana, minha amiga.
Beijinhos
Olinda
Teresa
ResponderEliminarEu amo ler e tenho
lido bastante nesse ano
de 2018.
Vou por esse na minha lista.
Bjins querida.
CatiahoAlc.
Gostei muito desse livro. Foi recomendado por uma professora de Literatura que tive na faculdade.
ResponderEliminarA CASAVIVE. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. (…) Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o Sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões.”
ResponderEliminarTambém tenho uma interação com minha casa, em pensamentos parece que dialogamos, é o carinho, a proteção, os momentos felizes que nos apegamos. Por vezes parecem -elas- um ser vivo que está fincada no chão para nos abraçar.
Gosto desse autor.
Beijo, amiga!
Obrigada pela sugestão de leitura, Teresa.
ResponderEliminarVai ficar na minha lista dos não lidos!!
Beijinho, boa semana
Gosto muito de ler José Eduardo Agualusa. É um escritor que nos faz rir e nos emociona. Ainda não li "O vendedor de passados". Está na fila de espera…
ResponderEliminarUma boa semana, Teresa.
Um beijo.