“… sinto saudades do tempo em que as pessoas se correspondiam, trocando cartas, cartas autênticas, em bom papel, ao qual era possível acrescentar uma gota de perfume, ou juntar flores secas, penas coloridas, uma madeixa de cabelo. Sofro uma nostalgia miúda desse tempo em que o carteiro nos trazia as cartas a casa, e da alegria, do susto também, com que as recebíamos, com que as abríamos, escolhíamos as palavras, medindo-lhes o peso, avaliando a luz e o lume que ia nelas, sentindo-lhes a fragrância, porque sabíamos que seriam depois sopesadas, estudadas, cheiradas, saboreadas, e que algumas conseguiriam, eventualmente, escapar à voragem do tempo, para serem relidas muitos anos depois.”
José Eduardo Agualusa, in “O Vendedor de Passados”, Ed. Quetzal, 2017
Este excerto do livro de José Eduardo Agualusa fez-me recuar no tempo e lembrar as duas vezes que escrevi cartas. Cartas de amor e de dor.
Na década de noventa, do século passado, uma ausência prolongada do meu marido em Moçambique, em trabalho, deixou-me perdida. Nem as minhas idas lá de seis em seis meses, nem as vindas dele cá, me recompunham.
Semanalmente, enviava-lhe na mala da empresa uma encomenda e uma carta. Na encomenda inseria jornais (semanários e desportivos) e mimos. Na carta, em forma de diário descrevia a minha semana, numa escrita que misturava dor, saudade e muito amor.
Uma colega e amiga querida, que semanalmente me acompanhava à empresa onde entregava tudo, dizia como muita graça «essas cartas pingam amor».
Em 1975, “retornei” a Portugal com o pai do filho de 4 meses que trazia dentro de mim.
No aeroporto de Lisboa conheci a minha outra família e na madrugada fria de Março, que enregelou até o vazio da minha alma, rumámos à casa dos meus sogros, onde vivemos até ao nascimento do Miguel.
Na Lisboa dessa época, que eu achei feia, cinzenta, triste, chorei rios de lágrimas de saudade dos meus pais e irmã, que continuaram em Moçambique por mais dois anos.
Um mês depois de chegarmos a Lisboa o marido começou a trabalhar e eu, sozinha, fechava-me no quarto e escrevia para os meus pais cartas sem fim. Em envelopes metia 20-30 páginas carregadas de saudade, molhadas por lágrimas que teimavam em cair, e muita, muita dor. Dor daquela que não se explica mas se sente roendo por dentro. Eu apenas queria abraços: do meu pai (que dava abraços gostosos), da minha mãe (que não sabia abraçar, mas tentava), da minha irmã (que refilava, mas encostava o seu coração ao meu). Se na altura conhecesse a minha amiga S., ela diria «essas carta pingam dor».
Tinha o meu filho um mês, já na casa de nós três as cartas para Moçambique deixaram de levar dentro lágrimas e passaram a levar alegria: muitas fotos do primeiro neto e sobrinho, para que lá longe avós e tia acompanhassem, à semana, o crescimento do pequenino. E logo, logo, passei eu a receber cartas molhadas por lágrimas salgadas.
Muitos anos passaram. Agora, escrevo cartas misteriosas, sem destinatário... em sonhos!
A vida é isto!
(Foto da net.)
Que lindo texto e as cartas de amor eram sempre tão esperadas...Os carteiros eram figuras adoradas por nós. Hoje tudo mudou, tudo rápido... Pena! bjs, chica
ResponderEliminarAmiga, maravilhosa essa sua crônica, recheada de saudades, um pouco de tristeza e dor, como você diz. Vejo através dessas cartas que você mantinha, o que são raízes familiares, um núcleo que as vezes entra em colapso, pelas próprias brigas de família, mas que existe o amor do sangue. Senti suas dores, sim, na imaginação, 'e um joelho ralado ou qualquer dor física dói bem menos que um coração partido'. Não há quem não se coloque frente às emoções e não participe das dores do mundo. E essas são as dores do mundo. O sofrimento da separação, uma gravidez longe dos nossos pais, do marido. Algo novo e meio temeroso para uma mulher. Mas vi que você sobreviveu e se fortaleceu.
ResponderEliminarGostei imensamente de ler isso; gostei imensamente de ver você escrevendo, contando coisas do nosso cotidiano, de nossas vidas. Um pouco de identificação em certas partes sempre vamos encontrar. Eu encontrei.
Um grande beijo, meu carinho pra uma menina de garra.
Teresa,
ResponderEliminarEu amor escrever e ler cartas;
Também tenho historias
sobre o assunto.
Que maravilhosa postagem!
E que
o mês de julho nos seja
favorável.
Bjins
CatiahoAlc.
Pois é, Teresa, aí está uma cronista a revelar-se. Uma crônica que prende a atenção do seu início ao fim, numa conversa feita com o leitor como se este estivesse à sua frente, ao ouvir histórias tristes contadas pela cronista nas cartas que enviava ao seu marido e à sua família. Não faz restrição nenhuma ao contar sobre as tristezas que passou num período que Portugal se distanciava de Moçambique, que separava várias almas, a tua, de teu marido e familiares. Uma crônica que dá gosto de ser lida.
ResponderEliminarParabéns, Teresa.
Boa semana, beijo,
Pedro
Bom dia,
ResponderEliminarCartas de amor
Quem as não tem
Cartas de amor
Pedaços de dor
Sentidas de alguém
Gostei de ler a sua historia de vida que lhe foi marcante, não escolhemos a nossa historia, ela faz-se naturalmente, certamente que os seus netos vão ficar mais orgulhosos da avó quando tiverem conhecimento da sua linda historia.
Feliz Semana,
AG
Gostei de ler o seu texto. Imagino o que terá escrito nessas suas cartas de amo e de dor e depois de alegria… Eu também escrevi muitas…
ResponderEliminarAgora, minha Amiga, escreva essas sem destinatário. Dará um bom livro…
Uma boa semana.
Um beijo.
Um belo texto. Cartas de amor sempre eram marcantes, às vezes continham dor, muito amor e saudades, e, às vezes perfumes. As cartas sempre eram muito esperadas. Acredito que sempre vai existir, mesmo que os correios fechem, ainda vai ter alguém enviando cartas. Tenho uma sobrinha de 15 anos que tem toda tecnologia a sua disposição e volta e meia me escreve cartas. Adoro escrever e receber cartas. Uma sensação difícil de explicar quando recebemos cartas de quem a gente ama.
ResponderEliminarUma boa semana, e um beijo no coração.
Excelente mês de julho.