"Tudo o que escrevo é para a Elsa, mas em especial este livro, uma vez que, nele, o seu coração, a sua sensibilidade e inteligência são celebrados e explorados de forma notória, ainda que forçosamente esotérica. A minha dívida para com ela, na arte e na vida, cresce, por mais que eu tente contrabalançar."
(Para Elsa, a mulher.)
Em África, quer-se sempre mais, parece-me.
As pessoas tornam-se ávidas.
Sou antropóloga e tenho um passatempo relacionado com isso, que é tentar encaixar as peças que me permitem compreender o mundo verdadeiro e tentar viver nele.
A voz “ que ouvimos” é de uma americana, de quem não sabemos o nome. Sabemos apenas que é solteira, robusta, com propensão para a violência (quando alguém me toca sem eu dar autorização), leitora compulsiva, excêntrica, que detesta melodramas, está sexualmente desperta, tem trinta e dois anos de idade à data dos factos que expõe cronologicamente neste longo, inteligente, intenso, irónico e bem humorado romance.
Factos ocorridos na década de oitenta, no Botsuana, país africano que escolheu (uma de tantas outras escolhas...) para preparar uma tese sobre antropologia nutricional para demonstrar que a fertilidade nas chamadas “populações residentes em regiões remotas” oscila consoante a estação, porque uma grande parte do que essas populações remotas comem depende do que conseguem encontrar quando vão recolher alimentos, o que devia afetar a fertilidade.
Depois de dezoito meses praticamente sozinha no mato, desanimada por ver a tese a ir por “água abaixo” desiste e retira-se para a capital... sentia-me sexualmente desperta e não há lugar no mundo como Gabarone para uma mulher branca, livre e solta...
Sem planos, com a vida académica em "banho-maria", com um historial sexual que era a encarnação da banalidade, começa por se “distrair” atraindo atenções masculinas da colónia branca, cuja vida gira à volta de muitas festas, muita bebida e muito sexo.
É sem pudor que fala sobre três amantes - não teve muitos pois selecciona-os rigidamente - três homens muito diferentes, estranhos mas especiais, três relações falhadas: Giles, fotógrafo britânico; Martin Wade, um musicólogo homofóbico sul-africano; Z, um espião vaidoso, que sofre de escoliose, com quem tem uma relação praticamente sem sexo, mas com muitas massagens: dominei as costas dele.
Depois de Z é Nelson Denoon, que “entra” na sua vida.
Desde os tempos da faculdade que ela deseja conhecer aquele homem inteligente, atraente, misterioso, considerado o “suprassumo” em áreas como economia, antropologia, antropologia económica e ciências políticas.
Encontra-o num evento em Gabarone, fala com ele, apaixona-se, entra em euforia - quando o conheci a sensação foi mesmo a de um edifício a cair para cima de mim.
Dennon é o intelectual carismático fundador de Tsau, uma aldeia comunitária para mulheres e dirigida por mulheres – mulheres indigentes de todo o Botsuana - num lugar remoto do deserto do Kalahari. Mesmo sabendo que Tsau é um projecto fechado onde não entram visitantes não convidados, ela atravessa sozinha o deserto para voltar a ver Denoon.
Chega a Tsau desnutrida e exausta.
As mulheres da aldeia tratam da corajosa “viajante perdida”, que durante o dia finge não conhecer Denoon mas com quem tem à noite encontros privados. Os dias passam, ela recupera, e as mulheres acabam por aceitá-la como uma habitante provisória da aldeia. Então, de privados os encontros com Denoon passam a públicos e logo iniciam um longo e complexo ritual de acasalamento.
E fico por aqui, para deixar que seja você a descobrir o verdadeiro significado do título deste romance - “Acasalamento” (Mating, no título original).
E a encontrar uma grande personagem feminina – forte personalidade, inteligente, determinada, destemida, afectuosa, alegre, sensual – que busca incessantemente um amor perfeito num lugar perfeito, mesmo sabendo que o amor é cansativo. Andar atrás de alguém é cansativo.
E a conhecer o Botsuana, um país do interior sul árido do continente africano.
Não é fácil escrever sobre este primeiro romance (1991) de Norman Rush.
Escrever sobre o que nos conta uma mulher que pensa sobre tudo, analisa tudo, experimenta tudo, compara tudo, anota tudo, questiona tudo... não é mesmo nada, nada fácil.
A sua voz é tão audível, tão verdadeira e nua e crua, que incomoda. Incómodo atenuado por tiradas de humor subtil que nos acalentam da primeira à última página. E são 592. Talvez demasiadas. O relato sobre o dia-a-dia em Tsau, por exemplo, estende-se por cerca de 400 páginas. Demasiadas e, por vezes, um tudo-nada massudas.
Faço minhas as palavras da grande protagonista-narradora: a vida não deve ser mais dolorosa do que tem de ser.
Apesar de tudo... leia!
Acasalamento, de Norman Rush
Tradução de Tânia Ganho
Ed. Quetzal, 2015
592 págs.
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