Certas relações harmoniosas criam-se e duram graças a um sistema complexo de pequenas inverdades, de renúncias, uma espécie de bailado cúmplice de gestos e posturas, tudo resumido no nunca assaz citado provérbio, ou sentença, que muito melhor lhe assenta esta designação, Tu que sabes e eu que sei, cala-te tu, que eu me calarei.
Os primeiros capítulos deste livro de Saramago são difíceis de compreender. Que raio de enredo é este que entrelaça o passado com o presente? Questionamo-nos diversas vezes.
Sem resposta, apetece largar o livro e esquecer de vez o revisor Raimundo Silva.
Não faça isso. Continue a ler e rapidamente vai entender que num só livro estão contadas duas histórias, daí a dificuldade inicial. A partir daí o deleite será total.
É isso possível? Sim, com Saramago tudo é possível.
A história começa com Raimundo Silva, solteiro, com mais de cinquenta anos, revisor de profissão, a rever um tratado de história com quatrocentas e trinta e sete páginas, intitulado “História do Cerco de Lisboa” – corria o ano de 1147 quando os portugueses, ajudados por cruzados, tomaram a cidade aos mouros.
No final da revisão, lê vezes sem conta a linha que afirma que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa e eis que, pela primeira vez em tantos anos de profissão, infringe o código deontológico dos revisores, ao introduzir deliberadamente no texto um NÃO que altera toda a verdade histórica.
Com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à pagina, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa.
Depois do livro editado e do erro descoberto, Raimundo é convocado para uma reunião na editora. Querem saber o que o levou a tomar tão estranha atitude (uma perturbação momentânea, diz ele), exigem que peça desculpas ao autor da história (com quem tem relações cordiais) e apresentam-lhe Maria Sara, a nova responsável pelos revisores da editora.
A partir daí a vida calma e desinteressante de Raimundo vai mudar.
Diz-nos o narrador, que a sua liberdade começou e acabou naquele preciso instante em que escreveu a palavra não, de que a partir daí uma nova fatalidade igualmente imperiosa se havia posto em movimento, e que nada mais lhe resta agora que tentar compreender o que...
Posteriormente, Maria Sara entrega-lhe o único volume da “História do Cerco de Lisboa” que não tem errata e propõe que ele reescreva a história considerando a recusa dos cruzados em ajudar os portugueses.
É assim que começa a ser escrita, pelo revisor Raimundo Silva, a segunda história deste livro – a conquista de Lisboa pelos portugueses sem a ajuda dos cruzados. Nesta sua versão dos factos históricos, Raimundo dá destaque à história de amor do soldado Mogueime pela barregã Ouroana, durante o cerco e a tomada de Lisboa.
Simultaneamente à escrita do amor ficcional, Raimundo “faz o cerco” a Maria Sara e apaixona-se perdidamente. Vai viver com ela uma história de amor bem real.
Confuso?
Não, pois estamos a ler Saramago.
Agora um aparte; neste livro Saramago usa e abusa de provérbios. Reparem bem como aparecem seguidinhos:
Candeia que vai adiante alumia duas vezes, contrariavam os segundos, O primeiro milho é dos pardais, rematavam irónicos os terceiros, O último a rir é aquele que rirá melhor.
Só mesmo ele…
Fabuloso!
História do cerco de Lisboa, de José Saramago
Caminho, 1989
348 págs.
Este é dos que tenho na estante por ler e que me suscita bastante curiosidade. Sei que tenho de o ler quando a altura for propícia, pois para ler Saramago gosto de estar em pleno para lhe dedicar toda a minha atenção e afeição. ;)
ResponderEliminarConcordo contigo, Saramago arrebata toda a nossa atenção.
EliminarEu já decidi, em Junho vou reler mais um livro de Saramago. Ainda não decidi qual. Aceito sugestões.
Este romance é muito interessante. Lê que irás gostar.
Bjs.
Ainda não li todas as suas obras, por isso ainda não estou nesse ponto de releitura, como tu estás, Teresa. ;)
EliminarQualquer um dos que já referiste aqui podia ser uma boa sugestão, mas para não ser uma repetição, que tal voltares a "O Ano da Morte de Ricardo Reis" ou "Ensaio Sobre a Cegueira"? Também gostei muito de "Todos os Nomes" e "O Homem Duplicado", apesar deste último ter-me sabido a pouco, tudo por culpa de "O Duplo" de Dostoiévski.
Boas re(leituras)!
Obrigada pelas sugestões. A próxima releitura de Saramago será "Ensaio sobre a lucidez". Conheces?
EliminarJá decidi que não vou reler "Ensaio sobre a cegueira". Isto porque já o li, claro, depois porque o vi no cinema e de seguida na TV. É "cegueira" a mais, não concordas?
Bjs. e bom fim-de-semana.
Comecei a ler este livro à uns anos atrás e lembro-me que só li os primeiros capítulos. Como não me estava a entusiasmar desisti. Pelos vistos fiz mal. Hei-de dar-lhe uma segunda oportunidade.
ResponderEliminarFizeste mal, Landa. Volta a ele e "delicia-te" com a escrita do nosso Nobel.
EliminarEste é um daqueles livros que não prendem de imediato, temos que lhe dar tempo...
Bjs.
Ainda não li este livro, mas já está na minha estante...
ResponderEliminarBoa Tiago, em frente com a leitura do seu (nosso) Nobel.
EliminarBom fim-de-semana com óptimas leituras (tenho espreitado o seu blog e "confiro"...).
Já o li :-)
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