Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheias nas lezírias.
Assim começa esta narrativa sobre os últimos nove meses de vida do médico Ricardo Reis, o heterónimo mais conhecido de Fernando Pessoa.
Na sua biografia consta que nasceu no Porto, em 1887 e nada é dito sobre o ano da sua morte. Saramago decide, então, criar a sua versão da história, entrelaçando factos oficiais com factos imaginados, e pôr um ponto final na vida do médico monárquico. Ricardo Reis morrerá em 1936, ano do início do longo tormento português.
Sou o ano de mil novecentos e trinta e seis, venham ser felizes comigo.
Sou o ano de mil novecentos e trinta e seis, venham ser felizes comigo.
Foi em 1919 que Ricardo Reis fugiu para o Brasil como exilado político. Dezasseis anos depois voltou a fugir, desta vez da ditadura de Vargas e regressou a Portugal. Chegou a Lisboa em Dezembro de 1935, precisamente um mês após a morte do grande amigo e mestre Fernando Pessoa.
Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções…
Em Lisboa, Ricardo Reis, homem grisalho e seco de carnes, começou por se instalar no famoso hotel Bragança, num quarto com vista para o rio. Por agora o hotel bastará, lugar neutro, sem compromissos, de trânsito e vida suspensa. Mais tarde alugou um apartamento, no Alto de Santa Catarina. Procura privacidade e deseja despistar a polícia que insiste em persegui-lo.
Sem consultório para exercer a profissão, ocupa o tempo a dormir, a ler, a caminhar pelas ruas da cidade, a entrar e a sair de restaurantes, bares e casas de pasto onde escuta, observa e testemunha a afirmação do fascismo na sociedade portuguesa, o futuro de Espanha a braços com uma guerra civil, a ascensão do nazismo na Europa.
O que pede ele à vida? Nada!
Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir.
No hotel conheceu as duas mulheres da sua vida: Lídia, a criada, uma mulher feita e bem feita, que lhe ensinará a arte do amor e Macenda, uma jovem pura e doce de Coimbra, com vinte e três anos, que busca nos hospitais de Lisboa cura para uma mão paralisada.
A vida, qualquer vida, cria os seus próprios laços, diferentes de uma para outra…
Foi, também, no hotel, que na noite da passagem do ano reencontrou o mestre Fernando Pessoa, depois da longa ausência.
A partir desse primeiro encontro veem-se com regularidade no hotel, na rua, no apartamento alugado e têm longas e curiosas conversas sobre as encruzilhadas da vida, o amor, a solidão, a morte, sobre o país de Salazar, sobre o mundo.
Diga-me só uma coisa, é como poeta que eu finjo, ou como homem, O seu caso, Reis amigo, não tem remédio, você, simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo, e isso já nada tem que ver com o homem e com o poeta.
Diga-me só uma coisa, é como poeta que eu finjo, ou como homem, O seu caso, Reis amigo, não tem remédio, você, simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo, e isso já nada tem que ver com o homem e com o poeta.
Gostam de conversar, divagar, interrogar.
Até à noite em que Fernando Pessoa comunica: Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim.
Até à noite em que Fernando Pessoa comunica: Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim.
Fernando Pessoa parte. Sem qualquer hesitação, Ricardo Reis acompanha-o.
A vida é um desacerto de sortes…
Gostei de me perder no mundo das metáforas do nosso Nobel.
Sorte!
O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago
Ed. Caminho, 1984
415 págs.
O enigma semântico...
ResponderEliminar"...coelheiras e galinheiros, olhando-os reflectiu Ricardo Reis no enigma semântico de ter dado coelho coelheira e galinha galinheiro, cada género transitando para o seu contrário, ou oposto, ou complementar, segundo ponto de vista e o humor da ocasião."
Uma excelente obra para assinalar os 90 anos do nascimento de Saramago.
ResponderEliminarEste livro é mesmo maravilhoso é o meu segundo livro preferido do autor.