13 março, 2020

"Um copo de cólera" - Raduan Nassar

Debaixo do chuveiro eu deixava suas mãos escorregarem pelo meu corpo, e suas mãos eram inesgotáveis, e corriam perscrutadoras com muita espuma, e elas iam e vinham incansavelmente, e nossos corpos molhados vez e outra se colavam …
Um copo de cólera”, escrito em 1970 e publicado em 1978 (em plena ditadura militar brasileira, momento de privação de liberdade de expressão e política), o segundo dos três livros do escritor de «obra curta» reconhecido pela crítica brasileira e internacional, é uma coreografia erótica e feroz, um combate verbal e carnal, um fogo violento e dulcíssimo, uma tremenda novela protagonizada - entre arranhões e lambidinhas - por um casal de amantes que se resguarda no anonimato: um homem de meia-idade, uma jovem jornalista.
Amam-se e odeiam-se, em igual medida; une-os a inteligência e a fúria; separa-os fortes convicções políticas e sociológicas. As diferenças etárias e sociais são o excitante da relação.
(Ora vamos lá desvendar o mínimo dos mínimos duma história de amor que não é para ser contada mas antes devorada... sofregamente!)
... eu já estava bem enxaguado quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela minha pele d'água..
Numa manhã depois de uma noite deleitosa, um pretexto insignificante – um «rombo» na cerca da fazenda onde o homem vivia isolado - lança os amantes numa discussão violenta e cruel, uma desordem cheia de sexo, política e filosofia, um duelo verbal com insultos vitriólicos, um copo de cólera em ebulição, um jogo de poder em que o objectivo derradeiro parece ser a aniquilação do outro. Ele chama-lhe «pilantra, naninca, trepadeirinha, femeazinha emancipada, jornalistinha de merda, filha-do-cacete, titica de tico-tico…»; Ela chama-lhe «fascistão, biscateiro graduado, reacionário, arrogante, monstro, sacana…»
TUDO é relatado pelos amantes em sete capítulos curtos, que enchem pouco mais de uma centena de páginas de prosa arrebatadora, quase sem pontos finais.
A chegada (“E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando no gramado, veio me abrir o portão (…) subimos juntos a escada pro terraço…”;
Na cama 
O levantar 
O banho 
O café da manhã
O esporro (o bate-boca, a tempestade de insultos que leva à agressão, ocupa dois terços da novela);
A Chegada ("E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto (…) a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera…”)
Ele é o narrador dos primeiros seis capítulos. Ela do sétimo, ao voltar (sim, porque ela volta!) no dia seguinte, bem cedo, tomada por uma «virulenta, súbita e insuspeitada vertigem de ternura».
Personagens secundárias: o casal de caseiros (dona Mariana e seu Antônio) e Bingo (o irado vira-latas).
... eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos para que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo.
Diz ele: «vá pôr a boca lá na tua imprensa, vá lá pregar tuas lições, denunciar a repressão, ensinar o que é justo e o que é injusto, vá lá derramar a tua gota na enxurrada de palavras, desperdice o papel do teu jornal, mas não meta a fuça nas folhas do meu ligustro»
Diz ela: «compreende-se, senhor, sou bem capaz de avaliar os teus temores… tanto recato, tanta segurança reclamada (…) ergue logo um muro, constrói uma fortaleza (…) isso me leva a pensar que dogmatismo, caricatura e deboche são coisas que muitas vezes andam juntas, e que os privilegiados como você, fantasiados de povo, me parecem em geral como travesti de carnaval»

No início estranhei (o que é isto?!), depois devorei (numa avidez inusitada) uma história irónica, erótica e feroz (repito-me, eu sei), vivida numa sociedade «rasgada» -  muitíssimo bem contada… escrita... imaginada... sentida... Eu sei lá!
Leia também!

Um como de cólera, de Raduan Nassar
Companhia das Letras, 2016
116 págs.

14 comentários:

  1. Muito instigante tua resenha aqui,pela amostrinha parece mesmo bom!Fica a dica! beijos, lindo dia!

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  2. Li o livro de Raduan Nassar "Um copo de cólera". Gostei muito. Mas o melhor dele é o livro "Lavoura arcaica" que me encheu as medidas. Sempre atenta ao que se vai publicando, minha Amiga Teresa.
    Um grande beijo.

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    1. "Lavoura arcaica" está também aqui no Rol. É sim, extraordinário! Um dos melhores romance que eu li.
      Beijo querida amiga. Protege-te!

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  3. Bom dia:- Não li nenhum livro da obra desse autor. Pela resenha, acredito, serem todos livros muito interessantes de ler. Quem sabe se um dia não lerei um ou mais desses livros.
    .
    Deixando cumprimentos poéticos.

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  4. brigas e ternuras de amantes não é bem a minha praia. Mas a prosa parece boa. Esse senhor escreveu mais dois livros. Talvez tente um dos outros dois:).

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  5. Oi Teresa! Pareceu bem interessante para viajar no tempo dos ocorridos, na História e compreensão daquele momento na sociedade. Fico imaginando hoje o mesmo e penso que não seria possível isso acontecer, estamos o tempo todo conectados com o que o outro fala...ia dar ruim essa polarização íntima, acho que não chegaria na cama para saber se rolaria ou não.
    Adorei, abraço!

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  6. Oi, querida Teresa, escolha perfeita, temos os 3 livros dele aqui em casa.

    Um Copo de Cólera, a 5ª edição
    Lavoura Arcaica, 3ª edição.
    Menina a Caminho, 2ª edição

    Os dois primeiros são romances e 'Menina A Caminho' são contos que reuniu nos anos 60 e 70. Gostei muito. Um escritor de peso.
    O que foi lamentável foi sua retirada da literatura logo em seguida à sua magnífica estréia. Todos são da Companhia das Letras.

    Beijo, amadinha, um bom fim de semana.
    (Seguiu correio).

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  7. Por aqui respiro por guelras
    Só duvido de um/a pombo/a correio
    com anilha não identificada
    que insiste em não recolhar
    há hora dos pássaros

    Bj

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  8. Grata pela sugestão.

    Por aqui leio «Os Leões de Sicília» e o Afonsinho uma edição comemorativa do Harry Potter que tenho em sorteio no blog.

    Beijinhos,
    Vanessa Casais
    https://primeirolimao.blogspot.com/

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    1. Bem-vinda ao meu Rol, Vanessa!
      Pois eu releio "As neves de Kilimanjaro", de Ernest Hemingway. Neve há pouca, mas tourada... há demais!!!
      Deu-me para isto, nestes dias de reclusão forçada.
      Beijo, boa semana.

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  9. Uma boa companhia para estes dias de reclusão.
    Beijo, boa semana

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    1. A pilha (de livros) está escolhida...
      Beijo, boa semana para ti e família.

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  10. Teresa, estou a procura de boas
    notícias e acho que encontrei o
    lugar. Atualmente nada de boa
    leitura, só dor e sofrimento.
    Obrigado pelo que me deixou ler.
    Um beijo e boa noite.

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  11. Vou levar a sugestão!
    Eu ando às voltas com D. Quixote... Bj

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