30 março, 2012

"Tudo o que eu tenho trago comigo" - Herta Müller

Quando se tem só pele e osso, sentimentos são coragem. Eu prefiro ser cobarde.
No Posfácio deste romance sobre a deportação de seres humanos no pós-guerra, ficamos a saber que a mãe da autora estava entre os alemães residentes na Romênia, com idades compreendidas entre os 17 e os 45 anos, deportados por Estaline para prestarem trabalhos forçados em campos soviéticos. Interessada em divulgar este episódio maldito vivido no final da Segunda Grande Guerra, Herta Müller inicia, em 2001 a recolha de testemunhos sobre o quotidiano nesses campos, junto de sobreviventes deportados da sua aldeia. Esses testemunhos de horror estão na base deste romance.
Sentei-me à mesa e esperei pela meia-noite. E a meia-noite chegou, mas a patrulha estava atrasada. Ainda tiveram de passar mais três horas, foi quase insuportável de aguentar. Depois chegaram. A mãe segurou-me o sobretudo debruado a veludo preto. Enfiei-me nele. Ela chorou. Calcei as luvas verdes. No corredor, precisamente onde fica o contador do gás, a avó disse: EU SEI QUE VOLTAS.
Eram 3 da madrugada do dia 15 de Janeiro de 1945 quando a patrulha me foi buscar.
E foram cinco os anos que Leopold Auberg, de dezassete anos, passou num campo de trabalhos forçados. Cinco anos de muito sofrimento, que o tornaram um ser humano diferente, mas não um monstro, impedido pelas memórias familiares que não deixou morrer e pela da frase da avó: eu sei que voltas.
O quotidiano no campo, onde cada um vive o seu presente, onde o frio corta, a fome engana, o cansaço pesa, a saudade corrói, os percevejos e os piolhos mordem, é narrado em 64 pequenos capítulos de pura e dura prosa poética.
Tudo é descrito de forma tão real que nos sentimos transportar para aquele universo de horror, dor, morte e muita, muita fome.
Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Não há palavras adequadas ao sofrimento da fome. Eu como literalmente a própria vida, desde que não tenho de passar fome. Gosto tanto de comer que não quero morrer, porque depois nunca mais como.
No princípio de Janeiro de 1950, Leopold regressa a casa da família, mas ali sente-se agora um estranho. Nada daquilo tinha a ver comigo. Conhecíamo-nos uns aos outros como já não somos e nunca mais seremos.
Começa a trabalhar, constitui família mas acaba sozinho Um dos seus tesouros diz: Preciso muito de proximidade, mas sou incapaz de me entregar. Domino o sedoso sorriso da esquiva. Desde o anjo da fome, não permito que ninguém me tenha.
Não foi só o protagonista / narrador deste romance avassalador, cruel, duro e triste que cresceu e se tornou uma pessoa diferente. Também eu, enquanto leitora, senti um possante muro no estômago que me ensinou sobre a precariedade da vida, sobre o comportamento humano perante a injustiça, o medo, a fome, a crueldade e a morte.
Há uma eternidade que não chorava, tinha ensinado a saudade a ter os olhos secos.
Hoje, voltei a chorar.

Tudo o que eu tenho trago comigo, de Herta Müller (Prémio Nobel de Literatura 2009)
Dom Quixote, 2010
Tradução de Aires Graça
290 págs.

4 comentários:

  1. Já tinha gostado muito do primeiro e único que li "Hoje preferia não me ter encontrado" e agora vou querer muito ler este.

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    1. Olá linda,
      Lê que vais gostar. É um livro "forte" mas exraordinário. Também eu voltarei a esta autora.
      Bjs.

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  2. De Hertha Muller apenas li A Terra das Ameixas Verdes. É quanto a mim um livro de palavras muito pesadas, que retratam uma realidade duríssima.
    Tenciono voltar um dia a ler está autora.

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    1. Olá Tiago,
      Tenho a certeza de que vai gostar de ler este livro, também ele de palavras pesadas mas infinitamente belas.
      No inicio senti uma certa dificuldade em avançar na leitura mas depois foi de seguida. Sempre que a autora escreve sobre a FOME é aterrador. Aterrador porque sabemos que se baseou em depoimentos de sobreviventes.
      Arrepia, mas temos de conhecer para evitar que volte a acontecer.
      Boas leituras.

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