16 março, 2012

"o remorso de baltazar serapião" - valter hugo mãe

disse à minha ermesinda que se estendesse nua na cama. que eu a queria ver à luz da vela, muito próxima de cada pedaço da sua pele.
depois, ela perguntou se teria de ganhar barriga por cada vez que eu a conhecesse. e eu sorri com a sua burrice, e até a amei mais ainda, por corresponder perfeita à estupidez que se espera numa mulher.
Neste romance, baltazar serapião, narrador e protagonista, conta a história da sua família - os sargas. Não eram os serapião, nome de família, eram os sargas, nome da vaca, magra, feia, tonta da cabeça que vivia com eles e lhes arrebatara o próprio nome.
É uma história feita de ignorância, medo, tristeza e vergonha: éramos os sargas nascidos de bichos e que nos matávamos uns aos outros como bestas.
Uma história de exploração, humilhação, brutalidade e muita violência física e sexual: exploração dos homens por dom afonso de castro o senhor feudal; brutalidade e violência física e sexual cometida pelos homens contra as mulheres.
E, sem dúvida, uma história de mulheres. Mulheres submissas, anuladas, caladas, tristes, infelizes.
uma mulher é ser de pouca fala, como se quer, parideira e calada.
a mãe, velha, quase cega, sofredora, estropiada pelo marido, que com as mãos lhe remexia as entranhas "convicto de que, se coisa ficara ali ou ali crescia, haveria de a enganchar numa unha e trazê-la cá para fora".
brunilde, a irmã que aos onze anos vai trabalhar para casa de dom afonso, e morre depois do senhor “lhe ter feito barriga”.
ermesinda, a mulher de serapião, “o anjo mais belo”, que ele estropia sem dó, atormentado por ciúmes.
teresa diaba, viciada em homens, que “se abria como lençóis estendidos e recebia um homem com valentia sem queixa nem esmorecimento”.
a mulher queimada, a bruxa enviada do diabo que “em desespero de fomes ou saudades, vinha às portas da terra com fúria e urgência em demasia” e que disse um dia a serapião: não vás ficar a julgar que dotes de mulher são só devaneios de loucas incursões. terás prova, amarás as mulheres para aprenderes a valorizá-las, e só depois te conhecerás de verdade.
Horrorizei-me com o que diz baltazar serapião sobre as mulheres, através das minúsculas de valter hugo mãe:
as mulheres só são belas porque têm parecenças com os homens, como os homens são a imagem de deus. não é heresia, pensa bem, se parecessem mais com cabras do que com homens nem natureza para nós teriam. precisam de nos parecer sem alcançar igualdade, que para isso estamos cá nós.
e mais:
e depois, beleza assim até aumentada, o que lhes tirou deus em préstimo de espírito deu-lhes em curvas e cor, servem perfeitamente para nos multiplicar e muito agradar.
e ainda mais:
mas isso da inteligência é como te disse, cuidado com o que sabem porque acham mais do que sabem.
e há mais, muito mais:
não há mãe alguma que não mereça o céu, porque, em verdade, as mães transportam o céu dentro delas, e multiplicam-no a custo, como um ofício, mesmo que dotadas de burrice grande ou estupidez perigosa.
Também eu mereço o céu…
por ter chegado ao fim de um livro desconcertante, delirante, estranho, arrepiante, escrito num português arcaico e repleto de minúsculas (descobri uma maiúscula na pág. 58 – um “D” enorme, mas não foi o suficiente para me animar), que me ofendeu, arrepiou e estarreceu.
Foi um parto difícil a escrita desta minha opinião, mas não tanto como o medonho parto de brunilde, descrito na pág. 220 deste livro.
Senhor valter hugo mãe – não havia necessidade…

o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe
Alfaguara, 2011
256 págs.

9 comentários:

  1. Tenho para ler "a máquina de fazer espanhóis", do mesmo autor, e a primeira tentativa não correu nada bem. Não gosto da falta de letras maiúsculas, que me atrapalha visualmente a leitura e, consequentemente, a concentração. Acho que o último que ele escreveu já foi com maiúsculas. Mas este que tenho ainda não voltei a tentar... :)

    Beijocas e bom fim de semana!

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    1. Olá Teté,
      tenta, tenta, tenta... as minúsculas!
      O último do autor (já com maiúsculas)é interessante. Acho que irás gostar.
      Bjs.

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  2. Eu adorei este livro principalmente pela sua crueza e brutalidade, que efectivamente poderá chocar. Não me fez muita diferença as minúsculas, tive alguma dificuldade nas primeiras páginas, porque também foi a primeira leitura deste autor, mas depois entrei no esquema e gostei mesmo muito.
    Gostaria de voltar a valter hugo mãe, espero gostar tanto dos seus outros livros como gostei deste.
    Gostei muito da tua opinião: parabéns.
    Nuno Chaves

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    1. Olá Nuno,
      Obrigada.
      Lê "O filho de mil homens" (com maiúsculas) e delicia-te. O tema é a família, a paternidade e o amor. Há algo mais belo?
      Boas leituras.

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  3. Foi com "o remorso de baltazar serapião" que fui apresentada a valter hugo mãe (aqui ainda com minúsculas!). Não podia estar mais de acordo com o facto de ser um livro "desconcertante, delirante, estranho, arrepiante", mas acho que é aí que reside o condão mágico do Valter. Nunca mais fui capaz de o largar... :)

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    1. Olá Caetana,
      Eu suei, mas acabei... e voltarei a Valter Hugo Mãe.
      Temos que ler os "nossos", não achas?
      Bjs.

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  4. Olá Teresa,

    Não li o livro, mas a verdade, por mais cruel que seja, é que ainda existem muitos homens a pensam como baltazar serapião.

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    1. Olá Tiago,
      Lamentavelmente tenho de concordar consigo,
      andam por aí muitos "serapiões".
      Boas leituras

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  5. Já tinha referido que este é mesmo o meu preferido do autor...
    Demasiado violento nas descrições e cruel no que toca às mulheres. O autor consegue realmente chocar com as suas palavras. É um acordar para a realidade, que muitas das vezes está mesmo ao nosso lado e um autêntico murro no estômago.
    Gostei imenso!

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