10 janeiro, 2011

"Promessa" - Crónica de José Manuel dos Santos

"O tempo só nos diz se o dissermos. Por isso, a cada ano que acaba, damos uma palavra que o diga, para com ela nos dizermos também. Aqui e em muitos outros lugares, caem sobre 2010 as palavras de um dicionário que apenas as tivesse amargas ou assustadoras. Essas sabemo-las de cor, porque, ultimamente, as temos ouvido em todos os momentos e as temos lido em todos os títulos.
Uma revista francesa pediu a escritores para escolherem palavras que fossem o nome deste ano que finda. Cada um, escolheu uma: crise, dívida, gerir, excesso, invisível (para apontar o que se quer esconder), identidade (francesa, claro), limpeza (étnica, por causa da expulsão dos roms) e ainda os nomes de gente que esteve no centro de acontecimentos e escândalos (o "affaire Bettencourt", por exemplo). Em Portugal, se fizéssemos a mesma pergunta, algumas palavras seriam as mesmas. Outras seriam diferentes: juros, rating, cortes, défice, desemprego, desigualdade, pobreza, chuva, euro, FMI, BPN, Rosalina Ribeiro. E, agora, em todo o mundo, a palavra mais repetida é WikiLeaks e, com ela, vem Assange. Sabemos que estas são palavras de passe a levar-nos de 2010 para 2011.
Nestes dias, oiço o que se exclama sobre o ano que termina, e a palavra mais ouvida é dita para com ela se dizer tudo o que nos afasta da felicidade ou da ilusão dela: "merda". "Foi um ano de merda!", afirma-se. "Que merda de vida!", protesta-se. "Merda para isto", repete-se. "São todos a mesma merda!", lamenta-se. "Merda" é uma palavra que dá sorte no teatro. Segreda-se aos atores, em noites de estreia, desejando-lhes palmas em vez de pateadas. Fora dessas salas onde nos vemos nos outros a fazer de outros, a mesma palavra não é de sorte ou de êxito que fala - é de azar e de fracasso. Na política ou na economia, no trabalho ou em casa, dizemos "merda" para dizer que 2010 foi um ano para esquecer - e, por isso mesmo, não o esquecemos.
Eu olho os dias deste ano e também exclamo: "Que merda!" Isso aqui fui escrevendo, mesmo sem escrever a palavra que alguns chamam "mot de Cambronne", do nome do general de Napoleão que, na batalha de Waterloo, quando o general britânico Colville lhe ordenou que se rendesse, mandou-o à merda. Por isso, ficou na história. Às vezes, mandar alguém à merda pode ser a última forma de heroísmo...
Quando digo "este foi um ano de merda", não digo tudo o que o ano foi. Olho para trás e vejo que, às vezes, uma luz atravessou a sombra. Nesta passagem do tempo, trago aqui essa luz, fazendo dela um bom augúrio. Trago essa luz da luz que, numa tarde fria, vi acender-se, entre o céu cinzento e o rio triste, mudando a cor ao mundo. Trago-a das palavras ditas pela voz de uma mulher: "Sou velha, mas estou viva." Trago-a do grito gritado contra a prepotência ávida: "Estes gajos pensam que são nossos donos, mas não são!" Trago-a dos versos de Jaime Gil de Biedma, tornados meus numa tarde de verão: "No jardim, lendo,/ a sombra da casa obscurece-me as páginas/ e o frio repentino de final de agosto/ faz que pense em ti." Trago-a da mão que me tocou com uma lentidão próxima do desejo. Trago-a da terceira sinfonia de Górecki, morto este ano, ou da oitava sinfonia de Mahler, cantada por Lucia Popp. Trago-a do sorriso que sorriu no rosto de um desconhecido quando, numa rua cheia de gente, íamos chocando. Trago-a de um pensamento de Levinas, lido numa manhã ainda não passada, e que é uma condenação do mundo de hoje: "Depois de ti": "Esta fórmula de delicadeza devia ser a mais bela definição da nossa civilização." Trago-a de um recado escrito pela minha mãe, a dizer-me que havia cerejas à minha espera, e descoberto há pouco numa gaveta onde o guardara, como se ela mo tivesse voltado a escrever com a sua letra aguda e lenta. Trago-o dos erros cometidos, para fazer deles a lua de uma prudência ou o sol de uma ousadia. Trago-a das palavras enviadas por tantos, depois de aqui me lerem, e que, mesmo quando há silêncio na minha resposta, esse é ainda um silêncio de reconhecimento. Trago-a do aforismo de Wittgenstein, lido num livro que nunca fecho: "A ambição é a morte do pensamento." Trago-a de uma noite mudada num grande dia do corpo. Trago-a da festa feita a um gato e por ele devolvida num olhar limpo e longo. Trago-a da chama que, no Bosch que revi no Museu da Arte Antiga, arde a um ritmo que se acelera no nosso olhar. Trago-a da firmeza de um amigo, afirmando a vida contra a doença que a nega. Trago-a da luz de uma gema translúcida, vinda de um tempo antigo e de um país distante, que toco para sentir melhor que o mundo não começou ontem, nem existe só para nós. Trago comigo esta luz que atravessou a sombra de 2010. Trago esta luz até nós - e olho com ela o ano que chega, assim chegasse a uma janela que se abre. "

Não falho na leitura das crónicas semanais do José Manuel dos Santos, publicadas na revista ACTUAL (Jornal Expresso). Nunca me desiludiram.
Este texto, que me tocou particularmente, saiu na revista de 30 de Dezembro de 2010.
Peço desculpa ao autor pela ousadia na sua reprodução.
Obrigada!


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