28 outubro, 2016

"Memórias laurentinas" - Agustina Bessa-Luís


… a vida é assim, o peixe mau não tem espinhas e o bom está cheio delas.
Memórias… memórias… memórias.
Este romance é um entrelaçado de memórias: privadas (a vida de uma família vulgar, na segunda metade do séc. XIX, início do séc. XX)) e públicas (valores e tradições vigentes na época).
A narrativa começa com o estranho suicídio de António Guedes Ferreira, filho de vinhateiros ricos, bacharel em leis, nascido no Lugar das Cales, em Loureiro, uma aldeia de velhos solares e casebres miseráveis, de má fama, de malfeitores. Dizia-se que lá se matavam as pessoas “por um bom dia”.
Suicídio cometido depois de uma conversa de António Guedes com Perico, um ladrão de estrada, cruel, falso e mentiroso, que fazia consertos lá em casa, pequenos recados. Não eram amigos. Respeitavam-se, apenas.
Amigo de verdade António Guedes só tinha um: António Soeiro, vizinho, da sua idade, como ele proprietário. Soeiro é um rufião, vaidoso, ambicioso, oportunista, viciado no jogo. Acontece que António Guedes, homem fraco e crédulo, só  vê virtudes no amigo e empresta-lhe elevadas somas de dinheiro. Dinheiro para sempre perdido pois Soeiro está arruinado. Perdeu no jogo a fortuna herdada do pai.
Certo dia, ao regressar de um encontro com os credores, Soeiro encontra Perico e diz-lhe: temos de falar. Falam e nos dias seguintes o malfeitor ronda a casa de António Guedes. Acaba por entrar, manso como um cordeiro, e pede para falar a sós com ele.
O que lhe disse não ficou registado nem ninguém ouviu. Mas foi uma revelação tão poderosa e demolidora que António Guedes morreu disso. Envenenou-se. Só Perico sabia as razões.
(Eu também sei, mas nada desvendo, para que você as encontre espalhadas nas páginas deste romance.)
António Guedes casa cedo com Maria Maximina, mulher inteligente e trabalhadora, filha de uma família com títulos e apelidos mas sem fortuna. Após a morte do marido Maximina fica a braços com três filhos e poucos rendimentos, dado que a maior parte dos bens vai, por direito, para Lourenço Guedes Ferreira, o filho mais velho, o morgado.
Lourenço Guedes fica rico aos dezoito anos, aos dezanove já tinha gasto quase tudo e aos vinte está arruinado. Esbanja dinheiro em casas de jogo com o filho de António Soeiro, como fizera o pai na versão antiga. Aos vinte e cinco casa com uma jovem de Santa Comba. Nascem cinco filhos, só dois sobrevivem: Lourenço, doido acabado, e Zília. Enviúva e volta a casar, com Lourença Jurado, vinte anos mais nova, filha de um dos homens mais ricos de Zamora.
Para refazer a vida vai para África, seduzido por um contrato com os caminho-de-ferro e os negócios em parceria com... Soeiro, o vizinho!
África salvo-o da penúria. No regresso definitivo, compra casa em Zamora e monta uma fábrica de moagem. Prospera. Chama, então, para junto de si, os filhos do primeiro casamento e… tudo começa a correr mal. O jovem Lourenço, para encobrir roubos de farinha que vendia às escondidas, incendeia o armazém. O pai recusa-se a internar o filho, reconstrói o armazém e volta à luta. Por pouco tempo pois o filho louco acaba por destruir a totalidade da fábrica.
Lourenço Guedes aceita aquilo como um sinal, sempre benvindo, de que devia retomar o caminho noutra direccção, e toma duas decisões: dá ao filho a parte da herança da mãe e manda-o viajar; vende o que lhe resta, indemniza os fregueses e volta para Portugal com a mulher e as filhas.
Instala-se em Matosinhos e obtém a concessão dos trabalhos do Porto de Leixões. Volta a ganhar muito dinheiro.
Lourenço Guedes, fez duas fortunas, salvou a pele, teve catorze filhos, dos quais dez inviáveis, acumulou decepções e chamou a tudo isso uma história de loucos. E escreveu um diário, que salvou do esquecimento factos marcantes da vida de três gerações da sua família.

Desvendei muito? Não! Repare que nada disse sobre as mulheres da família; nem sobre as viagens de Lourenço, o incendiário; nem sobre...
As memórias laurentinas assentam numa história de vingança que leva séculos a consumar.
Acredite que MUITO ficou por desvendar.

Se gosta de sagas familiares inteligentes, convincentes, surpreendentes, esta é para si.
Acomode-se no sofá, livro nas mãos, manta nas pernas (já apetece), um lápis para sublinhar e um bloco para criar a árvore genealógica dos Guedes Ferreira. Isto, para não se perder na intrincada trama.
Eu não me perdi, mas desisti... da árvore, claro!

Memórias laurentinas, de Agustina Bessa-Luís
Guimarães Editora, 1996
299 págs.

25 outubro, 2016

Tivesse eu a organização deste mundo...


Tivesse eu a organização deste mundo, iria estabelecer um certo ponto, digamos por volta da idade dos trinta, idade essa em que, ao ser atingida, um homem seria automaticamente relegado para um plano onde a sua mente não voltaria a ser perturbada com a recordação fútil das tentações às quais resistiu e da beleza que não conseguiu recolher. Acho que é a inveja que nos faz desejar evitar que os jovens façam coisas que nós não tivemos a coragem ou a oportunidade de conseguir outrora, e não temos o poder de conseguir agora.”

Tirei daqui: “A recompensa do soldado”, de William Faulkner, Ed. Casa das Letras, 2010
Foto da net.

18 outubro, 2016

Bob Dylan - Prémio Nobel da Literatura, 2016


Bob Dylan – Prémio Nobel da Literatura 2016?
Como? Porquê? Não é possível!
Acreditem, a minha primeira reacção foi de raiva, choque, tristeza, desilusão.
E demorei a aceitar… a entender… a perdoar a Academia Sueca por premiar “novas formas de expressão poética”  e continuar a desconsiderar o meu escritor MAIOR.
Depois… depois acalmei.
Acalmei e aceitei:   Bob Dylan, músico, compositor e poeta, 75 anos, merece a distinção, sim senhor.
Agora,  há que manter a esperança -  em 2017 celebrarei entusiasticamente a escolha da Academia.
Roth, até para o ano e não morras, please!

Forever Young
May God bless and keep you always
May your wishes all come true
May you always do for others
And let others do for you
May you build a ladder to the stars
And climb on every rung
May you stay forever young
Forever young, forever young
May you stay forever young

May you grow up to be righteous
May you grow up to be true
May you always know the truth
And see the lights surrounding you
May you always be courageous
Stand upright and be strong
May you stay forever young
Forever young, forever young
May you stay forever young

May your hands always be busy
May your feet always be swift
May you have a strong foundation
When the winds of changes shift
May your heart always be joyful
May your song always be sung
May you stay forever young
Forever young, forever young
May you stay forever young

14 outubro, 2016

"A recompensa do soldado" - William Faulkner


Ele é toda a humanidade, a sua influência irradia a sua situação, e todos aqueles próximos dele se tornam estéreis e insípidos, de algum modo perto da morte… O seu ferimento determina como as pessoas vivem, como amam, como se relacionam consigo e com os outros.
(Frederick R. Karl, na Introdução.)

Escrito em 1925 e publicado no ano seguinte, “A recompensa do soldado” – primeiro romance daquele que viria a ser considerado “o principal romancista norte-americano do século XX”, galardoado com a Prémio Nobel de Literatura, 1949 - conta a história do regresso a casa de três jovens aviadores americanos, combatentes da Primeira Guerra Mundial: Donald Mahon, Joe Gilligan e Julian Lowe.
No centro da narrativa está o tenente Mahon, que regressa para junto da família e da noiva brutalmente marcado pela guerra: desfigurado por uma cicatriz terrível no rosto, a cegar, amnésico, a coxear.
A acção começa com os três a viajar de comboio rumo às suas cidades. Gilligan e Powers, fisicamente em melhor estado que Mahon, celebram de uma forma efusiva e desconcertante esse regresso, enquanto Mahon agoniza.
Apesar de todos os excessos, ambos decidem levar o tenente a casa. A eles junta-se Margareth Powers, uma jovem viúva de um soldado aviador morto em França que, impressionada com o estado do moribundo, se oferece para os acompanhar, tomar conta do soldado e suportar as despesas do seu tratamento.
- Claro. O soldado morre e deixa-lhe dinheiro, e você vai gastar o dinheiro a ajudar outro soldado a morrer confortavelmente. Não é irónico?
- Presumo que sim… É tudo irónico. Horrivelmente irónico.
Acabam por ir os três a casa dos Mahon, em Charlestown, Geórgia.
Margareth vai à frente, para preparar a família e fala com o pai, o reverendo Mahon, a quem esconde o verdadeiro estado do doente.
- Doente? – trovejou ele. – Doente? Mas nós vamos curá-lo. Tragam-no para casa, que aqui, com boa comida, descanso e atenção, iremos pô-lo bom dentro de uma semana. Hem, Cecily?
Cecily Saunders é a namorada de Mahon. Os pais fizeram com que ficassem noivos antes de ele partir para a guerra. Ele partiu à espera que ela esperasse por ele e regressou esperando que ela o aceitasse.
Ela esperou-o, traindo-o com Geroge Parr. Será que aceita casar com ele, agora que tem o rosto terrivelmente desfigurado?
- Nunca, nunca. Se tiver de voltar a ver a cara dele, eu… eu morro.
Não morre e casa. Mas não com Mahon.
Gillian e Julian continuam junto do amigo. Ambos se perdem de amores pela doce Margareth.
Margareth que, por amor e uma certa dose de compaixão, aceita casar com Mahon.
A primavera avança e Mahon piora. Já mal se levanta. Está a morrer.
A família continua a acreditar na sua recuperação. Margareth  não.
Entretanto, no casarão triste, ouve-se o tiquetaque do relógio da cozinha: Vida. Morte. Vida. Morte. Vida Morte. Vida. Morte.

Amor, amizade, traição, humor negro, esperança, desespero, ingratidão, lágrimas, oportunismo, compaixão, sofrimento, agonia, morte… há de tudo neste romance dramático, denso de emoções e sentimentos, sobre o pós-guerra de jovens combatentes e o impacto devastador do regresso da guerra de um filho mutilado. Mas tudo, não chegou para me cativar.
Um primeiro romance, sem qualquer brilho.
Lê-lo, não foi “pêra-doce”.

A recompensa do soldado, de William Faulkner, Prémio Nobel de Literatura, 1949
Tradução de Maria João Freire de Andrade
Ed. Casa das Letras, 2010
317 págs.

11 outubro, 2016

Lírios dourados com oito centímetros...



“A minha avó era uma beldade. Tinha um rosto de forma oval, com faces rosadas e pele sedosa. (…)
O seu valor residia, porém, nos pés enfaixados, chamados em chinês «lírios dourados com oito centímetros» (san-tsun-gin-lian). (...)
Tinha a minha avó dois anos quando lhe enfaixaram os pés. A mãe, que também tinha pés enfaixados, começou por enrolar-lhe à volta dos pés uma tira de pano com cerca de seis metros de comprimentos, dobrando todos os dedos, excepto o grande, para dentro e para baixo da planta. Depois pôs-lhes uma grande pedra em cima, para esmagar o arco. A minha avó gritou de dor e suplicou-lhe que parasse, e a mãe teve de meter-lhe um pano na boca, para amordaça-la. A infeliz desmaiou diversas vezes, devido à dor.
O processo demorava anos. Mesmo depois dos ossos terem sido partidos, os pés tinham de continuar enfaixados, dia e noite, em tiras de pano, pois no momento em que fossem libertados, tentariam recuperar. Durante anos, a minha avó viveu cheia de dores terríveis e constantes. Quando suplicava à mãe que lhe tirasse as faixas, ela chorava e dizia-lhe que isso arruinaria toda a sua vida futura, e que fazia aquilo pela felicidade dela.
Naqueles tempos, quando uma mulher casava, a primeira coisa que a família do noivo fazia era examinar-lhe os pés. Uns pés grandes, ou seja, uns pés normais, traziam vergonha para a casa do marido. (…)
O costume de enfaixar os pés foi introduzido na China há cerca de mil anos, segundo se diz por uma concubina do imperador. (…)
As mulheres não podiam tirar as faixas mesmo depois de adultas, pois os pés começariam a crescer novamente. Só à noite, na cama, lhes era possível aliviar temporariamente o tormento, afrouxando um pouco as tiras de pano. Calçavam, então, uns sapatos de sola macia. Os homens raramente viam nus uns pés enfaixados, que estavam geralmente cobertos de carne apodrecida e exalavam um cheiro horroroso quando se tiravam as faixas. Lembro-me de, em criança, ver a minha avó constantemente cheia de dores. Sempre que regressávamos das compras, a primeira coisa que ela fazia era meter os pés numa bacia de água quente, suspirando de alívio. Depois punha-se a cortar pedaços de pele morta. A dor era provocada não só pelos ossos partidos, mas também pelas unhas, que cresciam para dentro da ponta dos dedos.
Na realidade, os pés da minha avó tinham sido enfaixados precisamente na altura em que a prática estava prestes a desaparecer para sempre.”

Inacreditável!

Tirei daqui: “Cisnes selvagens”, de Jung Chang, Quetzal Editora, 1995
Fotos da net.

04 outubro, 2016

19º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


217-(1929?)
“A solidão desola-me; a companhia deprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distração especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.”

218-(1929?)
“A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria de seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou.
E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo…”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


28 setembro, 2016

Vale a pena ler... Mario Vargas Llosa

(…)
Penso que foi em Madrid, em 1958, quando estava a fazer o doutoramento (sobre o poeta Rubén Dario) e a escrever o primeiro romance, “A Cidade e os Cães”, que tomei a decisão de estruturar a minha vida de maneira a poder dedicar-me à escrita. Foi nesse momento que decidi consagrar a maior parte do meu tempo e da minha energia a escrever. Porque essa é a única forma de ser-se um escritor e não a caricatura de um escritor.
Portanto, acredita no trabalho.
Por uma razão muito simples: porque eu não tenho facilidade para escrever, preciso de trabalhar muito para poder acabar um livro. Há escritores que se sentam e para eles tudo flui. Não é o meu caso. Eu tenho que refazer, penar, reescrever. Por isso, preciso de uma grande disciplina.
(…)
Ouvindo-o falar, percebe-se que Mario Vargas-Llosa, apesar de ter escrito uma trintena de livros, não é nem nunca foi um homem fechado na sua obra, na sua literatura. É importante para si participar do mundo, pensá-lo?
Sim, claro. A literatura vem da vida, do que nos marca, do que a memória audazmente seleciona. Tudo é matéria-prima. No imaginário popular o Nobel significa o fim de um escritor. Um fim glorioso, mas um fim. Pensa-se que depois disso não há nada, que o escritor está morto. Eu tentei combater isto desde o princípio, não parando de escrever, de viajar, de pensar a realidade. Não me tornando na estátua em que o Nobel por vezes transforma os escritores.”

Excerto da entrevista concedida a Luciana Leiderfarb, publicada na “E”, revista do jornal Expresso de 24 Setembro 2016
Vale a pena ler na íntegra.

(Foto da net)

27 setembro, 2016

Vale a pena ler... Arturo Pérez-Reverte


Por que razão um homem que viajou por todo o mundo como repórter prefere, como temas dos seus romances, a História à actualidade?
A História permite-nos compreender melhor o presente. O novo não é mais do que o passado que já esquecemos. Tudo já aconteceu. Quem não leu a Guerra de Tróia não compreende Sarajevo, quem não leu Xenofonte não compreende a guerra dos mercenários em Angola, em 1978. Sem História somo órfãos e incapazes de compreender. Por isso uso nos meus romances a História como mecanismo de compreensão, como chave para o presente.
(…)
Acha que essa vida aventurosa, como a de uma personagem dos seus próprios romances, contribui para o êxito? Ao fazer com que o leitor se projecte no escritor como alguém que tem uma vida apaixonante?
A minha vida não é apaixonante por ser escritor. O que torna uma vida apaixonante são as viagens que fizemos, as aventuras que vivemos. Os livros são apenas um resultado disso.
Mas a literatura está em crise…
Eu não estou em crise.
Qual é a sua explicação para isso?
Às vezes pego num livro e penso: este tipo, para que escreve ele? A quem importa saber que ele se levantou de manhã, que tem uma vida triste, que a mulher o deixou, que o seu filho é drogado, que se sente asfixiado pela vida. Para isso, não vale a pena ler. Basta olhar em volta. O que eu quero é que me contem histórias interessantes, que me façam reflectir, pensar, sonhar. Que mudem a minha vida. Se quando terminar a leitura de um livro a minha vida não tiver mudado para melhor, ou é um mau livro ou eu sou um mau leitor. Um livro que não muda o olhar do leitor é uma merda de livro. E o mundo está cheio de merda de livros que não mudam nada. São apenas fruto da vaidade onanista de autores que não têm nada para dizer.
(…)
A literatura é para todos?
Sim.
Mas a maioria não lê.
Não lê porque não sabem como é bom ler. Porque não se educa para a leitura. Os planos de estudos são feitos por gente que não lê e que não sabe o que dar às crianças para ler. Mas quando uma pessoa encontra algo de que gosta…
(…)

Excerto da entrevista concedida a Paulo Guerra, publicada no jornal Público de 21 Setembro 2016.
Vale a pena ler na íntegra.

(Foto da net)