24 abril, 2016

"As primeiras coisas" - Bruno Vieira Amaral

"No Bairro Amélia come-se de tudo: moamba de galinha, calulu de peixe, cachupa, cozido à portuguesa, enguia frita com arroz de grelos…"

QUANDO, EM FINAIS DOS ANOS NOVENTA, voltei costas ao Bairro Amélia, com os seus estendais de gente mórbida, a banda sonora incessante das suas misérias, nunca pensei que a vida me devolveria ao ponto de partida.
Começa assim o Prólogo de quarenta e sete páginas (belíssimas) do romance de estreia de Bruno Vieira Amaral, uma ficção inspirada em realidade pois o escritor (n. 1978) cresceu no Bairro de Fomento à Habitação, no Vale da Amoreira, concelho da Moita, distrito de Setúbal.
A voz que ouvimos é de Bruno Eugénio, que diz mais à frente:
Saí para o mundo convicto da vitória e regressei, cabisbaixo, com o meu fracasso. Não importa detalhar o insucesso. Direi apenas que a queda não foi tão espectacular que não me envergonhasse. Foi um fracasso ordinário e marcante.
A minha mãe acolheu-me com impecável sentido de responsabilidade e o sentimento da mal disfarçada incomodidade de quem recebe um presente que não aprecia ou de que não precisa. Resignou-se. (…)
Foi assim que me encontrei de regresso ao Bairro Amélia: desempregado, desamparado, um pouco órfão…
Quarenta e tal páginas depois, ele confidencia:
O reflexo que o espelho me devolvia era uma cópia degradada do homem que, há poucos meses, eu contemplava com satisfação. Chegara ao fim. Não era agonia. Era cansaço, desemprego existencial, lassidão dos membros, a ânsia de adormecer.
Não! Bruno não chega ao fim. É salvo por Virgílio, o fotógrafo de voz rouca que lhe bate à porta, lhe entrega um envelope, e lhe diz «tenho algumas coisas que te podem interessar». 
Coisas que lhe interessam e o salvam...
Ao Prólogo segue-se um  “dicionário incompleto” com oitenta e seis pequeninas histórias… memórias, embustes, traições, homicídios, sermões de pastores evangélicos, crónicas de futebol, gastronomia, um inventário de sons, uma viagem de autocarro, as manhãs de domingo, meteorologia, o Apocalipse, a Grande Pintura de 1990, o inferno, os pretos, os ciganos, os brancos das barracas, os retornados: a Humanidade inteira arde no Bairro da Amélia, um lugar perdido na Margem Sul do Tejo…
Se o Prólogo é belíssimo e divertido, o Epílogo é lindo, profundo e comovente.
Hoje, assinámos os papéis do divórcio. Não a via desde o dia em que saí de casa. Está bonita. Cumprimentámo-nos. Acabou. (...)
Acabou, sim, porque eu nada mais desvendo.

Há muito que não lia um romance que me empolgasse tanto. Arrebatou-me a escrita concisa, clara e fluída, a narrativa empolgante, viciante, rica em detalhes, bem doseada de graça e seriedade.
Por favor leia!

As primeiras coisas”, de Bruno Vieira Amaral (Prémio Literário José Saramago, 2015),
Quetzal Editores, 2013
301 págs.

6 comentários:

  1. Fiquei convencida. Vou procurar o livro para o ler.

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    1. Olá Redonda!
      Procura o livro e procura tempo para leres sem parar as 47 páginas do Prólogo. É o máximo!
      As muitas pequeninas histórias que se seguem são para "degustar" com mais calma.
      Bjs.

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  2. Olá Teresa!

    Não li o comentário na totalidade uma vez que esse livro cá está na lista dos próximos a serem lidos. Muito expectativa.

    Beijinhos e boas leituras!

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    1. Olá Denise!
      Vais gostar. Muito! Do Prólogo então...
      Vou estar atenta ao teu comentário.
      Bjs., boa semana,óptimas leituras.

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  3. Como eu fico contente por alguém do Vale da Amoreira escrever sobre o mundo que ali está diário. Com gente muito igual a outra. Quase podia ter sido meu aluno, o garoto.

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    1. Olá Bea!
      Ora bem, se a senhora professora ainda não leu, tem agora mais motivos para ler...
      Bjs.

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