"No Bairro Amélia come-se de tudo: moamba de galinha, calulu de peixe, cachupa, cozido à portuguesa, enguia frita com arroz de grelos…"
QUANDO, EM FINAIS DOS ANOS NOVENTA, voltei costas ao Bairro Amélia, com os seus estendais de gente mórbida, a banda sonora incessante das suas misérias, nunca pensei que a vida me devolveria ao ponto de partida.
Começa assim o Prólogo de quarenta e sete páginas (belíssimas) do romance de estreia de Bruno Vieira Amaral, uma ficção inspirada em realidade pois o escritor (n. 1978) cresceu no Bairro de Fomento à Habitação, no Vale da Amoreira, concelho da Moita, distrito de Setúbal.
A voz que ouvimos é de Bruno Eugénio, que diz mais à frente:
Saí para o mundo convicto da vitória e regressei, cabisbaixo, com o meu fracasso. Não importa detalhar o insucesso. Direi apenas que a queda não foi tão espectacular que não me envergonhasse. Foi um fracasso ordinário e marcante.
A minha mãe acolheu-me com impecável sentido de responsabilidade e o sentimento da mal disfarçada incomodidade de quem recebe um presente que não aprecia ou de que não precisa. Resignou-se. (…)
Foi assim que me encontrei de regresso ao Bairro Amélia: desempregado, desamparado, um pouco órfão…
Quarenta e tal páginas depois, ele confidencia:
O reflexo que o espelho me devolvia era uma cópia degradada do homem que, há poucos meses, eu contemplava com satisfação. Chegara ao fim. Não era agonia. Era cansaço, desemprego existencial, lassidão dos membros, a ânsia de adormecer.
Não! Bruno não chega ao fim. É salvo por Virgílio, o fotógrafo de voz rouca que lhe bate à porta, lhe entrega um envelope, e lhe diz «tenho algumas coisas que te podem interessar».
Coisas que lhe interessam e o salvam...
Ao Prólogo segue-se um “dicionário incompleto” com oitenta e seis pequeninas histórias… memórias, embustes, traições, homicídios, sermões de pastores evangélicos, crónicas de futebol, gastronomia, um inventário de sons, uma viagem de autocarro, as manhãs de domingo, meteorologia, o Apocalipse, a Grande Pintura de 1990, o inferno, os pretos, os ciganos, os brancos das barracas, os retornados: a Humanidade inteira arde no Bairro da Amélia, um lugar perdido na Margem Sul do Tejo…
Se o Prólogo é belíssimo e divertido, o Epílogo é lindo, profundo e comovente.
Hoje, assinámos os papéis do divórcio. Não a via desde o dia em que saí de casa. Está bonita. Cumprimentámo-nos. Acabou. (...)
Acabou, sim, porque eu nada mais desvendo.
Há muito que não lia um romance que me empolgasse tanto. Arrebatou-me a escrita concisa, clara e fluída, a narrativa empolgante, viciante, rica em detalhes, bem doseada de graça e seriedade.
Por favor leia!
“As primeiras coisas”, de Bruno Vieira Amaral (Prémio Literário José Saramago, 2015),
Quetzal Editores, 2013
301 págs.
Fiquei convencida. Vou procurar o livro para o ler.
ResponderEliminarOlá Redonda!
EliminarProcura o livro e procura tempo para leres sem parar as 47 páginas do Prólogo. É o máximo!
As muitas pequeninas histórias que se seguem são para "degustar" com mais calma.
Bjs.
Olá Teresa!
ResponderEliminarNão li o comentário na totalidade uma vez que esse livro cá está na lista dos próximos a serem lidos. Muito expectativa.
Beijinhos e boas leituras!
Olá Denise!
EliminarVais gostar. Muito! Do Prólogo então...
Vou estar atenta ao teu comentário.
Bjs., boa semana,óptimas leituras.
Como eu fico contente por alguém do Vale da Amoreira escrever sobre o mundo que ali está diário. Com gente muito igual a outra. Quase podia ter sido meu aluno, o garoto.
ResponderEliminarOlá Bea!
EliminarOra bem, se a senhora professora ainda não leu, tem agora mais motivos para ler...
Bjs.