25 outubro, 2019

"O Arquipélago do Cão" - Philippe Claudel

O que é a vergonha e quantos a sentiram? É a verdade que liga os homens à humanidade? Ou limita-se a sublinhar que estão irreversivelmente afastados dela?
“Cobiçais o ouro e espalhais as cinzas.
Manchais a beleza, corrompeis a inocência.
Por toda a parte deixais escorrer grandes correntes de lama. O ódio é o vosso ambiente, a indiferença, a vossa bússola. Sois criaturas do sono, sempre adormecidas, mesmo quando julgais estar acordadas. Sois o fruto de uma época mergulhada num sono profundo. As vossas emoções são efémeras, borboletas que nascem rapidamente, calcinadas de imediato pela luz dos dias. A vossa solidão devora-vos. O vosso egoísmo engorda-vos. Voltais as costas aos vossos irmãos e perdeis a vossa alma. A vossa natureza fermenta com o esquecimento.
Como julgarão os séculos futuros o vosso tempo?
A história que ides ler é tão real quanto vós sois. Passa-se aqui, tal como teria podido desenrolar-se ali. Seria demasiado cómodo pensar que aconteceu noutro lugar. Os nomes dos seres que a povoam pouco importam. Poderiam ser alterados. Pôr os vossos no lugar deles. Assemelhais-vos tanto, procedendo do mesmo molde inalterável.
Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, fareis a vós próprios uma pergunta legítima: terá ele sido testemunha do que nos conta? A minha resposta é: sim, fui testemunha disso. Tal como vós fostes, mas não quisestes ver. Nunca quereis ver. Eu sou aquele que vo-lo recorda. Sou o importuno. Sou aquele a quem nada escapa. Vejo tudo. Sei tudo. Mas não sou nada e quero continuar a não ser. Nem homem nem mulher. Sou apenas a voz. Será da sombra que vos contarei a história.
Os factos que vou narrar aconteceram ontem. Há alguns dias. Há um ano ou dois. Não mais. Escrevo «ontem», mas parece-me que deveria dizer «hoje». Os homens não gostam de ontem. Os homens vivem no presente e sonham com os amanhãs.
A história passa-se numa ilha. Uma ilha qualquer. Nem grande nem bela. Que não fica de modo algum longe do país de que depende, mas que este esqueceu, e está perto de outro continente a que pertence, mas que ignora.
Uma ilha do arquipélago do Cão.”

Começa exactamente assim este livro/thriller/parábola negra sobre o comportamento humano perante a tragédia das migrações mediterrâneas de hoje. No primeiro capítulo o narrador fala com o leitor, no segundo capítulo tem início a história - que o narrador não situa em tempo ou lugar algum - com a descoberta de três corpos que deram à costa da única ilha habitada do arquipélago do Cão. Ilha dominada por Brau, o vulcão que depois de milénios a vomitar lava descansa emitindo ruídos surdos através da cratera escondida num «edredão de brumas». As gentes do Cão vivem da agricultura e da pesca. Todos se conhecem. 
A Velha (professora reformada que ensinou a ler todos os habitantes da ilha), o Spadon (que trabalha para o presidente da Câmara, o principal patrão de pesca da ilha) e o Amérique (meio vinhateiro meio homem dos sete ofícios) foram os primeiros a avistar os corpos de três homens negros, na praia de seixos vulcânicos. Spadon foi de imediato buscar à cidade o presidente da Câmara (magro como um filetes de anchova). Com eles trouxeram também o médico (gordo, atarracado, com uma imagem de marca, um espesso bigode pintado de preto). Os cinco olham intrigados para os corpos e escutam uma voz repetir «Meu Deus!». Era o professor que substituíra a Velha, e que fazia na praia a habitual corrida matinal. «Não era da ilha. Era estrangeiro.»
Eram oito horas da manhã. Ninguém dizia uma palavra. Todos sentiam um frio estranho. De repente o presidente Câmara quebra o silêncio: "- Estamos aqui seis pessoas. Seis que sabem. Seis que devem calar-se até logo à noite. Encontramo-nos às nove horas na Câmara. Vou pensar o que há a fazer. (…) se até lá, algum dos presentes falar disto a quem quer que seja ou não comparecer logo, pego na minha espingarda e ajusto conta com ele.»
Então, os afogados são enrolados em tela plástica, colocados numa carroça e levados para a cidade.
À noite, para espanto de todos, o padre junta-se ao grupo. «- Uma pessoa abriu-se comigo no segredo da confissão (…)»  
A reunião termina sem saberem o que fazer com os cadáveres, entretanto colocados num câmara de congelação de peixe. O presidente da Câmara pede segredo «uma cruz que devemos carregar por eles» e promete que vai continuar a pensar no que fazer. Sem avisar a polícia. Não quer ver jornalistas a desembarcar na ilha. «Da noite para o dia a nossa ilha transformar-se-ia na ilha dos afogados.»  E pensa... e pensa...
Dias depois, os corpos dos três homens que morreram no mar quando fugiam da miséria, da guerra, do caos, são deitados para… Não, não, não posso revelar! Mas acreditem, são tratados como lixo, como despojos de animais.
Maldição do Brau ou não, «os mortos iriam obrigar os vivos a pagar pela sua indiferença.» E tudo começa com a chegada à ilha de um  falso policial (chegou, viu, emborcou, emaranhou, desapareceu). E um fedor intenso a carne podre. E a morte de um inocente. E o peixe a morrer no mar. E a fuga de várias famílias. E a descoberta de que ali viviam «negreiros, mercadores de corpos, traficantes de tabaco e de sonhos, ladrões de esperanças» (...) «homens assassinos de outros homens».
O homem é muito ingénuo ou muito orgulhoso, quando pensa que se podem compreender todos os mistérios e resolver todos os problemas.
E fico por aqui. E muito já disse.
E como também já muito disse sobre a escrita de Philippe Claudel... leia-o!
Magnífico!

O Arquipélago do Cão, de Philippe Claudel
Tradução de Artur Lopes Cardoso
Porto Editora, 2019
181 págs.
Foto tirada da minha varanda (1.10.2019)

7 comentários:

  1. Só pelo excerto que seleccionaste já dá para perceber que é um bom livro.
    Obrigado pela sugestão.
    Querida amiga Teresa, tem um bom fim de semana.
    Beijo.

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  2. Desconheço o autor e leio cada vez mais devagar, é provável que não venha a lê-lo.
    Obrigada pelos votos de bom fds que retribuo. Divirta-se. talvez esteja de molde a passear.

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  3. Bom dia!
    Parece ser um livro excelente, visceral!
    Vou procurar. Grata pela indicação!
    Bom final xde semana.

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  4. Já a questão levantada me deixa inquieta: "Como julgarão os séculos futuros o vosso tempo?"
    Deve ser excelente este livro de Philippe Claudel. Quanto às leituras, não consigo acompanhar…
    Um grande beijo, minha querida Amiga Teresa.

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  5. Mais um para a minha lista de leituras.
    Bjs, boa semana

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  6. Oi, querida Alegria!rss
    Já ouvi falar muito desse livro, e sempre de uma maneira positiva. É só lembrar dele quando estiver no shopping!! Colocarei um lembrete dentro da carteira... só falta esquecer a carteira. rsss Gostei o que escreveste sobre ele, somou muito!
    Beijo!

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  7. Depois de uma breve ausência (doente), estou de volta. O Gil com muito trabalho, incumbiu-me de vos visitar... Hoje numa passagem rápida. Espero que entendam...

    Hoje, do Gil António :-O amor e a sua ausência

    Bjos
    Votos de uma óptima Noite.

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