11 dezembro, 2015

"Vai e põe uma sentinela" - Harper Lee

O sermão de hoje é de Isaías, capítulo vinte e um, versículo seis:
Porque assim me disse o Senhor:
Vai e põe uma sentinela que anuncie tudo o que vir!
“Vai e põe uma sentinela” (2015) avança vinte anos em relação à narrativa de “Mataram a cotovia” (1960) e revela uma América dividida pela rivalidade entre brancos e negros, nos turbulentos anos de meados de 1950. 
As personagens principais continuam a ser Scout, agora sempre tratada por Jean Louise, e Atticus Finch, o seu pai, advogado.
Neste romance o narrador é  desconhecido (no anterior romance Scout é a narradora) e começa com Jean Louise a viajar de comboio de Nova Iorque (onde vive) para Maycomb (sua cidade natal). 
Na estação à sua espera está Hank (Henry Clinton), o namorado. Apenas isso: namorado. Ama quem quiseres, mas casa-te com os teus era, para ela, uma máxima instintiva. Henry é advogado e trabalha no escritório do pai. 
Pai que, envelhecido e incapacitado com artrite reumatoide, a espera em casa. Casa onde agora apenas vivem ele e a irmã, Alexandra Finch, que para lá se mudou para o apoiar na doença.
Não estão nem Jem, o irmão, nem Calpurnia, a cozinheira negra. A razão da ausência é dada a conhecer sem grandes pormenores: Jem morreu subitamente e a cozinheira fugiu, na mesma altura, de casa da família Finch.
Vinte anos depois,  ainda há lugar em Maycomb para Jean Louise?
O que vai ver e ouvir que a deixa horrorizada e desiludida com a cidade, com as pessoas de quem gosta, e até com a sua própria família?
Atticus Finch, o pai perfeito que lhe ensinou o real significado da palavra justiça, o advogado íntegro, bondoso e estimado, também a vai desiludir?
Atticus,o corajoso advogado que no passado defendeu em tribunal um negro injustamente acusado de ter violado uma rapariga branca, é agora um septuagenário racista execrável?
Já não há lugar para mim.
Cega, é isso mesmo. Nunca abri os olhos. Nunca me ocorreu olhar o coração das pessoas, vi-lhes apenas o rosto. Ceguinha de todo, pior que uma pedra...
O que foi mesmo que Jean Louise descobriu?
Eu sei a resposta,  porque li o manuscrito perdido na década de 1950, encontrado em 2014 e publicado em 2015, mas não vou revelar.
Revelo apenas que, por mim, tal manuscrito podia ter continuado escondido no fundo da mais funda gaveta.
God bless you, Ms. Harper Lee.

De Harper Lee conhecíamos apenas “Mataram a cotovia”, romance acabado de escrever em 1959, publicado em 1960, vencedor do Prémio Pulitzer de Ficção no ano seguinte e adaptado ao cinema, por Robert Mulligan, em 1962.
Isto porque depois do enorme sucesso a escritora norte- americana afastou-se da ribalta e nada mais publicou.
Inesperadamente, em 2014 surgiu a notícia de que tinha sido encontrado em sua casa o manuscrito de “Vai e põe uma sentinela”, um inédito escrito em meados da década de 1950 – antes, portanto, da escrita e publicação de “Mataram a cotovia”.
Se já estava escrito porque não foi publicado? Mistério!
Harper Lee, agora com oitenta e nove anos, debilitada por um AVC que teve em 2007, quase cega e surda, vive num lar em Monroeville, sua cidade natal. Foi lá que a polícia confirmou que ela estava na posse das suas faculdades mentais e obteve o seu consentimento para publicação de “Vai e põe uma sentinela”. Consta que foi o editor a quem ela apresentou o manuscrito em meados da década de 1950, que a aconselhou a “pegar” nos muitos flashbacks da história e a partir deles escrever um novo romance. Ela seguiu o conselho. Guardou (ou escondeu?) o manuscrito de “Vai e põe uma sentinela” numa gaveta e escreveu “Mataram a cotovia”.
Confuso? Não, estranho!

Vai e põe uma sentinela, de Harper Lee
Tradução de Isabel Nunes e Helena Sobral
Ed. Presença, 2015
239 págs.

Sem comentários:

Enviar um comentário