30 julho, 2015

Carta de Adelina… em “Manual de pintura e caligrafia”, de José Saramago


“Sei que não procedo bem dizendo-te por carta o que vou dizer-te. Pensei falar-te antes de vir aqui, e não tive coragem. E desse há oito dias que digo a mim própria que falarei contigo quando regressar a Lisboa, mas também não terei coragem. Não que eu pense que terás desgosto. Não que eu sinta que me custaria mais do que sempre estas coisas custam. Ambos já vivemos muito, ou o suficiente para não haver grandes novidades, mas a verdade é que difícil olhar para uma pessoa a quem quisemos, não importa por que razões, e dizer: «Agora já não te quero.» É isto que tinha para te dizer. Já não te quero. Podia limitar-me a estas palavras. Estão escritas e eu sinto-me muito aliviada. Ainda não pus a carta no correio, mas é como se já a tivesses recebido. Não vou voltar atrás, e por isso, se calhar, é que resolvi arrumar este assunto por escrito, por carta, de longe. Se estivesse ao pé de ti, talvez me acobardasse. Assim, tu ainda não sabes, mas eu já sei: acabámos a nossa ligação. Surpreender-te-á esta decisão? Não creio. Desde há uns tempos, ou talvez desde sempre, vejo-te fugidio, reservado, recolhido em ti mesmo, como se estivesses no meio de um deserto e quisesses estar nesse deserto. Não me queixo. Nunca me empurraste para fora da tua vida, mas, embora eu não seja muito inteligente, as mulheres pressentem e adivinham. Apertar-te nos braços e sentir que não estás lá, é uma coisa que suportei até certa altura. Não sou capaz de suportar mais. Peço-te que não fiquemos inimigos. Não precisamos de ficar amigos. Talvez eu ainda goste de ti, mas não vale a pena. Não valer a pena, acho eu, é o pior de tudo. As pessoas podem amar e sofrer muito por isso, mas valer a pena. Essas devem conservar o amor que têm, mesmo tendo de continuar a sofrer mais. O nosso caso é diferente. Tivemos uma ligação como muitas, que acaba como merece. Sou eu que decido, mas sei que também desejarias acabar. Apesar de tudo, eu tenho pena. Todas as coisas podiam ser diferentes do que são se não lhes faltasse a diferença, aquela diferença das coisas, aquilo que as distingue muito. Percebo que já estou a escrever de mais. Adeus. Adeus. P.S. – Acho que deves continuar a escrever. Desculpa. Não tenho o direito de dizer isto, uma vez que a tua vida já não me diz respeito. Mas a tua vida alguma vez me disse respeito?”

Grande, colossal, magnânimo, José Saramago!

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