O tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira. O tempo mistura a verdade com a mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido e com aquilo que me contaram que aconteceu. A minha memória não é minha. A minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento.
“Cemitério de pianos”, quarto romance de José Luís Peixoto, baseia-se, apenas circunstancialmente, na história do atleta português Francisco Lázaro, que faleceu quando corria a maratona, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912.
Um dos personagens do romance tem em comum com o malogrado atleta, o nome (Francisco), a profissão (carpinteiro) e o gosto pela corrida. Todo o resto é ficção.
Há dois narradores-personagens neste romance. Têm o mesmo nome – Francisco, e a mesma profissão – carpinteiros. São pai e filho. Em tempos diferentes, eles desvendam a história da sua família, a família Lázaro: Francisco-pai, mãe, filhos (Marta, Maria, Francisco, Simão) e netos (Elisa, Ana, Hermes, Íris, Francisco). Família que vive entre o Alentejo e o bairro de Benfica, em Lisboa.
Todo o romance é impregnado da ideia de morte, mas o que se celebra é a vida.
Todo o romance é impregnado da ideia de morte, mas o que se celebra é a vida.
Começa com a morte de Francisco-pai, a quem cabe a primeira frase da história: Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer - e termina com a de Francisco-filho, por exaustão, no quilómetro trinta de uma maratona, precisamente no dia do nascimento do seu filho. Precisamente como aconteceu com o seu pai, que nasceu no dia em que o pai faleceu.
Quilómetro trinta
caio sobre mim próprio: pedras; a minha face assente sobre a estrada, o mundo turvo a partir dos meus olhos, a minha boca a sorver pó, as minhas pernas queimadas, brasas, os meus braços queimados, o meu coração, o meu peito a respirar
o tempo passa em Benfica, o silêncio passa sobre o cemitério de pianos
tenho de ir ao encontro do meu pai.
Mas a morte não é o fio condutor deste romance, que tem por foco principal as relações familiares. Esse está escondido na oficina de carpintaria da família: O Cemitério de pianos - o espaço central da narrativa.
O Cemitério de pianos. A minha mãe evitava falar dessa divisão fechada da oficina. Se o fazia, dizia sempre que não havia lá nada que me interessasse. Quando essa explicação deixou de ser suficiente, falou-me de sustos. Disse:
- Há sustos lá dentro.
Não. Lá dentro há pianos. Muitos pianos. Pianos "mortos", à espera que lhes dêem vida.
Pela oficina, ou melhor, pelo cemitério de pianos, passa a vida inteira desta família. Uma vida feita de amor, música, alegrias, tristezas, violência, dor, traições, fragilidades, morte e… vida.
Não, não vou desvendar o que sei sobre a família Lázaro, para deixar que se deslumbre e aplauda a grande e belíssima história imaginada por José Luís Peixoto.
Uma parte do meu pai ressuscitava quando me via ao espelho, quando existia e quando as minhas mãos continuavam a construir tudo aquilo que ele, secreto, tão próximo e tão distante, tinha começado. Então, pensava que havia uma parte do meu pai que permanecia em mim e que entregava aos meus filhos para que permanecesse neles até que um dia começassem a entregar aos meus netos. O mesmo acontecia com aquilo que era apenas meu, com aquilo que era apenas dos meus filhos e com aquilo que era apenas dos meus netos. Repetíamo-nos e afastávamo-nos e aproximávamo-nos. Éramos perpétuos uns nos outros.
Leia!
Cemitério de pianos, de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal, 2006
283págs.
Já li e gostei imenso :)
ResponderEliminarTambém já li há alguns anos e adorei! Aliás, José Luís Peixoto é um dos meus escritores (contemporâneos) favoritos.
ResponderEliminarBeijocas
Olá,
ResponderEliminarNunca li nada deste escritor, tenho que experimentar, pois tenho lido tantas coisas boas sobre ele.
Gostei muito da tua opinião.
Boas leituras.