20 abril, 2012

"História do cerco de Lisboa" - José Saramago

Certas relações harmoniosas criam-se e duram graças a um sistema complexo de pequenas inverdades, de renúncias, uma espécie de bailado cúmplice de gestos e posturas, tudo resumido no nunca assaz citado provérbio, ou sentença, que muito melhor lhe assenta esta designação, Tu que sabes e eu que sei, cala-te tu, que eu me calarei.
Os primeiros capítulos deste livro de Saramago são difíceis de compreender. Que raio de enredo é este que entrelaça o passado com o presente? Questionamo-nos diversas vezes.
Sem resposta, apetece largar o livro e esquecer de vez o revisor Raimundo Silva.
Não faça isso. Continue a ler e rapidamente vai entender que num só livro estão contadas duas histórias, daí a dificuldade inicial. A partir daí o deleite será total.
É isso possível? Sim, com Saramago tudo é possível.
A história começa com Raimundo Silva, solteiro, com mais de cinquenta anos, revisor de profissão, a rever um tratado de história com quatrocentas e trinta e sete páginas, intitulado “História do Cerco de Lisboa” – corria o ano de 1147 quando os portugueses, ajudados por cruzados, tomaram a cidade aos mouros.
No final da revisão, lê vezes sem conta a linha que afirma que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa e eis que, pela primeira vez em tantos anos de profissão, infringe o código deontológico dos revisores, ao introduzir deliberadamente no texto um NÃO que altera toda a verdade histórica.
Com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à pagina, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa.
Depois do livro editado e do erro descoberto, Raimundo é convocado para uma reunião na editora. Querem saber o que o levou a tomar tão estranha atitude (uma perturbação momentânea, diz ele), exigem que peça desculpas ao autor da história (com quem tem relações cordiais) e apresentam-lhe Maria Sara, a nova responsável pelos revisores da editora.
A partir daí a vida calma e desinteressante de Raimundo vai mudar.
Diz-nos o narrador, que a sua liberdade começou e acabou naquele preciso instante em que escreveu a palavra não, de que a partir daí uma nova fatalidade igualmente imperiosa se havia posto em movimento, e que nada mais lhe resta agora que tentar compreender o que...
Posteriormente, Maria Sara entrega-lhe o único volume da “História do Cerco de Lisboa” que não tem errata e propõe que ele reescreva a história considerando a recusa dos cruzados em ajudar os portugueses.
É assim que começa a ser escrita, pelo revisor Raimundo Silva, a segunda história deste livro –  a conquista de Lisboa pelos portugueses sem a ajuda dos cruzados. Nesta sua versão dos factos históricos, Raimundo dá destaque à história de amor do soldado Mogueime pela barregã Ouroana, durante o cerco e a tomada de Lisboa.
Simultaneamente à escrita do amor ficcional, Raimundo “faz o cerco” a Maria Sara e apaixona-se perdidamente. Vai viver com ela uma história de amor bem real.

Confuso?
Não, pois estamos a ler Saramago.
Agora um aparte; neste livro Saramago usa e abusa de provérbios. Reparem bem como aparecem seguidinhos:
Candeia que vai adiante alumia duas vezes, contrariavam os segundos, O primeiro milho é dos pardais, rematavam irónicos os terceiros, O último a rir é aquele que rirá melhor.
Só mesmo ele…
Fabuloso!

História do cerco de Lisboa, de José Saramago
Caminho, 1989
348 págs.

9 comentários:

  1. Este é dos que tenho na estante por ler e que me suscita bastante curiosidade. Sei que tenho de o ler quando a altura for propícia, pois para ler Saramago gosto de estar em pleno para lhe dedicar toda a minha atenção e afeição. ;)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Concordo contigo, Saramago arrebata toda a nossa atenção.
      Eu já decidi, em Junho vou reler mais um livro de Saramago. Ainda não decidi qual. Aceito sugestões.
      Este romance é muito interessante. Lê que irás gostar.
      Bjs.

      Eliminar
    2. Ainda não li todas as suas obras, por isso ainda não estou nesse ponto de releitura, como tu estás, Teresa. ;)
      Qualquer um dos que já referiste aqui podia ser uma boa sugestão, mas para não ser uma repetição, que tal voltares a "O Ano da Morte de Ricardo Reis" ou "Ensaio Sobre a Cegueira"? Também gostei muito de "Todos os Nomes" e "O Homem Duplicado", apesar deste último ter-me sabido a pouco, tudo por culpa de "O Duplo" de Dostoiévski.
      Boas re(leituras)!

      Eliminar
    3. Obrigada pelas sugestões. A próxima releitura de Saramago será "Ensaio sobre a lucidez". Conheces?
      Já decidi que não vou reler "Ensaio sobre a cegueira". Isto porque já o li, claro, depois porque o vi no cinema e de seguida na TV. É "cegueira" a mais, não concordas?
      Bjs. e bom fim-de-semana.

      Eliminar
  2. Comecei a ler este livro à uns anos atrás e lembro-me que só li os primeiros capítulos. Como não me estava a entusiasmar desisti. Pelos vistos fiz mal. Hei-de dar-lhe uma segunda oportunidade.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Fizeste mal, Landa. Volta a ele e "delicia-te" com a escrita do nosso Nobel.
      Este é um daqueles livros que não prendem de imediato, temos que lhe dar tempo...
      Bjs.

      Eliminar
  3. Ainda não li este livro, mas já está na minha estante...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Boa Tiago, em frente com a leitura do seu (nosso) Nobel.
      Bom fim-de-semana com óptimas leituras (tenho espreitado o seu blog e "confiro"...).

      Eliminar