01 maio, 2020

"Poesia presente" - António Ramos Rosa

Em qualquer parte um homem
discretamente morre.

Ergueu uma flor.
Levantou uma cidade.

Enquanto o sol perdura
ou uma nuvem passa
surge um nova imagem.

Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri.
Estou vivo
mas quero viver
Não quero salvar-me porque não posso salvar-me
porque a salvação não existe
Perdi o meu percurso
e tudo o que herdei de mim próprio
No mundo as palavras não compensam
a violência absurda do sofrimento
Na página elas podem ser a invenção
de um frémito perante um corpo nu
É na palavra que se acende a minha vida
mas a minha vida sobra sempre como uma cauda cinzenta
Porque é o infortúnio a norma
e não há resgate para a morte?
O mundo é estranho mas é irrefutável
na sua contínua sucessão que nos transcende
e passa sobre nós como se não existíssemos
Teremos acaso de nos unir e reinventar as nossas vidas
para que os deuses nasçam do nosso desamparo?
O silêncio conduz-nos à sua infinita fronteira
mas o ócio iluminado pode vogar na casa
como se estivéssemos entre palmeiras e araucárias
Toda a viagem é um regresso ao ponto de partida
para partir de novo entre a água e o vento
António Ramos Rosa, de seu nome completo António Vítor Ramos Rosa, nasceu em Faro-Algarve, em 1924 e faleceu em Lisboa, em 2013.
Estudou em Faro, e não terminou os estudos secundários por motivos de saúde.
Trabalhou como empregado de escritório, e desenvolveu o gosto pela leitura de romancistas e poetas portugueses e estrangeiros.
Crítico do Estado Novo, em 1945 participou na formação do MUD Juvenil (Movimento de União Democrática) e conheceu a prisão política.
Em Lisboa, ensinou Português, Inglês e Francês, trabalhou numa firma comercial, encetou uma brilhante carreira de tradutor minucioso,
Começa a escrever poemas e é incentivado a publicá-los.
Em 1958, o jornal «A Voz de Loulé»  publicou um poema seu "Os dias sem matéria", e no mesmo ano chegou às livrarias o livro "O grito claro", o primeiro de uma obra poética com mais de cinquenta títulos.
Foi distinguido com vários prémios, entre os quais: Prémio Nacional de Poesia (1971), Prémio Pessoa (1988), Prémio da Bienal de Poesia de Liége (1991), Grande Prémio Sophia de Mello Brener Andresen (2005).
Em 2003 a Universidade de Faro atribuiu-lhe o grau de Doutor Honoris Causa.
Foi casado com a escritora Agripina Costa Marques.
No final da vida, o poeta lido e reconhecido isolou-se e trocou a arte das palavras pela arte do desenho de expressivos rostos femininos.
Quem foi afinal o poeta atento ao poder da palavra, activista e teórico literário, que escrevia poemas «numa folha, leve e livre» (título do seu último livro, publicado em 2013); com uma «capacidade imaginativa verbal raríssima» (António Carlos Cortez); o «poeta pobre. Mas poucos neste nosso século nos terão assim investido da riqueza de sermos homens» (Vergílio Ferreira)?
José Tolentino Mendonça, que prefaciou esta Antologia, diz assim:
"Para compreender o «caso» Ramos Rosa, tarefa que o futuro há-de apaixonadamente abraçar, será necessário avaliar até que ponto, até que ardente ponto, ele emerge como figura disruptiva na paisagem portuguesa entre séculos. Já Eduardo Lourenço o chamou, com total razão, «anti-Pessoa». Mas isso é apenas o preâmbulo. Ele é também um «anti-Herberto», e a história que se vier a escreve o dirá".

A Antologia  "Poesia presente" (2014) inclui várias dezenas de belíssimos poemas, escolha pessoal de Maria Filipe Ramos Rosa filha única do poeta.

Nela eu encontrei-me com um grande poeta português.
Compre, leia!

(Fotos de ARR e do desenho, da net.)

15 comentários:

  1. Conheço pouco da POESIA de António Ramos Rosa, por isso, anotei essa antologia poética 📚

    Que o mês de MAIO 🌹 nos traga a liberdade desejada‼

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  2. Adoro poemas assim, espremidos da alma!

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  3. Não é o meu poeta preferido, mas reconheço-lhe a qualidade e até a unicidade da voz.

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  4. O mundo é mesmo estranho, mas essa estranheza e-lhe dada pelo ser humano, ser complexo que nunca está satisfeito e que reclama muito mais do que agradece. Nestes tempos tão dificeis em que um simples virus foi capaz de " mandar " no tal do homo sapiens " temos a obrigação de aprender que " teremos de nos unir e reinventar as nossas vidas ", mas, se muitos vão mudar para melhor, muitos outros continuarão a achar que não precisam de ninguém e que, se o infortúnio bate à porta de milhares de pessoas, isso..bem...é norma, faz parte da vida e não há nada a fazer; o que importa para esses é o lucro fácil, a exploração dos mais desfavorecidos e, infelizmente, vemos isso, agora, nesta fase de grande sofrimento para a maioria das pessoas. Por isso, Amiga do coração, não acreito muito que tenhamos uma sociedade melhor depois que tudo terminar; a solidariedade tem sido muita, mas vai acontecer como no Natal, acaba logo que a ultima luzinha se apague nas cidades. Gostei muito deste poema, Teresa! É bom que nos lembremos sempre que tudo passa rápido demais e a vida segue o seu ritmo sem se importar com o que nós fazemos dela. Que este tempo nos ensine a aproveitar cada momento como se fosse o ultimo, dando valor aquilo que realmente importa, Amiga, os nossos abracinhos sempre foram virtuais, mas, aquela nossa intenção de os tornar reais vai ter de ser adiada e não sabemos até quando. A vida manda e nós obedecemos, não ê? Então, aqui te deixo um enorme abraço, bem apertado para que todos os beijinhos cheguem aí, sem que se perca um sequer. Desculpa o " sumiço ", mas...o desânimo às vezes se instala e demora a desaparecer; acho que também lhe posso chamar de virus, não? SAÚDE, AMIGA!
    EMILIA

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  5. Um excelente poeta. E que além de o ser deixou na Internet um enorme trabalho de recolha poética e biográfica de dezenas de poetas que muito útil se torna para estudos.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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  6. passando para desjar uma feliz noite parabens pelo poema nao conhecia bjs saude

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  7. Meu conterrâneo já homenageado pelos seus municípios, não li tudo, mas já o li, é um poeta fantástico.
    AG

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  8. de todo os poetas que já li, o que mais gosto, é o poeta popular meu conterrâneo Antonio Aleixo, tudo que ditou porque não sabia escrever, tem enorme significado. tem muito haver com a minha personalidade.

    Onde Nasceu a Ciência e o Juízo?
    MOTE

    — Onde nasceu a ciência?...
    — Onde nasceu o juízo?...
    Calculo que ninguém tem
    Tudo quanto lhe é preciso!

    GLOSAS

    Onde nasceu o autor
    Com forças p'ra trabalhar
    E fazer a terra dar
    As plantas de toda a cor?
    Onde nasceu tal valor?...
    Seria uma força imensa
    E há muita gente que pensa
    Que o poder nos vem de Cristo;
    Mas antes de tudo isto,
    Onde nasceu a ciência?...

    De onde nasceu o saber?...
    Do homem, naturalmente.
    Mas quem gerou tal vivente
    Sem no mundo nada haver?
    Gostava de conhecer
    Quem é que formou o piso
    Que a todos nós é preciso
    Até o mundo ter fim...
    Não há quem me diga a mim
    Onde nasceu o juízo?...

    Sei que há homens educados
    Que tiveram muito estudo.
    Mas esses não sabem tudo,
    Também vivem enganados;
    Depois dos dias contados
    Morrem quando a morte vem.
    Há muito quem se entretém
    A ler um bom dicionário...
    Mas tudo o que é necessário
    Calculo que ninguém tem.

    Ao primeiro homem sabido,
    Quem foi que lhe deu lições
    P'ra ter habilitações
    E ser assim instruído?...
    Quem não estiver convencido
    Concorde com este aviso:
    — Eu nunca desvalorizo
    Aquel' que saber não tem,
    Porque não nasceu ninguém
    Com tudo quanto é preciso!

    António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."

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    1. Excelente, amigo António!
      Obrigada, gostei.
      Beijo, bom domingo, saúde.

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  9. Oi, amadinha, não conhecia o poeta, mas gostei muito do que li, na obra e na biografia.
    António Ramos Rosa em seu belo poema é descrente e sofrido com a vida e com a humanidade, mas gostaria de muito mais tempo para continuar a viver.
    É a tal coisa: está insatisfeito, mas longe de morrer, semelhante ao cristão que adora Deus, fala em seu encontro no paraíso, mas não quer deixar o planetinha - jamais!

    "O mundo é estranho mas é irrefutável
    na sua contínua sucessão que nos transcende
    e passa sobre nós como se não existíssemos"

    Um beijo, querida amiga.

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  10. Á medida que o tempo foi passando o Poeta António Ramos Rosa foi-nos oferecendo uma poesia cada vez mais profunda, cada vez mais rica, cada vez mais próxima da pessoa que somos. Eu sinto-o assim.
    Um bom fim de semana minha Amiga Teresa.
    Um beijo.

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  11. Adoro os poemas de António Ramos Rosa.
    Feliz Dia da mãe.
    Beijinhos

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  12. Um poeta que, confesso, me passou ao lado.
    Beijo, boa semana

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  13. Gostei demais do poema, não conhecia, vou procurar mais alguns para ler.

    "O mundo é estranho mas é irrefutável
    na sua contínua sucessão que nos transcende
    e passa sobre nós como se não existíssemos"

    Tão real isso!!

    Abraço e boa semana, Teresa!

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