A memória é uma vasta ferida.
É belíssimo o quarto romance de Chico Buarque. Uma saga familiar caracterizada pela decadência social e económica, uma sucessão de monólogos contraditórios, uma triste, enternecedora, divertida fusão das memórias de um velho – Eulálio Montenegro d’Assunpção «e não Assunção, como em geral se escreve» – com factos dos últimos 200 anos da História do Brasil.
Eulálio, protagonista de “Leite derramado”, viúvo de Matilde, uma morena «de pele quase castanha», solitário, frágil, pobre (mas mantendo os tique de superioridade social), está deitado na enfermaria de um hospital «infecto», e sendo tratado por «gente desqualificada». Com «a cara amassada e a barba por fazer» e a cabeça «meio embolada» espera ansiosamente pela filha Matilde «você nem vai me dar um beijo? É desagradável ser abandonado assim...», desespera por morfina, barafusta com os médicos «saiba o doutor que meu pai foi um republicano de primeira hora, íntimo de presidentes», implica com as enfermeiras «lá vem você com a seringa...», enquanto vai repetindo histórias da sua vida.
Eulálio nasceu em 1907, no seio de uma família tradicional brasileira próxima da elite e do poder. O pai foi senador da Primeira República; o avô foi um «figurão do Império, grão-maçon e abolicionista radical», o bisavô um barão negreiro; o trisavô desembarcou no Brasil com a corte portuguesa; o tetravô lutou contra as tropas de Napoleão.
Depois dele, vem o declínio da família: a filha casa com um imigrante italiano; o neto morre nas prisões da Ditadura; o tetraneto trafica drogas.
«… todo o dia é isso, acordo com o sol na cara, a televisão aos berros, e já compreendi que não estou em Copacabana, foi-se o chalé há mais de meio século», e o palacete em Botafogo, o apartamento na Tijuca, a fazenda na «raiz da serra, a...
«Hoje sou da escória igual a vocês, e antes que me internassem, morava com minha filha de favor numa casa de um só cômodo nos cafundós...».
«Hoje sou da escória igual a vocês, e antes que me internassem, morava com minha filha de favor numa casa de um só cômodo nos cafundós...».
E fico por aqui, sabendo que deste romance - admiravelmente bem escrito - muito ficou por desvendar. E que tal ser você a escutar o tanto que Eulálio tem para contar?
As pessoas não se dão o trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro.
As pessoas não se dão o trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro.
Lido em 2009, relido em 2020 com igual entusiasmo. Lido ou ouvido? Eu sei lá!
Recomendadíssimo!
(Encontra mais frases sublinhadas neste livro, no "pétalasdesabedoria".)
(Encontra mais frases sublinhadas neste livro, no "pétalasdesabedoria".)
Leite derramado, de Chico Buarque
Ed. Dom Quixote, 2009
223 págs.
Ola:- Acredito que seja um romance muito bonito de ler
ResponderEliminar.
Cumprimentos
Tudo vai ficar bem
Não li, Teresa, mas vou ver se leio este livro que me parece comovente. Escutar os mais velhos. Ora aí está uma coisa que algumas pessoas não sabem quanto é importante para aprender o que na vida vale realmente a pena…
ResponderEliminarUm bom fim de semana.
Um beijo.
Até que enfim, Amiga do coração...um livro que já li e tenho na minha estante; no entanto, nao o apreciei tanto quanto tu e, claro, não penso voltar a lê-lo; também tenho o Budapeste e deste gostei ainda menos. Já alguém disse ( não sei se foi o próprio....) que era um fantástico letrista e eu concordo plenamente, mas como romancista, não me agrada muito. Claro que é só a minha opinião e, sendo uma opinião vale o que vale. Quanto a ouvir os velhinhos, há muito que aprendi a ouvi-los, porque senti que caminhava parz essa fase e essa constatação pesa muito. Creio que já te falei dum projecto aqui da nossa autarquia, chamado, palavras e afectos que consiste num voluntariado so3 para fazer companhia a pessoas idosas que vivam sozinhas; durante alguns anos ( talvez 3...)acompanhei uma senhora que tem agora 93, mas, depois que nasceu a Beatriz tive que a deixar; com este virus, esse voluntariado teve de ser interrompido por serem estas pessoas grupo de risco; no entanto todos os dias vão lá os tecnicos fazer-lhe a higiene e também levar a comida. Além de conversar e, especialmente ouvir, também fazia alguns recados , mas o mais importante era escutá-la; e assim, Amiga, fui aprendendo a ter mais respeito e atenção com as pessoas de idade, principalmente as que vivem sozinhas; esta é viúva, mas não teve filhos; tem umas sobrinhas e amigas que a visitavam bastantes vezes, mas, agora, com a situação que vivemos devem ter acabado essas idas a casa dela. Muito, muito triste! Um dia destes vou telefonar-lhe para ver como está. Teresa, e tu, como vais? Espero que os dois estejam bem; nós estamos, mas continuamos saindo só por necessidade e de máscara; já cansa esta clausura, mas, se pensarmos nas pessoas que estão na situação desta senhora que eu visitava, logo o ânimo volta e paramos de reclamar. Deixo-te um abraço carregadinho de amizade e junto dela vão também muitos beijinhos; espero que o abraço consiga levar tudo; é enorme e muito apertado, por isso chegarão aí sem problemas. CUIDA-TE
ResponderEliminarEmilia
Querida amiga, os teus comentários são também «palavras e afectos» que depois de lidos continuam comigo num apertado abraço.
EliminarÉ bom ler-te! É bom saber-te «boa pessoa»!
Quanto ao Chico Buarque, pois eu gosto da sua escrita. Mas, como com qualquer outro escritor, há romances de que gosto muito e outros de que gosto menos. De momento ando a reler «Benjamim» e menina, só te digo, não está a ser fácil...
(Poucas vezes me aconteceu, mas há dias interrompi a leitura do último romance de um escritor português. Por certo voltarei a ele, para já fiz uma pausa. Complicadinho, sabes?! E dele já li tudo o que escreveu, e foi bastante, e adorei!)
Estamos bem. O Carlos na maior. Eu, já azamboada com a cor das paredes da minha casa...
Fica/fiquem bem.
Beijinhos para a pequenita. Abracinhos muito amigos para ti.
Eis um livro que comprei porque gosto muito do Chico e tinha curiosidade. Andava a ler outros e pus de parte. Entretanto disseram-me que o livro não valia nada, que se não fosse quem era ninguém editava o livro. De modo que foi a medo que o comecei a ler, mas a verdade é que gostei imenso dele. Foi o único que li, nem sei se tem mais algum.
ResponderEliminarAbraço, saúde e bom fim-de-semana
Olá, Elvira!
EliminarSim, Chico Buarque tem outros romances publicados: Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), O irmão alemão (2014), Essa gente (2019). Falta-me apenas ler «O irmão alemão». O estranho é nunca ter trazido o Chico para o Rol de Leituras. «Acordei» quando em 2019 foi distinguido com o Prémio Camões.
Beijo, bom fim-de-semana e, claro, muita saúde.
Pareceu-me bem legal, Teresa, nunca li livros do Chico Buarque, infelizmente. Adoro as letras e músicas, pelo jeito nos livros também namora as palavras com habilidade fenomenal.
ResponderEliminarOuvir os mais velhos e os mais jovens também é fundamental para o crescimento em todos os sentidos. Ouvir e refletir.
Adorei o post, abraço!
Somente li "Budapeste", mas acho que o Chico Buarque é um artista completo em toda a acepção da palavra !!!
ResponderEliminarBom dia de paz e esperança,querida amiga teresa!
ResponderEliminarEscolher o Chico é acertar sempre. Um artista completo numa múltipla dimensão da palavra arte. Mereceu o grande prêmio Camões.
Tenho um amado velhinho de 86, meu padrinho de batismo que não só ouço como obedeço...
Tenha um ótimo domingo!
Bjm carinhoso e fraterno
O Chico Buarque é genial.
ResponderEliminarNa palavra e na música.
Beijo, boa semana
Bem, já passei aqui várias vezes sem comentar. Umas vezes porque não tinha tempo para ler e depois escrever, outras porque o cansaºo me impedia de pensar. E hoje, que estou fisicamente espapaçada, a mente predispôs-se à leitura e está mais activa que o resto do corpo. Portanto, cá vai:
ResponderEliminarjá estive duas vezes com o livro na mão para o comprar. Não calhou. Pode ser num outro dia. Também me pareceu bom.
Quanto aos velhos, que todos os velhos nos pertencem, eles já deram o seu contributo para que o nosso mundo fosse o que foi para nós e até talvez ainda ajudem a segurá-lo. Mas é que estamos sempre em dívida com eles se os pomos num lar então, aumenta. E a maior parte está num lar. Ainda não entendi, se as famílias não podem tê-los durante o período diurno - todos trabalham e eles já não se desenvencilham sozinhos - qual a razão de não poderem ir dormir a casa, os Centros de Dia parecem-me uma ideia melhor enquanto ainda podem mover-se. Penso que nos lares se sentem um bocadinho à margem da família, como se diz vulgarmente, são "empontados "para o lar e a família descansa. Que tristeza tão grande. Tanto lhes deram e tão pouco recebem. Ora bolas.
E, no entanto, há situações em que o Lar de Terceira Idade é a única solução. Quando as pessoas perdem o conhecimento tanto lhes dá estar aqui como ali, não conhecem ninguém. E Deus nos defenda de tal situação.
Boa tarde Teresa
Eu adorava ouvir as histórias dos meus avós e dos pais.
ResponderEliminarParece ser um livro muito interessante, obrigado pela partilha.
Beijinhos