Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Versos de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa (1883-1935)
(Primeiros versos de Fernando Pessoa, a quadra "À minha mãe", escrita em Julho de 1895.)
Sabia que (10):
“1930 – (Fernando Pessoa vive um) intenso período de criação heteronímica.
1931 – Escreve uma extensa carta a João Gaspar Simões na qual teoriza as suas opiniões quanto à «ficção» em literatura, manifestando um substancial e irónico desacordo em relação às teorias freudianas.
1932 – Em Setembro concorre com insucesso a um lugar de conservador-bibliotecário no Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães, em Cascais.
Em Novembrp publica em «Fama», dirigida por Augusto Ferreira Gomes, o artigo O Caso Mental Português.
1933 – Atravessa outra profunda crise psicológica, mas não desiste do trabalho, nem do trabalho literário.
1934 – Publica Mensagem e concorre com este volume ao prémio «Antero de Quental» do Secretariado de Propaganda Nacional. É-lhe conferido o prémio Categoria B, por uma pretextuosa questão de número de páginas.
1935 – Em Janeiro escreve uma extensa carta a Adolfo Casais Monteiro na qual explica a génese da heteronímia. Publica no «Diário de Lisboa» (4 de Fevereiro) o artigo Associações Secretas contra uma proposta de lei apresentada à Assembleia Nacional para a abolição das sociedades secretas e na qual é visada sobretudo a Maçonaria.
No dia 29 de Novembro é internado no Hospital de S. Luís dos Franceses onde lhe é diagnosticada uma cólica hepática. A sua última frase, escrita a lápis, é em inglês. Diz: «I know not what tomorrow will bring.»
Morre no dia 30, às 20.30. É enterrado a 2 de Dezembro, no Cemitério dos Prazeres, no jazigo de sua avó, D. Dionísia Seabra Pessoa.”
("Fernando Pessoa, uma fotobiografia", de Maria José de Lancastre).
Não sabia? Eu também não!
O que importa é que agora sabemos mais sobre a vida do poeta do desassossego. TUDO, nunca saberemos.
«I know not what tomorrow will bring.»
(Fotos da net.)
Gostei do poema que não conhecia. Estudámos Fernando pessoa na Universidade Sénior durante dois anos, mas a sua obra é tão extensa que demos muito pouco de Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Estudámos Pessoa, A Mensagem, e O livro do Desassossego, visitámos a sua casa museu, demos Alberto Caeiro que me encantou e O Guardador de Rebanhos, e dois ou três poemas dos outros dois, que ficaram para um próximo estudo.
ResponderEliminarAbraço e bom fim-se-semana
Confesso que não conheço muito da obra dele.
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
Tão bom ler essas poesias tão bem escolhidas e ainda cheia de informações abaixo! Valem sempre! beijos, chica
ResponderEliminarMinha querida Amiga Teresa, bom dia! Este poema do Alvaro de Campos é dos meu preferidos. Encontro-me nele. E quem não se encontra? Um génio, este nosso Fernando Pessoa.
ResponderEliminarUm bom fim de semana.
Um beijo enorme.
Entro AQUI, perco-me na galeria e esqueço de comentar:-*
ResponderEliminarBom dia, não basta ouvir falar de Fernando Pessoa, é necessário ler seus poemas e por vezes mais que uma vez para os compreender bem, o poema partilhado é fantástico, "Arre, estou farto de semideuses!".
ResponderEliminarO poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
Votos de feliz semana,
AG
Boa noite de paz, querida amiga Teresa!
ResponderEliminarPor coincidência hoje postei Caeiro também no meu.
Gosto do poeta do desassossego.
Tenha dias abençoados!
Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem
Pessoa coloca-se de um lado e o resto do mundo - dos amigos, diz ele - está do outro. Mas o que julgo é que todos nós estamos à vez, nos dois lados. Gabamo-nos em demasia, pomos em palavras o que quereríamos ser e não conseguimos, ou apenas não somos. E, se calha a outros fazerem isso mesmo que nós já fizemos, é vulgar que não nos lembremos, como é vulgar que critiquemos e nos sintamos do lado dos que levam porrada.
ResponderEliminarMas nada do que eu disse tira um átomo ao valor do poeta.
Teresa, querida, que poema!!! Bem assim, conheço tanta gente como ele diz, são únicos, os certos, os príncipes, os inteligentes, os espertos, os tudo! E tudo dessa gente é melhor. Também estou farta.
ResponderEliminar"Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"
Uma das piores coisas é lidar com gente assim, tenho uma atitude muito definida, algo como descaso, querer ficar longe e não se prestar como receptáculo para um espírito tão exposto de inferioridade dessa gente que não é gente. Poema inteligente, sensível dito com certo sarcasmo até muito elegante para meu gosto! Eu não teria essa elegância.
"Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo."
Adorei também 'o saber!'
Querida, um ótimo fim de semana, ao lado de gente que é gente!
Beijo!
Pois é, Teresa, tu sabes melhor que eu, que Fernando Pessoa escreveu poemas com outros nomes (heterônimos), sendo que um dos mais conhecidos foi Álvaro de Campos, que dá assinatura a este extraordinário "Poema em linha recta":
ResponderEliminar"Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?"
Aliás, querida amiga Teresa, sobre os heterônimos está nesta tua excelente postagem:
"Sabia que (10):
“1930 – (Fernando Pessoa vive um) intenso período de criação heteronímica."
É sempre muito bom sabermos uma pouco mais sobre a vida e a obra de Fernando Pessoa.
Uma ótima semana, com muita paz, Teresa.
Um beijo.
Pedro
Este homem tinha mesmo uma imaginação delirante!!
ResponderEliminarBeijo, boa semana
Una entrada muy interesante, donde además de contarnos la biografía de este poeta, nos pones como muestra un original poema, que aunque se escribió hace muchos años, tiene detalles que se podría utilizar hoy en día.
ResponderEliminarUn abrazo.
Estimo todos os Pessoas
ResponderEliminarBoa partilha
Bj
Pessoa foi toda a vida um homem perturbado.
ResponderEliminarPoder-se-á dizer (sem o ofender) que a sua genialidade literária provém dessa "insanidade"?
Beijinhos pensativos
(^^)
ResponderEliminarÁlvaro de Campos, essa força da natureza!
Excelente a divulgação da "Fotobiografia" de Fernando Pessoa.
Sempre com elementos que nos fazem ver mais de perto este nosso grande Poeta.
Beijinhos
Olinda