21 maio, 2019

"Pão de açúcar" - Afonso Reis Cabral

Como é que se vivia assim (…) no fundo de uma cave, no fundo de uma barraca, no fundo da vida.
Quatro anos depois de  “O meu irmão”, romance vencedor do Prémio Leya 2014, Afonso Reis Cabral publica “Pão de Açúcar”, romance que ficciona factos reais: a trágica morte de Gilberta Salece Júnior, brasileira, transexual, sem-abrigo, toxicodependente, com sida e outras doenças.
Em Fevereiro de 2006, os Bombeiros Sapadores do Porto resgataram o corpo sem vida de Gilberta do poço/buraco, com cerca de 10 metros de profundidade, escondido na cave de um prédio inacabado e votado ao abandonado. Nu da cintura para baixo, o corpo apresentava marcas dum espancamento brutal.
Semanas depois, os órgãos de comunicação social divulgaram que Gilberta foi agredida dias a fio por um grupo de 14 rapazes e atirada ainda com vida para o poço. Rapazes com idades compreendidas entre os 12 e os 16 anos, alguns problemáticos, retirados a famílias negligentes e acolhidos na Oficina de São José, onde o acompanhamento dos jovens não é o melhor.
«O que pode levar pessoas da minha idade, da minha cidade, a fazer isto? E a fazer isto a alguém, desamparado?» pensou incrédulo Afonso Reis Cabral, então com 16 anos, nascido em Lisboa e criado no Porto. O mesmo pensou o país inteiro, em estado de choque.
Dez anos depois do horrendo crime, o autor decide investigar os factos na tentativa de compreender o que realmente se passou na cave do prédio conhecido como “Pão de Açúcar”. Durante mais de um ano pesquisou as vidas da vítima e dos agressores, percorreu as «zonas sujas» da cidade, leu decisões do Tribunal de Família e Menores do Porto, visitou a cave (o edifício continuava abandonado), leu notícias, visionou reportagens, foi a bares, falou com amigos e conhecidos dos rapazes e de Gilberta, esteve dentro da última casa onde ela viveu, percorreu ruas, estudou trajectos. (...) meti-me ao trabalho de campo sem o qual um livro como este não se escreve (...) depois baralhei com ficção, que é como se faz um romance.
Não chegou a falar com os rapazes mas fez deles personagens meticulosamente desenhadas, e para que nada o afastasse da matriz ficcional entregou a narração dos acontecimentos a um protagonista do hediondo crime: Rafael Tiago (Rafa).
Na “Nota antes” (antes do primeiro dos 56 capítulos do romance) o autor engana o leitor (e o leitor permite o engano) quando diz ter recebido uma carta de Rafael  sobre o crime, que começava com «Às vezes, a vida é uma coisa tão bela que choro de ternura e não ligo ao que dizem», ter tido com ele encontros e conversas no Porto, e que num deles lhe prometeu: «A história é tua, como se fosses tu a contá-la, mas eu escrevo-a por ti».
Rafael, 12 anos, foi o primeiro rapaz a ver Gilberta (Gi), 45 anos,  na cave onde ela doente e sozinha sobre(vivia). Chocado com a aparência dela, o desamparo em que vivia na barraca que «fedia», voltou muitas vezes, com comida, água e tudo o que conseguia pilhar no trajecto da Oficina-"Pão de Açúcar". Tornaram-se amigos e confidentes. Ela era um segredo apenas seu, não o partilharia com os amigos. 
Mas o dia chegou em que ele o partilhou e... na escuridão da cave seres humanos comportaram-se como monstros.
… os lugares certos na vida são os lugares errados. Como na cave, ao lado de Gi.

Romance totalmente conseguido, ficção de uma história real com final infeliz.
Recomendo!

Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral
Ed. D. Quixote, 2018
251 págs.

8 comentários:

  1. Um acontecimento literário de qualidade incomparável, embora o acontecimento em que se baseia seja terrívelmente bárbaro.

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  2. Poxa, Teresa, que coisa brutal! Isso não me surpreende mais, depois chamamos essas pessoas de animais! Não, são humanos mesmos! Mas sempre que vemos algo assim, a decepção vem junto e cada vez maior. Esse planeta ainda vai explodir pelas mãos dos humanos. Ando vendo coisas horrorosas, até Deus deve duvidar de sua criação...
    Dei um zoom, editora Dom Quixote. Já pesquisei sobre o autor, 29 anos, bem jovem! E já com uma bagagem pesada!?
    Beijo, querida, um bom fim de semana!

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    1. Tais, aqui no Rol podes ler um pouco sobre "O meu irmão", primeiro romance deste jovem talentoso escritor, trineto do grande Eça de Queirós.
      Beijo, amiguinha, bom fim-de-semana.

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  3. Deve ser um romance muito inquietante, este que nos apresentas. Não li, mas sinto que o devo ler. Obrigada por mo dares a conhecer.
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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    1. Graça, lê sim que vais gostar.
      Apenas o fim da história é real e cruel, todo o resto é narrativa imaginativa envolvente e cativante.
      Beijo, amiga, bom fim-de-semana.

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  4. Já ouvi críticas muito positivas a romance e autor.

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  5. Olá, moçoila bonita!

    Lembro-me, perfeitamente, deste acontecimento funesto em 2006. Como é possível?
    Conheço o nome do autor, mas não li "Pão de Açúcar", que é decerto um romance, que nos cativa do início ao fim com realidade e ficção, segundo aqui nos descreves.

    Grata pelo teu comentário no meu blogue. Também não aprecio Celine Dion, embora reconheça que tem uma voz potente, mas o que me interessou foi o conteúdo do vídeo, que é "bombástico" e que está relacionado, parcialmente, com o meu poema.

    Beijos e bom domingo.

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