09 março, 2018

"Não se pode morar nos olhos de um gato" - Ana Margarida de Carvalho

«Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato»
(ALEXANDRE O’NEILL, Poema do Desamor)
Sinopse: Em finais do século XIX, já depois da abolição da escravatura, um rumbeiro clandestino naufraga ao largo do Brasil. Um grupo de náufragos atinge uma praia intermitente, que desaparece na maré cheia: um capataz, um escravo, um mísero criado, um padre, um estudante, uma fidalga e sua filha, um menino pretinho ainda a dar os primeiros passos… Todos são vencedores na morte, perdedores na vida. O mar, ao contrário dos seus antecedentes quotidianos, dá-lhes agora uma segunda oportunidade, duas vezes por noite, duas vezes por dia. Ao contrário do que pensam, não estão sós naquele cárcere, com os penhascos enquanto sentinelas, cercados de infinitos, entre o céu e o oceano. Trazem com eles todos os seus remorsos, todos os seus fantasmas. E mais difícil do que fazerem-se ao mar ou escalarem precipícios será ultrapassarem os preconceitos: os de raça, os de classe social, os de género, os de credo. Para sobreviverem, terão de se transformar num monstro funcional com muitos braços e muitas cabeças; serão tanto mais deuses de si próprios quanto mais se tornarem humanos e conseguirem um estado de graça a que poucos terão acesso: a capacidade de se colocarem na pele do outro.”
… o mar não é de confiança.
“Não se pode morar nos olhos de um gato”, segundo livro de Ana Margarida de Carvalho, é um romance magnífico e inteligente, que surpreende pela originalidade e minúcia da prosa.
Começa com o monólogo da “Nossa Senhora de Todas as Angústias”, a santa de madeira padroeira do navio naufragado - Santa sou, mulher mal-amada. Ressabiada, só se lembram de mim na aflição -que a tudo assiste, tudo comenta, e todos critica: Os seus corpos não são corpos, ai, que vos digo eu, são cabides de ódio e má fortuna.
São cinquenta páginas de uma torrente de palavras cruas e duras, que se estranham e quase me fizeram desistir. Ainda bem que o não fiz pois logo, logo, tudo se entende, a linguagem torna-se acessível, as personagens são apresentadas, a história entranha-se, as páginas devoram-se e, no fim, aplaudi efusivamente a singular luta dos náufragos contra a maldição do mar, na ilha onde esperavam por salvamento.
Acontece que, a salvo estavam ali dos respectivos destinos (…) dos passados que a todos atormentavam. Sobretudo dos remorsos e culpas.
E mais não conto. Leia, deixe-se levar pelo sonho e deslumbre-se com as estratégias de sobrevivência de homens e mulheres que buscam a salvação.
Já todos demasiado extenuados,
bando de náufragos inválidos.
Libertos do medo, com medo de já não sentir medo.

Romance avassalador, um dos melhores que li.

Não se pode morar nos olhos de um gato, de Ana Margarida de Carvalho
Ed. Teorema, 2016
350 págs.

23 comentários:

  1. Ainda não li nada desta escritora, mas fiquei com muita vontade de ler este livro pelas referências aqui deixadas.
    Um abraço e bom fim-de-semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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    1. Olá, Francisco!
      É um romance que se estranha (muito) mas se entranha (MUITÍSSIMO).
      Não deixe de ler.
      Com ele AMC venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 2017. Prémio que também venceu com o primeiro romance "Que importa a fúria do mar", que ainda não li mas vou fazê-lo - o tempo não me dá tempo para tudo o que desejo ler...
      Entretanto, em 2017 AMC publicou um livro com 15 pequenos contos "Pequenos delírios domésticos", que não foi bem recebido pelos críticos. Talvez tenha só talento para GRANDES romances... digo eu!
      Abraço e bom fim-de-semana.

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  2. Olá Teresa o enredo é tentador, nunca li nada desta escritora mas está anotado o título e assim que me livrar do bota fora, (limpeza de coisas acumuladas e inúteis), seres humanos como eu guardam e depois de seis meses joga tudo fora :-). Ficarei livre para ler, ler e ler, é disso que gosto.
    beijinhos, Léah

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    1. Olá, Léah!
      É um romance forte, que sobressalta e encanta. Recomendo!
      Amiga, também eu tenho de fazer um "bota fora" mas... não consigo desapegar de nada, nadinha!
      Ler, ler , ler... já dizia Umberto Eco: “A leitura é uma necessidade biológica da espécie".
      Beijo.

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  3. É um livro muito bonito. E meio triste.

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  4. Olá, Teresa!
    Gostei muito da tua sinopse sobre o livro "Não se pode morar nos olhos de um gato", da escritora portuguesa Ana Margarida de Carvalho (não será minha parente?). Pelo que li, a história é muito boa, que tem muito mais para o leitor nas suas 350 páginas. A Editora Teorema é de Lisboa, Teresa?
    Um ótimo final de semana.
    Pedro

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    1. Olá, Pedro!
      A capacidade imaginativa de Ana Margarida de Carvalho é surpreendente e a sua escrita... Pedro, que bem ela escreve!!
      Pela primeira vez eu fiquei vazia de palavras depois de ler um romance. Nem o grande Saramago alguma vez me deixou assim. De rastos, reduzida à minha insignificância!
      Adiante!
      Tua parente não sei se é, mas que é licenciada em Direito, como tu, lá isso é!
      A Teorema, uma chancela do Grupo LeYa, fica em Lisboa.
      Abraço e bom fim-de-semana.

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    2. Olá, Teresa!
      Agora estou convencido que procurarei esse livro da Ana Margarida de Carvalho. Mas não concordo quando disseste que ficaste "reduzida à minha insignificância!". Não apoiada. Tens muita significação.
      Obrigado pela resposta.
      Uma excelente semana, minha amiga.
      Bjs.
      Pedro

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  5. TERESA,
    Veja, na penúria de um náufrago o ser humano não muda, parece que atinge seu ápice de pobreza espiritual. Deve ser um livro que dá muitas voltas pelo sub-mundo do espírito humano, que coisa dantesca, nem numa tragédia somos capazes de gestos mais nobres, particularizando para esse caso do livro.
    Pedro já anotou, não vamos aos shoppings sem passar nas livrarias, virou vício há décadas. Gosto de romances assim, de impacto, água com açúcar não faz meu gênero. Nem em poesia. A coisa tem de ser mais pesada. (rs)
    Beijo, amiga!

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    1. corrigindo: SUBMUNDO (desculpa a distração)rs

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    2. Tais, também eu gosto de romances que dão luta, envolventes, inspiradores, fascinantes, bem escritos.
      "Água com açúcar" não leio mas bebo, uma vez por outra...
      Eu sigo o conselho do filósofo Henry David Thoreau: “Leia os bons livros primeiro, o mais provável é que não consiga ler todos”.
      O romance de Ana Margarida de Carvalho tirou-me o fôlego, mas fiquei a gostar ainda mais de PALAVRAS!
      Beijo.

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  6. Querida Teresa

    Fiquei completamente apaixonada por esse livro e Autora, através das palavras que aqui deixaste. O tema interessa-me muito. Aliás, os temas, pois estão em jogo, raça, classe social, género, credo. É uma viagem aos nossos complexos e convicções.
    Nunca li nada de Ana Margarida de Carvalho. Penso que é agora que me vou estrear com ela.

    Bj

    Olinda

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    1. É um romance soberbo!
      Não é uma "viagem" fácil (principalmente as primeiras páginas) mas no fim aplaude-se.
      Olinda, vais gostar.
      Beijo, amiga.

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  7. Teresa,
    Interessante o título do livro
    juntamente a resenha me intrigaram.
    Vou por na minha lista de leitura
    desse ano de 2018, devo ler lá em
    julho, pois já tenho meu
    cronograma até o mês de junho.
    Brigadin por compartilhar.
    Bjins e Abraço
    CatiahoAlc.

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    1. Cronograma de leitura? Gostei!
      Catia, o que importa é ler, hoje, amanhã ou depois.
      Eu comprei o livro em 2016 e só o li agora.
      Faltou o cronograma... Vou fazer!
      Beijo.

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  8. Por estes dias aqui em Macau.
    Boa semana

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    1. Demorei a entender...
      Pedro, muito boa!!!
      Abraço e boa semana.

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  9. Valeu a sinopse desse romance que me parece intenso, pelo que contas. Faz algum tempo que estou sem ler romances - sinto saudades. Esse parece ser uma boa opção. Grato pela partilha. Abraço fraterno. Laerte.

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    1. Depois de algum tempo sem leres um romance... sugiro este.
      É ainda mais intenso do que te parece.
      Abraço!

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