“Os que me conheceram aos quatro anos dizem que era pálido e ensimesmado e que só falava para contar disparates, mas os meus relatos eram em grande parte episódios simples da vida diária, que eu tornava mais atraentes com pormenores fantásticos para que os adultos me prestassem atenção. A minha melhor fonte de inspiração eram as conversas que os mais velhos mantinham diante de mim, porque pensavam que não as entendia, ou as que cifravam de propósito para que não as entendesse. E, de facto, acontecia o contrário: absorvia-as como uma esponja, desmontava-as em peças, alterava-as para escamotear a origem, e quando as contava aos mesmos que as tinham contado ficavam perplexos pelas coincidências entre o que eu dizia e o que eles pensavam.
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Tive muita dificuldade em aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra m se chamasse éme e, no entanto, com a vogal seguinte não se dissesse émea e sim ma. Era-me impossível ler assim.
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Quando o meu avô me ofereceu o dicionário, despertou em mim tal curiosidade pelas palavras que o lia como um romance, por ordem alfabética e sem entender nada. Foi assim o meu primeiro contacto com o que haveria de ser o livro fundamental no meu destino de escritor.
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Comecei a ler como um autêntico romancista artesanal, não só por prazer como pela curiosidade insaciável de descobrir como estavam escritos os livros dos sábios. Lia-os pelo direito, depois pelo avesso, e submetia-os a uma espécie de estripamento cirúrgico até desentranhar os mistérios mais recônditos da sua estrutura.
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A minha vida esteve sempre perturbada por um emaranhado de rasteiras, fintas e ilusões para ludibriar os incontáveis engodos que tentavam transformar-me em qualquer coisa que não fosse escritor."
Em "Viver para contá-la", de Gabriel García Márquez, ed. Dom Quixote, 2003
Adeus, Gabo!
"Crónica de uma MOrte Anunciada": que esteja na Luz!
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