“É proibido falar de política”, diz um letreiro pregado na parede da barbearia.
- Quem te autorizou a pôr ali aquele letreiro? - perguntou o alcaide, apontando o aviso.
- A experiência – respondeu o barbeiro.
- Aqui só o Governo tem o direito de proibir seja o que for – disse. – Estamos numa democracia.
Pois é, este hilariante romance foi escrito por GGM em 1962, precisamente vinte anos antes da conquista do Nobel e cinco anos antes da publicação da sua obra-prima “Cem anos de Solidão”.
A acção tem lugar num pequeno povoado perdido no interior de um qualquer país da América Latina. Um povoado em tempos devassado por guerras políticas e repressão brutal mas onde agora reinava a ordem social. Todos viviam “numa santa paz”. Verdadeira?
Não! Os jogos de poder, a corrupção, a miséria e os conflitos sociais eram um prenúncio de tragédia e esta chegou de repente, como se Deus tivesse resolvido que aconteceriam todas juntas as coisas que durante anos deixaram de acontecer.
E chegou com um tiro que rasgou a madrugada.
Um tiro que sobressaltou o padre Ángel, que se preparava para celebrar missa, na sua igreja infestada de ratos; despertou o alcaide, que tentava adormecer, depois do oitavo analgésico para atenuar uma dor de dentes; alarmou os habitantes do povoado, que correram em roupa de dormir para a praça.
O tiro foi disparado por César Montero, um comerciante de gado. O atingido de morte foi Pastor, um humilde tocador de clarinete.
Porquê?
Por causa de um papel – um pasquim - colado na porta de casa de Montero, informando-o da infidelidade da mulher. Mas era verdade ou mentira?
Para o doutor Giraldo, os pasquins dizem o que toda a gente sabe, e que quase sempre é verdade.
Há já algum tempo que apareciam afixados nas portas das casas do povoado. Sempre de madrugada, sempre anónimos, faziam denúncias sobre a vida privada dos cidadãos, como traições, assassinatos, infidelidades, segredos de família envolvendo filhos bastardos e abortos escondidos. Todos se sentiam ameaçados. Qualquer um podia ser o autor ou a próxima vítima. O medo, a raiva e a vingança desencadeiam uma onda de violência colectiva.
Pastor foi vítima dessa violência mas os pasquins continuaram a aparecer, à hora má das madrugadas.
Para o velho e pobre padre Ángel os pasquins são obra da inveja numa terra exemplar, a terra mais cumpridora de toda a Comunidade Católica.
Já o juiz Arcadio, que tratava as persistentes dores de cabeça com analgésicos e cerveja, diz que os pasquins não são obra de uma única pessoa e aposta com o escrivão que vai descobrir os seus autores.
O alcaide corrupto, responsável pela segurança do povoado, impõe o recolher obrigatório e ordena aos seus guardas que façam rondas nocturnas. Pede, até, ajuda a uma adivinha. Nada resulta: os pasquins continuam a ser afixados.
São muitos e convincentes os personagens desta excelente história, narrada com a marca inconfundível de um grande autor e merecido Nobel.
São muitas as vítimas dos pasquins, muitos os eventuais autores e muitos os segredos revelados.
- Se pelo menos se soubesse quem os põe.
- Quem os põe sabe.
Eu penso que sei… mas não digo!
Pós-escrito:
Está a chover novamente. Com este Inverno e as coisas que em cima te conto, creio que nos esperam dias amargos.
Soube-me bem este “veneno da madrugada”. Morri, apenas, de riso. Haja Deus!
Obrigada Carlos Reys, pela excelente sugestão de leitura.
A hora má: o veneno da madrugada, de Gabriel García Márquez
Tradução de Egito Gonçalves
Dom Quixote, 2008
187 págs.
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