04 maio, 2012

"O teu rosto será o último" - João Ricardo Pedro

… além dos cabelos brancos, o pai parecia-lhe profundamente triste. Mas, pela primeira vez, era uma tristeza que Duarte compreendia. Uma tristeza que não era apenas um olhar vago, uma certa maneira de fumar, um alheamento, um azedume. Era uma tristeza que se materializava em sinais inequívocos. Palpáveis. Na pele. Na carne. Nos olhos. Nas mãos.
Li este romance, escrito na nossa língua, emocionada, a exultar de curiosidade e aconchegada numa manta quentinha, num dia frio de Abril, enquanto…
Lá fora, a chuva caía, como se escorresse por invisíveis fios de prumo.
A história, surpreendente, séria e ao mesmo tempo risível, arrebatou-me desde o primeiro capítulo e deixou-me, literalmente, sem palavras para escrever sobre ela.
Por diversas vezes parei de ler e me interroguei:
Como é que JRP, um estreante, escreve tão bem?
Como é que JRP, um estreante, tem uma imaginação tão extraordinária?
Como é que JRP, um estreante, tem o dom de me levar à leitura compulsiva desta história?
Mas, também por diversas vezes, dei por mim a aplaudir a atribuição do prémio Leya 2011 a JRP.
Lembro que JRP se viu forçado a fazer uma mudança na vida, quando, em 2009, foi demitido da empresa onde trabalhava como engenheiro eletrotécnico e se viu “ metido” numa situação embaraçosa, com dois filhos, casado e uma casa por pagar. Não demorou a tomar a decisão – acertada – de escrever um livro, este que o levará à ribalta das letras portuguesas, tenho a certeza.
A estrutura do romance é original - uma vertigem de histórias soltas mas entrelaçadas, que tanto avançam no tempo como recuam.
A escrita é inteligente – simples mas apurada, com elementos repetitivos que não cansam, com palavrões que não ofendem.
A trama é genial – memórias e segredos de três gerações de uma família marcada por anos de ditadura, pela repressão política, pela guerra colonial.
Tudo começa no dia 25 de Abril de 1974, numa pequena aldeia com nome de mamífero, no sopé da Serra da Gardunha, onde vive o doutor Augusto Mendes, médico de profissão, filho de uma das mais abastadas e notáveis famílias do Porto, com negócios no Brasil e em África.
O doutor Augusto Mendes adquire a propriedade onde vive ao amigo Policarpo, que abandona o país quando Salazar sobe ao poder. Este país não interessa nem ao menino Jesus. Antes a Rússia. Mil vezes a Rússia. Por isso, enquanto for novo e dinheiro não me faltar, adeusinho ó pátria lusa mais as estrofes de Camões, que só um país miserável tem um poeta zarolho como herói nacional.
Policarpo cumpriu a promessa que fez ao amigo e escreve-lhe longas cartas que relatam o que se passa no mundo: Da invasão de Paris pelos alemães à salvação da Europa pelas tropas aliadas. Da morte de Estaline aos golos de Eusébio. Da primeira pegada na Lua ao fim do império britânico. Tudo ele relatava.
Mas a história não se fica pelas cartas de Policarpo e continua em Queluz, onde vive António, filho do doutor Augusto Mendes, casado com a madrinha de guerra que conheceu numa livraria no Chiado, quando se preparava para partir para a segunda comissão em Angola e o seu neto Duarte, que nasceu com um dom extraordinário para a música, um pianista precoce que deixa de tocar por “ódio” ao seu dom.
Entre a aldeia com nome de mamífero e Queluz, nos arredores da grande cidade, vivem-se histórias tristes e alegres e recorda-se a guerra colonial, a campanha de Humberto Delgado, o terror da PIDE, a revolução dos cravos, a descoberta da liberdade, o ruir das ilusões nascidas em Abril, o fim da União Soviética, etc., etc.. …
...um dia, Duarte perguntou: «Pai, quem é que foi o Salazar?»
O pai responde sem hesitações: «Foi um defesa esquerdo do Belenenses.»
Apesar do ar sério do pai, a resposta afigurou-se-lhe totalmente incompatível com o pouco que sabia de Salazar. Tentou circunscrever o contexto: «Não, pai, o Salazar mau, aquele mesmo muita mau de que às vezes falam na televisão.»
O pai pousou os óculos sobre o jornal, olhou o teto, olhou o filho e disse: «Foi o cabrão que matou o teu avô, o pai da tua mãe.»
A mãe veio a correr da cozinha: «António, francamente.» Duarte virou-se para ela: «É verdade, mãe?»
Ela disse: «Não, filho, não é verdade, não ligues ao teu pai, um dia a mãe explica-te.»
Esse dia só haveria de chegar alguns anos depois.
Mas que grande primeiro romance!

O teu rosto será o último, de João Ricardo Pedro
Leya, 2012
207 págs.

12 comentários:

  1. Poxa cada vez tenho mais curiosidade neste livro. A tua opinião aguçou ainda mais esta minha vontade em ler o livro do estreante João Ricardo Pedro.
    Participei num concurso aqui na blogsfera... Vamos lá ver se tenho sorte. ;)
    Boas Leituras!

    Nota: "A Livraria" também é outro que já li boas opiniões. Vou esperar pela tua, Teresa. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Vais gostar.
      Para livro de estreia é fabuloso! E é dos nossos...
      Bjs.

      Eliminar
  2. Parece ser bem interessante! Obrigada pela sugestão! :)

    Beijocas!

    ResponderEliminar
  3. Tenho lido opiniões extraordinárias acerca deste livro de estreia de JRP,estou cada vez mais curioso em relação a este livro. Obrigado pela sua opinião... se dúvidas houvesse, acabaram por dissipar-se om a leitura da mesma. Obrigado

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada.
      Não deixes de ler - é um espantoso primeiro livro.

      Eliminar
  4. Também gostei do seu espaço.
    Obrigado pela visita.
    Voltarei igualmente, aos domingos ou noutro dia qualquer...
    Beijo.

    ResponderEliminar
  5. Comentário que suscitou a minha curiosidade e interesse no livro em questão. Vou procurar lê-lo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Lê mesmo Vera porque tirarás da sua leitura um enorme prazer.

      Eliminar
  6. Li (e continuo a ler) tantas opiniões fabulosas acerca deste livro, que tive que o comprar.

    Facto: o senhor escreve bem.
    Facto: o senhor tem talento na construção de cenas e no entrelaçar dos vários momentos na progressão da narrativa.

    Mas...
    Terei sido apenas eu a sentir aqui que quase tudo se me escapou? Lamento, mas confesso que continuo sem perceber coisas tão fundamentais como: porque morreu o Celestino, qual a relevância e o significado do felídio embalsamado, porque é que o quadro foi parar às mãos do Duarte. Quando terminou a última frase do livro, eu fiquei incrédula.
    Terei que o ler e reler duas, três, quatro vezes? Porque tenho a sensação final de que isto é puzzle deixado à imaginação do leitor? Sinceramente, não percebi qual foi a intenção.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. alessandra12 julho, 2012

      eu sou italiana, nascida no brasil, e tambem fiquei sem entender muitas coisas (e pensei que fosse por causa da lingua). quem pode me explicar a trama do livro? como ad historias se encaixam no desegno final? O quadro acabou com o Duarte porque o seu profesor de piano, cujo pai tinha vivido a historia, achou que explicava o motivo de o Duarte deixar de tocar piano. Pode ser?

      Eliminar
  7. O desfecho é realmente algo confuso, penso que terá de ser o leitor a descobrir ou a inventar o resto da trama que explique a morte do Celestino (não me pareceu ser suicídio) e como se relaciona Duarte com o ascendente alemão maneta e os famosos quadros de Bruegel...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Concordo consigo VITOR.
      Para mim, o autor arquitectou a trama em torno de cenas dramáticas deixando ao leitor hipótese de imaginar o que as provocou.
      Como diz acima JFFR, é como se fosse um puzzle que cada um de nós monta a seu bel prazer.
      ALESSANDRA, não se preocupe em encontrar um fio condutor - deixe-se cativar pela trama muitissimo bem arquitectada, pela escrita cuidada, pelas personagens credíveis,pela sábia ligação de factos reais com a ilusão criativa de um escritor que "acabou de chegar".
      Claro que também eu tenho algumas dúvidas... mas, não terá sido essa a intenção do autor - deixar-nos a pensar?
      Para mim, é um primeiro romance notável.

      Eliminar