20 novembro, 2020

"Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos" - Olga Tokarczuk


«- Que mundo é este? Um corpo transformado em calçado, em almôndegas, em salsichas, em tapete estendido junto à cama, em caldo feito com os ossos de outro ser… Sapatos, sofás, malas de pendurar ao ombro feitas da barriga de outros seres, aquecer-se à custa do pelo de outrem, comer o corpo de outrem, cortá-lo aos pedaços e fritá-lo no óleo… Será verdade? Será possível tal pesadelo macabro, tamanha matança, cruel, desapaixonada, mecânica, sem pesos na consciência, sem a mínima reflexão, reflexão que é afinal o objectos dos engenhosos campos da Filosofia e da Teologia? Que mundo é este, onde a norma é matar e infligir dor? O que se passa realmente connosco? 
- A senhora está a exagerar (…)
- A senhora leva o assunto muito a peito (…) 
- A senhora é mesmo louca.» 

Publicado em 2009, "Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos” é uma surpreendente mistura de policial negro, fábula macabra bem doseada de humor, que questiona a nossa posição acerca dos direitos dos animais e responsabilidade sobre a natureza, bem como todas as ideias preconcebidas sobre a loucura, a justiça e a tradição. 
A acção decorre numa terriola polaca «não mais que meia dúzia de casas (…), longe do resto do mundo», onde o «vento não pára de soprar», e é difícil viver de Outubro a Abril. 
Ali vive, sozinha, a excêntrica idosa Janina Duszeijko, engenheira de pontes «construí pontes na Síria e na Líbia», professora reformada, tradutora, astróloga. 
Durante o inverno rigoroso Janina, continua a fazer rondas pelos campos e baldios; a cuidar da ponte sobre a ribeira;  a tomar conta das casas desabitadas dos vizinhos que vivem parte do ano na cidade. Resta-lhe tempo para ajudar um amigo a traduzir poemas de William Blake; interpretar os sinais dos astros; fazer horóscopos; ver tudo sobre Meteorologia na televisão; cuidar do cemitério dos animais; tratar das suas Maleitas (não saberemos quais são) «as minhas Maleitas aparecem traiçoeiramente e eu nunca sei quando»
A pacatez dos dias desta mulher estranha, a quem chamam «velha tresloucada» por preferir a companhia dos animais à das pessoas, termina quando um dos seus vizinhos aparece morto, engasgado com um osso. Acidente ou crime? A esta morte seguem-se outras, violentas, todas de caçadores furtivos membros de um clube de caça local. 
«- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!, Oh, meu Deus! - repetia mecanicamente, o que me tirou do sério, pois é sobejamente sabido que nenhum deus há-de vir para pôr ali as coisas em ordem.»
Então, a Dona Janina - protagonista-narradora desta história decide investigar os estranhos homicídios e chega a uma teoria muito própria que espalhará o terror na comunidade.

Quer saber o que se passou naquele lugarejo agreste, onde  «as manhãs de Inverno são feitas de aço, têm um sabor metálico e arestas afiadas»? Não posso, não quero, não desvendo!
Genial, inteligente, surpreendente. Leia!
(o título deste romance é uma citação de William Blake)

Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, Prémio Nobel de Literatura, 2019
Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz
Ed. Cavalo de Ferro, 2019
286 págs.

8 comentários:

  1. É certamente um livro com uma Estória fascinante de ler.
    .
    Abraço sentido

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  2. Somos seres chocantes, controversos, hipócritas.
    Acho que vou ler esse livro.

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  3. Ofereci este livro - sem o ter lido - a uma pessoa que não gostou dele. Pensava eu que era um tiro no porta aviões e só meti água. Coisas.

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  4. É isso mesmo, Teresa, está uma síntese óptima. Já falei nele aqui no Rol há uns tempos e para mim foi um livro surpreendente, daqueles de leitura imparável.
    Ainda não comprei o Viagens (saio pouco, nem sei há quanto tempo não vou a uma livraria) mas há dias vi um dela no Jumbo e não hesitei: chama-se "Outrora e Outros Tempos" e espero que seja bom.
    Bom fim-de-semana!
    🍂🍁🍂

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    1. Olá, Maria!
      Este é realmente um surpreendente policial bem humorado, que gostei muito de ler. (Pode não parecer, pois poucos trouxe para o Rol, mas gosto por demais de romances policiais. O último que li foi "Eve", de Arturo Pérez-Reverte. Há frases retiradas dele no meu blogue "Pétalas de Sabedoria". Uma, por sinal, lamentavelmente atual: “Os descuidos matam e os descuidados morrem.”)
      Adorei "Viagens". Confesso que volto ao livro vezes sem conta.
      Há dias comprei "Outrora...". Vou deixar passar algum tempo até «pegar» de novo na escrita cativante e inteligente da escritora/psicóloga polaca.
      Maria, leia "Viagens".
      Beijo, bom fim-de-semana.

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  5. Só o título já deixa adivinhar a história interessante que é contada. Sempre excelentes as tuas ideias, Teresa, minha Amiga.
    Cuida-te bem.
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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  6. Só o título já é sensacional e nos faz refletir muito.
    Pareceu ser muito interessante, gostei da sugestão ainda mais que tinha colocado algumas frases da autora no Pétalas, preciso rele-las para talvez melhor compreender.
    Abração, Teresa, bom final de semana!

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    1. Olá, Dalva!
      Da autora há no Pétalas frases (muitas) retiradas do livro "Viagens".
      Frases do livro que agora recomendo, só lá chegarão em Janeiro/Fevereiro de 2021.
      Dalva, comece por ler "Viagens". Tenho a certeza absoluta que irá gostar.
      Beijo, bom fim-de-semana, saúde.

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