Quantas dores pequeninas bastam para anular a grande,
É a lei da compensação, marcha, homem rasteiro que evitas a planície, faz-te ao caminho, se eu pudesse não andava nisto, bem sabemos, pára de o repetir, não queiras ser a tua própria semeadura, anda, puxa, anda, anda,
desanda daí,
A trama do terceiro romance de Ana Margarida de Carvalho desenrola-se toda no espaço de um dia “entre dois entardeceres”, no Alentejo rural fronteiriço do final da década de trinta do século passado.
Numa paisagem agreste, sob uma atmosfera de miséria e abandono “Dois homens caminham. Um chega à terra para matar saudades do mar; outro supera um carreiro íngreme com uma carga de azeitonas. O primeiro vem vergado ao peso da vingança. O segundo ao da sobrevivência. Cruzam-se numa estrada, perdida, no Alentejo, junto à fronteira. De Espanha chegam os ecos dos fuzilamentos e os foragidos da Guerra Civil. Transaccionam-se mercadorias, homens, mulheres e até bebés.(…)
Duas comunidades antagónicas, que se hostilizam, guerreiam e dependem uma da outra: uma à míngua, entre vendavais e pó; outra prospera, em traficâncias várias, cercada por pântanos, protegida por um tirano local e pela polícia política, abriga todos os rejeitados pela sociedade, malteses, republicanos espanhóis, fugitivos, cuspidores de fogo, ciganos, artistas de circo, evadidos de conventos, bêbados e arruaceiros. As velhas acusações transformam-se, a guerra tem renovados motivos, a raiva escolhe outros métodos. O grito do corpo continua o mesmo, tal como o gesto que fazemos para proteger a cabeça.”
a sobrevivência tem muita teimosia
Na aldeia atormentada Nadepiori «raio de nome, calha bem a lugarejo mal atamancado, que lugar feio de se viver, porque havia sempre algo que o vento rompia, arrancava e desancava», lugar onde «nunca ninguém fica muito tempo doente», porque «ninguém chega a velho», onde não há música «o vento rouba-nos as melodias no seu uivo furioso, mal abrimos a boca» terra de encruzilhada, de vendavais e pó, e verões escaldantes, homens e mulheres rudes, cruéis, vagueiam vulneráveis, enrodilhados em segredos e verdades amargas: Simão, Maria Angelina (um falcão), Maria Adelaide, Maria Armanda, Domingas, Maria Alzira, Maria Albinha, Maria Albertina, Constantino, Camilo, e muitos mais, são todos personagens de histórias de sofrimento, resiliência, sobrevivência, neste romance magistralmente construído.
procurando bem sempre se acaba encontrando, é nestas paragens que vagueia a alma
No início assusta o intenso e estonteante ritmo da narrativa, as frases curtas e duras, a pontuação bizarra dos seis longos parágrafos (tantos quantos os capítulos do livro), mas logo, logo, a altíssima qualidade da escrita da autora nos arrebata.
Repito-me: A imaginação de Ana Margarida de Carvalho não tem limites e a forma como combina as palavras não tem igual. Se a história não o agarrar nas primeiras páginas, não desista.
Eu considero obrigatório ler Ana Margarida de Carvalho. Ler porque contar é impossível.
E mais não digo.
(“O Gesto Que Fazemos Para Proteger a Cabeça”, verso de um poema da poetisa polaca Wislawa Szymborska)
O Gesto Que Fazemos Para Proteger a Cabeça, de Ana Margarida de Carvalho
Relógio D’Água Editores, 2019
255 págs.
.Acredito que seja um romance fascinante de ler.
ResponderEliminar.
Bom fim de semana
Embora tenha aí muitas obras à espera dos olhos ficarem melhores, creio que tão depressa possa ir à Bertrand vou comprar o livro. Tenho lido tanto sobre ele. E há dias também vi e ouvi na TV.
ResponderEliminarAbraço saúde e bom fim de semana
A sobrevivência tem muita teimosia...
ResponderEliminarBoa tarde de paz, querida amiga Teresa!
Deve ser bom o romance pelas pinceladas que nos deu aqui.
Tenha dias abençoados!
Vamos lendo e nos enriquecendo.
Tenha dias abençoados!
Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem
Ai...ai...ai...nem sei o que hei-de fazer, Amiga do coração; tenho tantos livros à minha espera e a certeza " mais que certa " ( sei que não se pode dizer isto...) que este livro agradar-me-ia muito; compro, não compro, eis a questao! E depois a pandemia e depois a pouca vontade de entrar numa livraria e depois este medo de sair de casa e encontrar o desgraçado do virus, Sabes, Teresa, nasci e vivi numa aldeia até ir para o Brasil, nuns tempos em que a miséria era muito grande e era minha vizinha, em casas que eu frequentava e onde via a " teimosia da sobrevivência ". " O gesto que fazemos para proteger a cabeça ", não precisei de o fazer e considero-me uma pequena priveligiada, mas assisti a muitas cabeças totalmente desprotegiadas onde a má sorte ou os deuses ou a vida...não sei... pareciam querer que tudo de mau lhes caisse em cima;
ResponderEliminarmesmo assim, algumas dessas cabeças " chegaram a velhos " e eu admirei-lhes a coragem e resiliência Admirei-as, visitei algumas, acompanhei-as quando a vida as convidou a partir. Recordo muitas com saudade! Estás a ver? Quase que me caiu uma lágrima ao pensar na teimosia da sobrevivência em casas onde era feliz, brincando despreocupada. Também se brinca no meio da miséria, mas...não é fácil! Um abracinho daqueles bem apertadinhos e mil beijinhos. SAÚDE, Teresa linda!
Emilia
💛💚💙🥰🤔
Eliminar«...a forma como combina as palavras não tem igual»
ResponderEliminarEscrita que me diz alguma coisa. Vou ver se alguém mo oferece:). Já tenho o último de Lobo Antunes prometido para o Natal.
ResponderEliminarQuem sai aos seus...
ResponderEliminarPuxa... que maravilhosa publicação.
ResponderEliminarConheço o verso. O livro não de Ana Margarida de Carvalho, não. Não consigo acompanhar tanta leitura, Teresa. Obrigada. Vou pô-lo na fila...
ResponderEliminarUm grande beijo.
Muita saúde e uma boa semana.
Teresa,
ResponderEliminarAdorei a sugestão.
Toda informação
enriquece quem aqui vem.
Bjins de boa nova semana
CatiahoAlc.
Mais uma sugestão de leitura que registo com todo o agrado.
ResponderEliminarBeijo, boa semana